Na sociedade de consumo, o que vale é o reconhecimento que se tem com os bens que se ostenta. É como se isso invertesse a questão. Talvez a ostentação, mais que um sintoma de nossa tolerância, seja a causa da corrupção
Algo que sempre me intrigou foi a exibição por funcionários públicos de um patrimônio incompatível com seu salário. Não só pelo patrimônio em si, mas pela desfaçatez de ostentá-lo, sem a mínima preocupação de que isso gerasse desconfiança.
Acontece em todos os níveis. É o secretário do município que assume o cargo com um carro popular e depois de poucos anos tem um de R$ 200 mil; é o delegado que coleciona veículos caros e que vai todo ano à Europa; é o fiscal que publica fotos de sua casa suntuosa nas redes sociais.
Um dos fiscais do município de São Paulo, preso no recente escândalo de corrupção envolvendo construtoras, tinha em sua garagem um Porsche amarelo, que está longe de ser um carro discreto e ainda mais longe de ter um valor compatível com sua renda. Essa não era uma questão que o preocupasse.
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A despreocupação em esconder o patrimônio obtido pela corrupção revela, a meu ver, uma condescendência social com a corrupção, já que o funcionário não recebe nenhuma censura social, não passa nenhum constrangimento, apesar de ser gritante que seu padrão de vida é incompatível com seus vencimentos.
Na sociedade de consumo, o que vale é o reconhecimento que se tem com os bens que se ostenta. É como se isso invertesse a questão. Talvez a ostentação, mais que um sintoma de nossa tolerância, seja a causa da corrupção. Nossa sociedade de mercado leva as pessoas a procurarem a “distinção pelo consumo”, como diz o sociólogo Rogério Baptistini, e talvez seja a vontade de ter um carrão, uma casa suntuosa, um relógio caro, para distinguir-se da maioria, a causa da corrupção.
Como é possível que o patrimônio desses servidores aumente tanto em tão pouco tempo sem que eles tenham problemas com a Receita? O suposto esquema de corrupção das construtoras começou a ser investigado quando foram comparados os bens dos funcionários — a bagatela de R$ 80 milhões — com seus vencimentos. Isso indica uma obviedade: que o caminho da comparação do patrimônio do servidor com seu salário, com o uso da tecnologia, é um bom caminho para a investigação.
Por outro lado, parece evidente que nossa sociedade fica mais indignada com a espécie de crime cometido ordinariamente pela ralé do que o cometido pela elite. Claro que é mais fácil perceber a crueldade de um homicídio que a morte por falta de saneamento básico ou de um hospital público decente.
A realidade é que o direito penal é vocacionado para prender os autores dos crimes característicos da população pobre, ao passo que os delitos da elite são tratados de modo mais brando. Isso explica que os sarneys da política vivam reclamando leis mais severas e outros vivam aplaudindo as execuções feitas pela polícia. Claro, a lei penal e a polícia não são para eles.
A mesma sociedade que se deleita com a execução do latrocida é a que admira, senão inveja, o belo carro do fiscal corrupto.
Imagens: carros do auditor fiscal corrupto apreendidos
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Autor: José Nabuco Filho. Mestre em Direito Penal pela Unimep, professor de Direito Penal da Universidade São Judas Tadeu / DCM