No batido roteiro do poder constituído, a velha e parte da nova mídia, quando não ficam no mais completo silêncio, trazem sempre o mesmo enredo. Qualquer ato político que saia minimamente do domínio oligárquico “tradicional” será desqualificado
50 mil pessoas defendendo a educação no Rio e só se fala em quebra-quebra, destruição, “porrada, tiro e bomba”.
Pelo que lutavam mesmo? Irrelevante.
Não interessa que o prefeito tenha ignorado por completo as demandas dos profissionais da educação e ainda que tenha dito que os “professores não sabem fazer contas“, o importante é o ônibus incendiado, os prédios destruídos e a manifestação-espetáculo dos denominados blocos de preto.
Não interessa que, dias antes, a polícia, sob o comando do governo estadual, tenha feito o que mais sabe e tenha reprimido duramente os professores, sem que qualquer “baderneiro” tivesse iniciado o confronto.
Quem eram mesmo os supostos baderneiros? Irrelevante.
Não interessa que não só professores estivessem lá – pois havia bancários, bombeiros, estudantes secundaristas e universitários, além de muitos simpatizantes da justa causa dos profissionais da educação. Até artistas e grupos musicais vieram enriquecer a manifestação. Mas o foco de todas as capas dos jornais é o ônibus em chamas, os vidros quebrados e a destruição.
Qual era a pauta dessa greve mesmo? Irrelevante.
No batido roteiro do poder constituído, a velha e parte da nova mídia, quando não ficam no mais completo silêncio, trazem sempre o mesmo enredo: arruaceiros, vândalos e marginais estragaram uma manifestação legítima, a festa democrática. Ninguém se lembra do que a imprensa dizia dos grevistas, “agitadores”, sindicalistas – os “comunalhas” de sempre – a destruir a Rio Branco depois da escandalosa privatização da Vale do Rio Doce em 1997? Não foi o MST taxado em capa de revista como baderneiro, raivoso ou coisa pior? Não chamaram o estancieiro João Goulart de “comunista” e “subversivo” apenas por ser um trabalhista tradicional?
Nos discurso do poder constituído, qualquer ato político que saia minimamente do domínio oligárquico “tradicional”, que venha a incomodar o seu poder, será desqualificado. São vândalos, irresponsáveis e desordeiros.
Sempre foi assim.
Se há greve nos ônibus vão mostrar o coitado que não pode chegar no trabalho por causa de uns “sindicalistas egoístas”; se é greve de professor, a manchete é sobre alunos prejudicados por aproveitadores cooptados por sindicatos partidários e tendenciosos e sobre famílias prejudicadas porque o pai ou a mão ou a avó teve de cuidar das crianças que estavam sem aula; se é pela descriminalização das drogas, o tom é de “maconheiros filhos de papai que só querem fumar sua erva em Ipanema sem serem incomodados”; se são camponeses lutando por pequeno espaço para plantar no campo, num país com colossal concentração de terras, não passam de “vagabundos ocupantes”, terroristas invasores; se a manifestação fecha uma rua, vão indubitavelmente enfatizar o “direito de ir e vir” dos outros, colocando que é “ditatorial” fechar ruas em protesto.
Enfim, o posterior “avacalhamento” público, distorção e “manipulação” das manifestações pela mídia (incluindo governo) é, certamente, a única regra que se deve tomar como verdadeira ao se expressar nas ruas. A desqualificação de greves, ocupações, manifestos e claro, protestos violentos ou não, é a principal e mais eficaz arma de desmobilização e desarticulação de qualquer manifestação , independente da causa e do número de manifestantes.
Portanto, se a regra é a desqualificação posterior em massa, algumas considerações fundamentais devem ser feitas quanto à atuação popular em manifestações.
Muitos concordaram que, nos idos de junho, houve de fato a necessidade simbólica de “quebrar tudo” como demonstração clara e evidente de descontentamento com a ordem vigente.
O vandalismo [de junho] representou algo há algumas décadas esquecida por nossa população: “a quebra real do paradigma da “inviolabilidade” do Estado e da – ainda que temporária – quebra do seu monopólio do uso da violência legítima. Quebrou o monopólio da violência de forma política, muito diferente dos Estados Paralelos, formados por traficantes em regiões de fronteira, dentro das grandes cidades que não tem pretensão política e ideológica.” (citado pelo autor em “Vandalismo e Ruptura”)
Então, na ocasião, praticamente todos os lados apoiaram e exaltaram as manifestações espontâneas pelo país todo, as quais culminaram nos atos de destruição de 17 e 20 de junho por todo o país, seja a esquerda jovem deslumbrada com o “gostinho” de revolução deixado no ar enfumaçado, seja a direita oportunista de plantão querendo usar o momento para derrubar o atual poder que detesta, passando pelos “coxinhas” apolíticos em geral, inconscientemente nas ruas “contra tudo que está aí” sem saber exatamente o que defendem.
Enfim veio outubro e apresentaram-se fatos diferentes.
Dando sequência ao violento “despejo” dos professores manifestantes que ocupavam a Câmara do Rio, ocorreu uma grande manifestação de professores no dia 1 de outubro, também seguida por ação violentíssima dos policiais. No esquema do “foi mal fessor“, a polícia desavergonhada de Sérgio Cabral e Eduardo Paes perdeu o pudor e reprimiu como nunca uma das categorias mais sofridas do país, causando indignação nacional e alimentando o fogo da grande manifestação do dia 7 de outubro, em situação semelhante ao ocorrido em junho, quando da excessiva repressão da PM paulista ao Movimento Passe-Livre.
O fato novo apresentado por essa manifestação do dia 1 de outubro foi a atuação expressiva do bloco negro (black bloc). Como muitos presenciaram, os membros do bloco negro foram fundamentais para segurar a ação policial e desviar a atenção da violenta polícia cabralina, dando tempo para que as inúmeras senhorinhas idosas e mulheres, componentes numerosos e mais frágeis entre os professores manifestantes, fugissem dos cassetetes, nuvens de gás e pólvora causadas – neste dia – exclusivamente pela ação policial. Foi a primeira vez que, visivelmente, o black bloc remontou a sua origem alemã e colaborou efetivamente com outros núcleos políticos, no caso, o sindicato dos professores, fortalecendo todo o movimento naquela ocasião. Não foi por acaso que, após o dia 1° de outubro, os professores e boa parte da esquerda tenham passado a defendê-los publicamente. “Black bloc é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo” era um grito que se ouvia no dia 7.
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Mas 50 mil pessoas foram às ruas e só se fala em destruição.
Dia 7 de outubro, segunda-feira chuvosa no Rio de Janeiro. A manifestação foi incrível. A pauta específica era o repúdio ao plano de carreira da educação do Eduardo Paes, mas a pauta geral era a melhoria da educação brasileira. Milhares de pessoas, entre professores, bombeiros, artistas, bancários, universitários, secundaristas e simpatizantes. Milhares de mensagens, faixas, cartazes, gritos e cantoria em protestos variados em torno da educação. Até mesmo a UNE-UBES e o PCdoB superaram sua agorafobia adquirida nos últimos anos e estavam lá com suas solitárias bandeiras a engrossar o caldo.
E então, após belíssima marcha pela Avenida Rio Branco, chega-se à Cinelândia. Vale notar que, lembrando muito o evento do dia 17 de junho, a ausência de policiamento efetivo para uma manifestação daquele tamanho só fez crescer a confiança da linha de frente, aumentando a suspeita da tática “terra arrasada” por parte da PM. Certo tempo de gritaria e protesto em frente à Casa do Povo e começa o ritual destrutivo do fronte exaltado e juvenil. Rojões e malvinas contra bancos e, claro, contra a própria Câmara.
No fundo não importa muito quem começou, pois o enredo seria o mesmo, já conhecido de todos.
Que tenha sido um revide, um ataque preemptivo ou uma reação espontânea, a linha de frente das manifestações de sua parte, fez chover bombas, rojões, malvinas, pedras, artefatos caseiros, molotovs e tudo mais que a ritualística de confronto com a polícia tem apresentado. Os dois lados, cedo ou tarde, estavam bem agressivos, e não demorou para que a polícia, mesmo pouco numerosa, avançasse gradativamente na “retomada do território”. Então, em meia hora, a grande manifestação foi dispersada, e surgiram pequenos focos resistentes e radicais espalhados pelo Centro e adjacências. O grosso restante, com suas bandeiras e faixas, voltava para casa sob fortíssima chuva.
Porém, independente dos sentimentos sobre o bloco negro ou até mesmo da justeza de algumas suas práticas – parafraseando Brecht, “O que é uma vidraça de banco diante da criação de um banco?” -, é difícil negar que o “ritual destrutivo” ofensivo, como apresentado no dia 7 de outubro, esteja claramente servindo mais para reforçar o esvaziamento completo das manifestações, especialmente no sentido ideológico-propagandístico, do que para disseminar qualquer apelo por mudanças ou mesmo para angariar mais simpatizantes. A julgar pela capa da maioria dos jornais, pelos editoriais, pelas opiniões propagadas e repercutidas aos montes nas ruas e redes sociais, a velha fórmula de desqualificação já está a pleno vapor.
Como disse Márcio Saraiva: “[e]xiste algo que foge ao nosso controle. A ciência política chama de consequências não-intencionais de uma ação racional. Em outras palavras, a ação é racionalmente correta, lógica, tem um sentido A, mas sem desejar, acaba alcançando um objetivo não desejado que é Y.”
Assim, por mais que seja plenamente justificável e até louvável que parte não ignorável da população esteja reagindo agressivamente à opressão cotidiana e violenta do Rio de Janeiro, dando um “basta” real e contundente – e não apenas uma abracinho na Lagoa -, as consequências do basta podem ser desastrosas no médio e longo prazo.
50 mil na rua e só se fala em “vandalismo e depredação”.
Seja pelas muitas testemunhas que viram com receio a ação direta dos black blocs mais como “ataque” do que como “revide” contra a repressão da polícia; ou, ainda mais importante, seja pelo evidente enfoque que todo o aparato midiático e governista já está dando na desqualificação das manifestações em “vandalismo”, buscando uma vitimização da polícia e do governo local, a ação violenta dos black blocs e simpatizantes está produzindo exatamente os resultados previstos no enredo tradicional: esvaziamento das pautas e a criminalização das manifestações radicais. E seria bastante ingênuo subestimar o poder de formação de consenso do aparelho midiático alinhado ao aparelho estatal aliado.
É fundamental lembrar que, tão ou mais importante do que o fato em si, é como o fato é interpretado e repercutido pelos agentes do seu tempo.
Sem uma base ideológica e propagandística e sem objetivos claros, a violência simbólica da destruição disruptiva, será capturada por quem bem conseguir fazê-lo, dando-lhe o caráter que quiser, positivo ou negativo. E, em geral, infelizmente será usada para os fins mais retrógrados possíveis. Enquanto voam pedras e foguetinhos contra a polícia, retornam porrada, tiro e bomba.
Se vão ao chão agências bancárias, pontos de ônibus e latas de lixo, o que retorna são leis anti-terrorismo, prisões arbitrárias, presunção de culpa e Lei de Segurança Nacional. Sem saber exatamente o que se pretende construir, a destruição pode apenas abrir caminho para outros que sabem exatamente o que querem e não terão escrúpulos em usar todos os agentes possíveis para seu fim.
Além disso, do ponto de vista do confronto em si, é importante lembrar o estrategista Sun Tsu: se nossos adversários e inimigos vêm com verdadeiros exércitos armados, cães e bombas, enquanto nós só temos palavras de ordem, fogos de artifício e muita disposição, nós já perdemos essa batalha. A arma da crítica não supera a crítica das armas, diria outro. Nesse cenário, mesmo que se soubesse exatamente o que fazer depois, é impossível tomar à força a Câmara ou a ALERJ, quiçá o Palácio do Planalto ou qualquer símbolo de comando do governo. Não há a remota possibilidade de isso ocorrer no contexto atual. Além do mais, cabe questionar se isso é desejado: destruir os símbolso de poder, como tomar os espaços de poder, sem um projeto do que ou quem colocar no seu lugar resulta num empreendimento estéril e sem sentido, que somente pavimenta, como dito, o caminho para aqueles que realmente têm um projeto e sabem onde querem chegar. Isso porque nem tem sido necessário ao Estado usar bala de verdade como ocorreu na Turquia e ocorre no Egito.
No contexto atual, a única possibilidade de vitória é a simbólica.
Por vitória simbólica compreende-se principalmente, o constrangimento público e a desmoralização das “verdades do poder constituído” como parte de um processo de tomada de consciência e educação política da população que, envergonhada de sua passividade, (re)descobre sua voz e constrói sua contra-hemegonia em relação ao poder que a domina. O “constrangimento educativo” e a desmoralização aparecem ao tornar evidentes algumas grandes contradições inerentes ao sistema capitalista que se pretende democrático e plural e forçam seus agentes a tomar medidas claramente antagônicas à sua imagem pública. Isto é, os agentes, constrangidos, são levados a tomar medidas claramente anti-constitucionais, a cometer rudezas jurídicas, a fazer apologia à repressão excessiva em plena democracia, a agir com autoritarismo em nome da “liberdade” e claro, a escancarar a promiscuidade das relações entre poder político e poder econômico, como ficou evidente no alinhamento da grande mídia com o governo Cabral-Paes e, claro, no vergonhoso desfecho da CPI dos Ônibus, mostrando que realmente o “Estado não passa de um comitê de negócios da classe dominante”.
Por fim, se bater em professores indefesos é um desastre político, como foi e ninguém em sã consciência política apoiaria a prática, bater em professores que dão suporte a “vândalos e baderneiros” é uma história completamente diferente. A deslegitimação específica dos black blocs busca, na verdade, esvaziar o geral das manifestações e, ao mesmo tempo, dar legitimidade à repressão indiscriminada, de “pacíficos ou não”. Assim, é fundamental que a posição violenta das manifestações surja sempre como revide, como resposta e, jamais, como ataque, como assalto e afronta planejada ao poder constituído, caso contrário acaba por esvaziar a manifestação, esconder as reivindicações e as pautas em fumaça e fogo. Elas não parecem constranger o real agressor, ao contrário, lhe dão motivos públicos suficientes para justificar a repressão que o poder queria desde o início.
No nosso contexto, portanto, a vitória simbólica é erguida em geral a partir de uma derrota física; se constrói ao fazer com que o poder constituído atue contra a opinião da população e contra sua própria opinião como poder representativo do povo, gerando mais e mais insatisfação e escancarando mais e mais contradições inerentes ao “capitalismo democrático”. O constrangimento público enfim, deslegitima o poder constituído e fortalece os seus antagonistas, reforça o ímpeto dos radicais, radicaliza os moderados e os “simpáticos à causa”, por fim, força a todos à politização, incluindo os “indiferentes” e “alienados”, algo que, justamente com a educação universal e séria (motivo das manifestações em questão), formam passos fundamentais para a conscientização da população e posição social no conflito de classes. Relembrando o velho chinês: “De derrota em derrota até a vitória final”.
*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve quinzenalmente para Pragmatismo Politico. (riorevolta@gmail.com)