Por que andar de ônibus no Brasil não é politicamente correto? Foto de atriz Lucélia Santos usando transporte público no Rio circula nas redes sociais e vira alvo de brincadeiras de mau gosto
No início da última semana, uma foto da atriz Lucélia Santos, de 56 anos, circulou pelos portais, sites de fofoca e as redes sociais no Brasil. Na segunda-feira, a atriz, que atualmente mora no Rio de Janeiro, tomou o ônibus 524 (Botafogo-Barra da Tijuca) para se locomover pela cidade onde mora. Um fã tirou uma foto e postou nas redes sociais “524 lotado. Me ofereço pra segurar a bolsa da moça. E quando olho, é a atriz Lucélia Santos”.
A foto da atriz – que ficou internacionalmente conhecida quando estreou na televisão, em 1976, no papel da escrava Isaura, na novela homônima que foi transmitida em 79 países – usando uma camisa branca e de pé no ônibus rapidamente circulou na internet. Poderia ser apenas uma nova fofoca, daquelas que abastecem diariamente os veículos que vivem do que fazem os famosos fora das telas. Mas não foi. Comentários do tipo “não está fácil pra ninguém” pipocaram acompanhados da imagem da atriz. Como se andar de ônibus fosse sinal de decadência. Mas no provincianismo brasileiro de cada dia, é assim que as pessoas enxergam o uso do transporte coletivo.
“Grande parte das pessoas que postaram essa foto (com os comentários maldosos) devem usar o transporte coletivo também”, diz o arquiteto e especialista em transporte público Flamínio Fichmann. “Existe um preconceito das pessoas em relação a elas mesmas. É uma questão de autoimagem”.
Esse problema de autoimagem – ou seria autoestima? – faz com que, diariamente, as grande cidades sejam inundadas com milhões de carros e motos, estancando a mobilidade das ruas. De acordo com o Plano Diretor de Transportes Urbanos (PDTU) do Rio de Janeiro, entre 2002 e 2012, a quantidade de usuários do transporte individual (táxis, motocicletas e carros particulares) aumentou de 25% para 28%, enquanto o percentual das pessoas que usam o transporte coletivo caiu de 74% para 71%.
Na cidade de São Paulo, a maior do país, os números seguem na mesma direção: Entre 2007 e 2012, os deslocamentos realizados em carros, motos e táxis subiram 21%, contra 16% em ônibus, trens e metrô, segundo a secretaria de Transportes Metropolitanos da cidade. São 12,5 milhões de carros circulando pela cidade todos os dias.
A opção pelo individual em detrimento do coletivo contamina uma população com valores contraditórios. Em época de manifestações em defesa dos direitos civis, rotular negativamente uma pessoa por andar de ônibus – um direito de todo indivíduo – anda na contramão de qualquer passeata. “Todo mundo acha muito bacana falar que em Paris, por exemplo, as pessoas vão à ópera de metrô”, diz Fichmann. “Isso é chique, descolado. Aqui, uma atriz andar de ônibus vira motivo de piada. Isso é um absurdo. O fato dela usar o transporte coletivo deveria melhorar a referência e avaliação desse sistema, não o contrário”, diz.
Falando em Paris, o ministro da Ecologia da França Philippe Martin anunciou que, entre esta sexta-feira 14 e o domingo 16, os serviços de transporte público na cidade serão gratuitos, em uma medida de incentivo ao uso do transporte coletivo para diminuir a poluição do ar. Outro bom exemplo, perto de Paris e longe do Brasil, ocorre em Londres, onde o ex-primeiro ministro Tony Blair, e o atual, David Cameron, já apareceram algumas vezes indo para o trabalho de metrô, assim como o ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg. Aqui no Brasil, o ex-governador José Serra e o atual, Geraldo Alckmin, assim como o prefeito da cidade Fernando Haddad já realizaram o feito, mas apenas como uma ação de marketing e, definitivamente, eles não incorporaram o hábito em suas rotinas.
O fato é que, enquanto o Governo continuar incentivando a compra e o uso do transporte individual – aprovando medidas como a isenção de impostos para a compra de carros e o congelamento do preço da gasolina -, mas investindo pouco em infraestrutura de transporte, não há medida capaz de fazer com que as pessoas gastem seu dinheiro na catraca do ônibus e não na bomba de gasolina.
O troco
Em resposta aos comentários, nesta quinta-feira, a atriz se manifestou pelo seu Twitter. Numa série de seis publicações, Santos defendeu o transporte público, reclamou da imprensa e da baixa qualidade dos ônibus no país. “O Brasil é o único país que conheço onde andar de ônibus e politicamente incorreto!!!!!!! Vai entender…” E “Isso porque os ônibus aqui e transportes coletivos de um modo geral são precários e ordinários o que mostra total desrespeito a população!”, disse ela em dois dos posts publicados.
“Ela deveria andar mais de ônibus agora e mostrar para as pessoas que essa crítica é absurda e ela tem a liberdade de optar pelo transporte que ela acha mais conveniente”, diz Fichmann, enquanto a atriz postava uma foto no Instagram, dentro de um ônibus: “E viva o transporte público de boa qualidade!”
Marina Rossi, El País