Depois de 12 anos de batalhas e 63 mortes, vida dos trabalhadores contaminados vira filme. Caso ilustra potencial destruidor dos “defensivos” agrícolas
Recanto dos Pássaros. O nome desse bairro de Paulínia, a 120 quilômetros de São Paulo, pode até ser bonito. Mas lá nesse lugar o amanhecer já não é lindo, nem é permitido deitar-se na relva e escutar o canto dos pássaros, como na canção de Roberto e Erasmo Carlos. Foi nesse bairro que o químico Antonio de Marco Rasteiro viu sua saúde se esvair e muitos amigos morrer devido à contaminação causada pelas empresas Shell e Basf, nas quais trabalhou durante 21 anos consecutivos como líder de produção da unidade industrial de agrotóxicos. Ele ainda estava lá, em 1995, quando a Shell vendeu parte da área para a Cyanamid e reconheceu publicamente que os pesticidas que fabricava no local contaminaram o solo e as águas subterrâneas.
No mesmo ano em que a Basf comprou a unidade, em 2000, Antonio deixou o trabalho e começou a ter uma ideia dos males que sofreria nos anos seguintes. “Quando tomamos conhecimento da gravidade da exposição que sofremos, comecei a ter um acompanhamento de saúde diferenciado. Em 2001, na primeira reunião com os trabalhadores, ficou muito claro que eles iam desenvolver doenças e haveria vários óbitos. Já são 63 mortes”, lamenta o ex-funcionário, um dos coordenadores da Associação dos Trabalhadores Expostos a Substâncias Químicas (Atesq).
Depois de 12 anos na Justiça, em 2012 a ação trabalhista foi levada ao Tribunal Superior do Trabalho (TST), onde ficou até o último abril, quando as empresas, enfim, fecharam um acordo com os trabalhadores. Eles tiveram garantidos o direito ao tratamento médico vitalício para 1.058 ex-funcionários e dependentes, indenização de R$ 200 milhões por dano moral coletivo mais indenizações individuais.
Antonio sobreviveu a um câncer na próstata e a outro no pulmão para contar essa história. E ela será tema do filme O Lucro acima da Vida, um longa-metragem de ficção baseado em fatos reais, ainda em fase de produção. O filme começou a ser planejado quando o processo trabalhista coletivo foi levado ao TST. “Avaliamos que iríamos enfrentar um terreno muito difícil em Brasília e tomamos algumas precauções: contratamos um bom escritório de advocacia, planejamos o filme, um livro e vários outros materiais, porque a gente precisava que as pessoas tivessem a compreensão de que esse caso não poderia ficar impune”, diz o produtor executivo Arlei Medeiros, diretor do Sindicato dos Químicos Unificados de Campinas e da Federação dos Trabalhadores do Ramo Químico (Fetquim), entidades que apoiam o projeto. “No meio disso tudo, obtivemos um acordo muito positivo para os trabalhadores. Mesmo assim, decidimos seguir adiante e contar essa história para que isso nunca mais se repita.”
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O ritmo de filmagem do longa, orçado em R$ 1,3 milhão, varia conforme realizadores captam patrocínios e doações. Os principais financiadores até o momento são a Fetquim, o sindicato de Campinas, a própria associação e os atores, que doaram os cachês, integral ou parcialmente. A previsão é que as filmagens terminem no final deste ano e que o lançamento em circuito comercial seja em 2014.
Para conseguir concluir o filme e fazer a distribuição, a equipe começou uma campanha de arrecadação por meio do site oficial (www.filmecasoshell.com). “Nós sabemos que patrocínio, nesse caso, é difícil porque as empresas se comportam com corporativismo.
Estamos recorrendo a ONGs, associações, sindicatos e pessoas físicas para que nos ajudem com verba, pois fazer cinema custa muito caro. Então, cada vez que conseguimos dinheiro, avançamos nas gravações”, afirma o diretor Nic Nilson, jornalista e cineasta radicado em Campinas.
Histórias reais
As filmagens, que começaram no dia 1° de maio em homenagem aos trabalhadores, estão sendo realizadas em uma cidade cinematográfica montada na Fazenda Santa Terezinha e em uma fábrica abandonada, em Paulínia. Fazem parte do elenco os atores João Vitti, da Record, Richards Paradizzi, o austríaco David Wendefilme e a alemã Constanze von Oertzen, entre outros.
O papel principal é de Deo Garcez, que interpreta Antonio Rasteiro, o articulador do movimentos dos trabalhadores expostos a substâncias químicas que, no filme, chama-se Demarco. “Está sendo muito interessante criar esse personagem que é real. Ele estava, inclusive, como figurante em uma das cenas que gravamos. Ficamos frente a frente. Essa história que mostra a luta dessas pessoas é algo dramático que precisa ser contado”, opina Garcez, que já trabalhou para Globo e Record.
Cerca de 100 ex-funcionários têm feito figuração em cenas como reuniões e assembleias. Para Nic Nilson, o filme é importante, entre outros aspectos, porque mostra a força da união de trabalhadores. “Eles gostam muito de participar porque relembram coisas que aconteceram, reencontram os amigos… Nosso objetivo é mostrar a luta, o companheirismo e essa união que foi arrastando gente e mais gente para esse projeto. O processo culminou no fechamento daquela unidade da Shell e na maior ação, no Brasil, por dano moral coletivo. Mostramos que a luta de trabalhadores consegue, muitas vezes, ultrapassar os desmandos de empresas que só pensam no lucro, que não veem, por outro ângulo, a vida das pessoas.”
Segundo Antonio, além de todos os problemas de saúde, os trabalhadores tiveram de enfrentar o deboche dos que achavam que essa era uma batalha perdida. “Na primeira gravação, participei como figurante. Eu me sinto contemplado tanto com o filme como com o acordo porque muita gente não acreditava na nossa luta. Sofremos muitas críticas, deboche. Diziam: ‘Vocês não vão ganhar nada, a Shell vai comprar a Justiça’. Nos chamavam de vagabundos. E hoje, depois do acordo, de vagabundos passamos a heróis.”
Depois do acordo que garante atendimento médico e indenizações, esses trabalhadores poderiam considerar a batalha ganha e parar por aí. “Estamos no século 21 e temos de encontrar uma saída para não usar mais os agrotóxicos. Eles fazem vítimas no campo, na indústria e na cadeia alimentar, e não é de forma perceptível. Às vezes as pessoas desenvolvem doenças e nem sabem por quê”, afirma o ex-funcionário.
Xandra Stefanel, Rede Brasil Atual