Histórias da ditadura militar que a escola não contava. Projetos criam acervo e material didático para enriquecer aulas sobre os anos de chumbo
As lições sobre a ditadura militar nas escolas de educação básica não estão mais restritas a simples descrição cronológica ou burocrática do período. Iniciativas do governo e de pesquisadores estão colocando à disposição de professores e estudantes material didático mais próximo do que ocorreu nos porões da ditadura, como relatos de perseguidos políticos, detalhamentos de tortura, ação da censura e documentos produzidos pelos serviços de informações da época.
Na UFRJ, por exemplo, foram criados o Núcleo de Pesquisa, História e Ensino das Ditaduras e o projeto Marcas da Memória, com produção de material pedagógico e organização de oficinas para ministrar o conteúdo.
Do lado do governo, a Comissão de Anistia e a Secretaria de Direitos Humanos disponibilizam e distribuem seu acervo, como série de depoimentos de ex-perseguidos políticos e filmes. Num dos materiais da comissão — o livreto “Liberdades democráticas” — há capítulos com “o que foi a ditadura militar”, como agia e resumos de biografias de Lamarca, Marighella e Frei Tito, com dicas de livros e filmes.
As historiadoras da UFRJ não dizem que os atuais livros didáticos omitem a ditadura e suas mazelas, mas os criticam por apresentar o material de maneira cronológica e sem profundidade.
— Os novos livros abordam o tema, mas não têm visão global da ditadura. Os temas não dialogam entre si. Parece que não é um governo só, que são vários e sucessivos, quando se sabe que foram 21 anos de ditadura. E a luta armada sempre entra num quadrinho a parte, como se não tivesse relação. O que constatamos até agora é que há uma sede dos professores por material didático sobre o assunto — diz a pesquisadora Samantha Quadrat, que participa dos projetos da UFRJ.
Livros tratam período de forma pouco analítica
A historiadora Alessandra Carvalho, do Colégio de Aplicação da UFRJ, diz que os livros de História dão bom espaço para o período dos governos militares, mas sempre numa perspectiva mais descritiva do que analítica.
— Aparece assim: primeiro veio o governo Castelo Branco, depois o AI-1, o AI-2 e por aí vai. Até aparece a luta armada e o pós-AI-5, mas numa ordem cronológica direta, o que fica extenso para o aluno e difícil de perceber o eixo de explicação que organize essa cronologia. O ideal seria relacionar passado e presente. Houve uma Lei de Anistia, referendada pelo STF, mas contestada, a defesa de punição para torturadores, os julgamentos na Comissão de Anistia. Agora, a Comissão da Verdade. Tem muito mais a ser contado — disse Alessandra Carvalho.
Samantha Quadrat e Alessandra Carvalho vão ministrar uma oficina neste mês num seminário sobre o ensino da ditadura nas escolas. No material didático que apresentarão aos professores estão, entre outros, um cartaz distribuído pelos órgãos da repressão e informação sobre perseguidos políticos e cartas enviadas por cidadãos brasileiros à Divisão de Censura de Diversões Públicas, muitas endereçadas diretamente ao presidente Ernesto Geisel, sobre os mais variados assuntos. As autoridades do governo respondiam.
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Nesse seminário será apresentado ainda um livro para subsidiar professores — “O Ensino da Ditadura Militar Nas Escolas: problemas e propostas de trabalho”. As pesquisadoras responsáveis por esse projeto também dão atenção a história oral da ditadura e já colheram 44 entrevistas de ex-perseguidos políticos e de parentes de vítimas e desaparecidos pelos agentes do Estado.
Esses vídeos e áudios estarão disponíveis no acervo da universidade e na Comissão de Anistia. E serão disponibilizados para professores e estudantes. As organizadoras são as pesquisadoras Maria Paula Araújo, Desirree dos Reis Santos e Izabel Pimentel. A Comissão de Anistia encomenda projetos para universidades, como o “Marcas da Memória”.
— É uma temática sensível, mas questões de direitos humanos chamam a atenção dos jovens. Diante de temas como a tortura e outras violações daquela época ninguém fica passivo — contou Izabel Pimenta, pesquisadora da UFF.
O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, promove, na sua gestão, essas iniciativas de levar o conteúdo sobre o regime militar aos estudantes.
— Penso que o ensino da História deve se apropriar da memória conquistada nestes 25 anos de democracia e refletirem sobre os efeitos do autoritarismo nesta véspera dos 50 anos do golpe — disse Abrão.
Agência Globo