Jovem negro é acorrentado nu em poste por grupo de ‘justiceiros’
Jovem negro é acorrentado nu em poste por grupo de ‘justiceiros’. Ele foi espancado e levou uma facada na orelha
Um adolescente foi espancado e preso a um poste por uma trava de bicicleta, nu, na noite da última sexta-feira, na Av. Rui Barbosa, no Flamengo, Zona Sul do Rio. Ele teria sido atacado por um grupo de três homens, a quem chamou de “os justiceiros”, segundo a coordenadora do Projeto Uerê, Yvonne Bezerra de Melo, de 66 anos. A artista plástica foi chamada por vizinhos que flagraram a cena, registrou a situação e compartilhou em sua página no Facebook. Internautas sugerem que ele seja um ladrão.
— Eu não quero saber se ele é bandidinho ou bandidão, você não pode amarrar uma pessoa no meio da rua. Aquela área do Flamengo teve um aumento muito grande de violência e roubos recentemente. Como as coisas não melhoram, um bando de garotões se juntam e começam a fazer justiça pelas próprias mãos. Sei que tem muita marginalidade e a polícia é ineficaz, mas você não pode juntar um grupo e começar a executar pessoas — explica Yvonne, que estima que o rapaz tenha entre 16 e 18 anos. — Eu perguntei a ele quem tinha feito aquilo e ele disse que eram os “justiceiros de moto”. Ele foi espancado, levou uma facada na orelha, arrancaram a roupa dele e prenderam pelo pescoço. E ninguém na rua faz nada para impedir.
Ameaças
Bombeiros do Quartel do Catete atenderam a ocorrência de agressão e soltaram o rapaz. Ele foi levado para o Hospital Municipal Souza Aguiar. Yvonne conta que os bombeiros precisaram usar um maçarico para abrir a trava de bicicleta.
A artista plástica já chegou a receber ameaças por ajudar e defender o rapaz:
— Eu recebo ameaças por defender, mas estamos falando de seres humanos. Recebi no Facebook a seguinte mensagem: “Pra mim essa raça tem que ser exterminada com requintes de crueldade”. De um rapaz jovem, que não deve ter nem 20 anos. Se o Estado não toma providências para resolver o problema da violência, os grupos nazistas, neonazistas se unem e essa mentalidade toma conta.
Fundadora do Projeto Uerê — ONG que oferece educação a crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem decorrentes de traumas —, Yvonne trabalha com projetos sociais no Brasil desde os anos 1980. Ela conta que, nesta época, esse tipo de ataque era comum.
— Nos anos 80 existiam, na Zona Sul, gangues de rapazes que saiam à noite para bater em mendigos e em meninos de rua. Depois, isso parou porque houve certa redução da criminalidade. Se ele rouba, que prendam, mas não pode torturar no meio da rua — conclui. — Esse tipo de crime tem muito racismo, muito preconceito. Se fosse o contrário, ia ser um Deus nos acuda. “O branquinho amarrado no poste, coitadinho!”. O que está acontecendo é que a violência está criando o ódio da população. Eu entendo, ninguém quer ser esfaqueado andando no Aterro (do Flamengo), mas você tem leis, tem uma polícia. Não pode fazer justiça com as próprias mãos.
Leia abaixo texto publicado pelo internauta João Pedro em sua página do Facebook:
Dia primeiro de fevereiro, véspera do dia de Iemanjá. Na noite seguinte, a região da Pedra do Sal, onde, não muito mais que um século atrás, havia um mercado de escravos e troncos para punição, seria tomada pela alegria fraterna de uma roda de samba tradicional. Mas antes disso, a poucos quilômetros dali, no bairro do Flamengo, os antigos horrores da Pedra da Prainha seriam revividos. Puseram um negro nu preso pelo pescoço com uma trava de metal num pelourinho improvisado. Segundo o comentário satisfeito de quem publicou a foto (sem qualquer tarja no rosto, perpetuando a humilhação pública), ele estava assaltando pessoas. Pra servir de exemplo aos pretos ladrões. Ao que tudo indica, obra de um grupo local organizado com esse intuito. Recentemente, um caso semelhante aconteceu numa praia na Zona Sul.
Se esse jovem não estava na Pedra do Sal de hoje ouvindo a alta poesia da música negra, tomando cerveja e conversando com seus amigos sobre seu trabalho de mestrado não é porque tenha um delírio malévolo de assaltar pessoas, fruto de uma natureza mais maligna ou menos humana que qualquer pessoa, mas porque não existe espaço objetivo pra dignidade e felicidade de todos no projeto capitalista, racista e violento de país que dirige o Brasil. Sem entender isso, não se entende nada e, facilmente, até mesmo sem perceber, se cai no colo dos fascistas.
É preciso saber que, oficial e oficialescamente, o Estado, seu judiciário e sua polícia fazem isso e pior todos os dias. Mas a resistência cotidiana, as lutas cotidianas e valores elevados presentes na consciência das massas exercem contrapressão. No entanto, a prova real do caráter humanamente falido do Estado burguês e de sua justiça degenerada é que na medida em que um setor cada vez mais amplo de civis se radicalizarem à direita e aderirem a seus valores e métodos, estaremos mais e mais próximos da barbárie do fascismo, sem subterfúgios. Não existe vacina política histórica, nada está garantido e nada está assegurado; a humanidade se reinventa todos os dias.
Repúdio absoluto e urgência de responder isso à altura. Não pode deixar naturalizar de jeito nenhum. Peço a todos que façam chegar a todas as organizações políticas, mandatos, movimentos e entidades democráticas de que tenham conhecimento.
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com informações do Facebook e jornal Extra