Leonardo Boff: Teologia feita por mulheres a partir da feminilidade
Entre tantas do presente, resolvi referir duas grandes teólogas do passado, verdadeiramente inovadoras: Santa Hildegarda de Bingen (1098-1179) e de Santa Juliana de Norwich ((1342-1416)
Leonardo Boff
O Papa Francisco tem dito que precisamos de uma teologia mais profunda acerca da mulher e de sua missão no mundo e na Igreja. É certo, mas ele não pode desconhecer que hoje existe vasta literatura teológica feita por mulheres na perspectiva das mulheres, da melhor qualidade, o que tem enriquecido enormemente nossa experiência de Deus. Eu mesmo tenho me dedicado intensamente ao tema, culminando com os livros O rosto materno de Deus (1989) e Feminino-Masculino (2010) junto com a feminista Rosemarie Muraro.
Entre tantas do presente, resolvi referir duas grandes teólogas do passado, verdadeiramente inovadoras: Santa Hildegarda de Bingen (1098-1179) e de Santa Juliana de Norwich ((1342-1416).
Hildegarda vem considerada quiçá como a primeira feminista dentro da Igreja. Foi uma mulher genial e extraordinária para o seu tempo e para todos os tempos. Monja beneditina, exerceu a função de mestra (abadessa) de seu convento de Rupertsberg de Bingen no Reno, profetisa (profetessa germanica), mística, teóloga, inflamada pregadora, compositora, poetisa, naturalista, médica informal e escritora.
Leia também
-
Mulheres ocupam 28% dos cargos de secretariado no país
-
Eleições 2024: mulheres candidatas recebem 68,2% dos comentários ofensivos no 2º turno
-
Lula diz que alistamento feminino dará diversidade às Forças Armadas
-
Policial fardado espanca mulher com tapas e chutes durante abordagem no Paraná
-
Boxeadora argelina implora por fim de ataques e bullying: "Isso pode destruir a vida das pessoas"
Seus biógrafos e estudiosos consideram um mistério o fato desta mulher, no estreito e machista mundo medieval, ter sido o que foi. Em tudo revelou excelência e criatividade. Muitas são suas obras, místicas, poéticas, sobre a ciência natural e sobre música. A mais importante e lida até hoje é Sci vias Domini.
Hildegarda foi acima de tudo uma mulher dotada de visões divinas. Num relato autobiográfico diz: “Quando tinha quarenta e dois anos e sete meses, os céus se abriram e uma luz ofuscante de excepcional fulgor fluiu para dentro de meu cérebro. E então ela incendiou todo o meu coração e peito como uma chama, não queimando, mas aquecendo… e subitamente entendi o significado das exposições dos livros, ou seja, dos Salmos, dos Evangelhos e dos outros livros católicos do Velho e Novo Testamentos”(veja o texto na Wikipedia, Hildegarda de Bingen com excelente texto e literatura).
É um mistério como tinha conhecimentos de cosmologia, de plantas medicinais, da física dos corpos e da história da humanidade. A teologia fala “ciência infusa” como um dom do Espírito Santo. Hildegarda foi galardoada com esse dom.
Ela desenvolveu uma visão curiosamente holística, entrelaçando sempre o ser humano com a natureza e com o cosmos. É nesse contexto que fala do Espírito Santo como aquela energia que confere a “viriditas” a todas as coisas. “Viriditas” provem de verde; significa o verdor e o frescor que marca todas as coisas penetradas pelo Espírito Santo. (Flanagan, S. Hildegard of Bingen1998, 53).
Ela desenvolveu uma imagem humanizadora de Deus pois Ele rege o universo “com poder e suavidade” (mit Macht und Milde) acompanhando todos os seres com sua mão cuidadosa e seu olhar amoroso.Ela ficou especialmente conhecida pelos métodos medicianais seguidos na Áustria e na Alemanha por medicos até os dias de hoje. Revela um conhecimento surpreendente do corpo humano e de quais princípios ativos das ervas medicinais são apropriados para os distintos distúbios. Sua canonização foi ratificada por Bento XVI em 2012.
Outra notável mulher foi Juliana de Norwich ((1342-1416) da Inglaterra Pouco se sabe sobre sua vida, se era religiosa ou uma leiga viúva. O certo é que viveu todo tempo reclusa, numa parte murada da igreja de São Julião. Ao completar 30 anos teve uma grave enfermidade que quase a levou à morte. Num dado momento, durante cinco horas, teve vinte visões de Jesus Cristo. Escrevei imediatamente um resumo de suas visões. Vinte anos após, tendo refletido longamente sobre seu significado, escreveu uma versão longa e definitiva sob o título Revelations of Divine Love (Revelações do amor divino: Londres 1952). É o primeiro texto escrito por uma mulher em ingles.
Suas revelações são surpreendentes, pois vem perpassadas de um inarredável otimismo, nascido do amor de Deus. Para ela, o amor é sobretudo alegria e compaixão. Não entende, as doenças como era crença popular na época e ainda hoje em alguns grupos, como castigos de Deus. Para ela, as doenças e pestes são oportunidades para encontrar Deus.
O pecado é visto como uma espécie de pedagogia pela qual Deus nos obriga a conhecermo-nos a nós mesmos e a buscarmos a sua misericórdia. Diz mais: atrás daquilo que falamos de inferno existe uma realidade maior, sempre vitoriosa que é o amor e a misericórdia de Deus.
Pelo fato de Jesus ser misericordioso e compassivo ela é nossa querida Mãe. Deus mesmo é Pai misericordioso e Mãe de infinita bondade (Revelações, 119).
Somente uma mulher poderia usar esta linguagem de amorosidade e compaixão e chamar a Deus de Mãe de infinita bondade. Assim vemos uma vez mais como a voz feminine é importante para termos uma concepção não patriarcal e por isso mais completa de Deus e do Espírito que perpassa toda a vida e o universo.
Muitas outras mulheres poderiam ser aqui referidas, como Santa Teresa d’Avila (1515-1582), Simone Weil (1909-1943), Madaleine Debrêl (1904-1964)e entre nós Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer que pensaram e e pensam a fé a partir de seu ser feminino. E continuam nos enriquecendo.