Brasil indica "O Som ao Redor" para buscar vaga no Oscar 2014. Sutil, profundo e provocador, filme incomoda as elites — que temem ter “seu” espaço invadido pela multidão
O filme “O Som ao Redor”, que marca a estreia do diretor Kleber Mendonça e que ganhou importantes prêmios latino-americanos, foi escolhido para ser o representante brasileiro na disputa pelo Oscar 2014 na categoria de melhor filme estrangeiro, informou nesta sexta-feira o Ministério de Cultura.
“O Som ao Redor” é um drama ambientado na cidade de Recife que aborda o desencanto de um bairro de classe média ameaçado tanto pela especulação imobiliária quanto pela violência urbana.
No Brasil, o filme ganhou o primeiro prêmio no Festival do Rio no último ano, além do prêmio da crítica e o do júri do Festival de Gramado.
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Abaixo, comentário de José Gerado Couto* sobre O som ao redor
“Premiado em festivais no Brasil e no exterior, elogiado unanimemente pela crítica, o longa de Kleber Mendonça Filho entrou nas listas de melhores do ano do New York Times e da Film Comment, entre outras publicações de prestígio.
Todo esse auê se justifica. É um filme que, como poucos, radiografa sua época sem perder de vista o processo histórico de longa duração em que ela se insere. Não se perde nas aparências do presente, não fetichiza o novo, mas, pelo contrário, revela a presença do arcaico no moderno, a reiteração sob novas formas de um modelo civilizatório ao mesmo tempo perverso e fascinante – tudo isso sob a aparência de uma prosaica crônica urbana ambientada num bairro recifense de classe média”.
(…) Na crítica (que fiz sobre o filme), eu qualificava de estranhas e misteriosas as aparições fugazes de um garoto negro – num telhado, numa casa vazia, no alto de um árvore. Depois fiquei sabendo que se tratava de alusões ao “menino-aranha” que povoou a crônica policial de Recife na década de 90: o garoto Tiago João da Silva, que desde os nove anos de idade escalava com as próprias mãos prédios residenciais da cidade para assaltar apartamentos. Tiago foi detido e fugiu várias vezes, até ser morto a tiros aos 17 anos, em 2005.
O curioso é que no início de 2012, quando O som ao redor já estava pronto, surgiu em Recife outro garoto com as mesmas características, o que levou a imprensa a rememorar o caso. No contexto do filme de Kleber Mendonça, esse fait divers de página policial ganha um sentido histórico-social poderoso: o medo da classe média e das elites brancas diante da ameaça difusa de invasão do “seu” espaço pelos pretos e pobres. É, de certo modo, uma atualização urbana da lenda do traiçoeiro e imprevisível saci-pererê.
A reforçar o viés político dessa fabulação, numa cena do filme uma menina de classe média levanta de sua cama no meio da noite, vai até a janela e vê uma horda de meninos-aranha se espalhando pelos telhados e árvores do bairro. Não sabemos se é uma visão, um sonho ou uma imagem “real” – o fato é que poucas cenas sintetizam de forma tão eficiente o momento que vivemos, de ascensão dos que não tinham nada e de apreensão dos que têm alguma coisa em face ao que pode acontecer.
*José Geraldo Couto escreve para o blog Ims