Claudia Silva Ferreira, negra, 38 anos, auxiliar de limpeza num hospital, mãe de 4 crianças que ficaram órfãs, que cuidava de outros 4 sobrinhos para a irmã ou cunhada poderem trabalhar. Quem vai gritar por ela?
Camilla de Magalhães Gomes, Blogueiras Feministas
2014 ainda está no início mas, após três meses, parecem proliferar as notícias que criam em nós a sensação de: “nunca vi coisa tão horrível”. Nunca vi, até que a próxima barbárie seja cometida e nos convença que isso deve mesmo ser apenas parte do cotidiano. Nesse caminho, ficamos anestesiados e acostumados, até que não se tenha mais nada a dizer, apenas um suspiro e um muxoxo: “mais um”.
Na manhã do dia 17 de março, começa a ser divulgado na internet o link de um vídeo com o título: Viatura da PM arrasta mulher por rua da Zona Norte do Rio. Apertei o play e não passei de dois segundos. Não recomendo. Mas a leitura da notícia é essencial. Mais do que isso: a leitura crítica do que ela representa é essencial.
Na descrição:
Eram cerca de 9h desse domingo, quando uma viatura do 9º BPM (Rocha Miranda) descia a Estrada Intendente Magalhães, no sentido Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio, com o porta-malas aberto. Depois de rolar lá de dentro e ficar pendurado no para-choque do veículo apenas por um pedaço de roupa, o corpo de uma mulher foi arrastado por cerca de 250 metros, batendo contra o asfalto conforme o veículo fazia ultrapassagens. Apesar de alertados por pedestres e motoristas, os PMs não pararam. Um cinegrafista amador que passava pelo local registrou a cena num vídeo.
A mulher arrastada era Claudia Silva Ferreira, de 38 anos, baleada durante uma troca de tiros entre policiais do 9º BPM e traficantes do Morro da Congonha, em Madureira, enquanto ia comprar pão. Em depoimento à Polícia Civil, os PMs disseram que a mulher foi socorrida por eles ainda com vida, e levada para o Hospital Carlos Chagas, em Marechal Hermes, mas não resistiu. Já a secretaria Estadual de Saúde informou que a paciente já chegou à unidade morta. Ela levou um tiro no pescoço e outro nas costas.
Mãe de quatro filhos, Claudia, conhecida no Morro da Congonha como Cacau, era auxiliar de serviços gerais do Hospital Naval Marcílio Dias, no Lins. Nascida e criada em Madureira, ela ainda cuidava de quatro sobrinhos. A vítima faria 20 anos de casada com o vigia Alexandre Fernandes da Silva, de 41 anos, em setembro deste ano.
Uma polícia que atira sem quê nem porquê, que, ao ser interpelada sobre a brutalidade de arrastar uma mulher pendurada no carro, responde: “ela já estava morta”; perdeu sua legitimidade há muito tempo.
Essa também é a mesma polícia que debocha e produz factóides para justificar seus atos, como afirmar que Claudia estava em posse de quatro armas, quando todos afirmam que ela tinha ido comprar pão.
No mesmo fim de semana, também no Rio de Janeiro, um vídeo mostra um policial militar arrastando uma jovem pelos cabelos na Cidade de Deus. Nessa mesma operação, a gari Vânia Ferreira da Silva Corrêa, de 42 anos, foi baleada no quadril esquerdo quando estava na porta da sala de casa. Assim como Claudia, todas mulheres negras, moradoras de bairros pobres.
Quando o menino João Hélio foi arrastado e morto por criminosos, a comoção social gerada era de ensurdecer. Anos depois, dedicaram a ele o projeto do novo Código Penal — alvo de muitas críticas pela expressão do punitivismo e da indignação seletiva que viraram quase regra sobre o tema no país.
Quem vai gritar por Claudia? Quem vai saber seu nome além dos familiares e das pessoas de sua comunidade? Quem vai se insurgir contra os criminosos fardados, agentes do estado? Quem pedirá a responsabilização desses agentes? Por que o barulho diante dessa brutalidade perpetrada por agentes públicos é tão menor?
Por quanto tempo mais serão justificadas violências como essa, com falas como “o estado tem o monopólio da violência”, “o tráfico faz pior”, “temos uma guerra”? Quem ainda não consegue ver a responsabilidade do Estado e da Polícia na criação, fomento e manutenção dessa “guerra”?
A Polícia Militar do Rio de Janeiro divulgou, na tarde de segunda-feira, os nomes dos três policiais militares do 9º BPM (Rocha Miranda) que estão presos em flagrante. Eles prestaram depoimento e foram encaminhados para o presídio Bangu 8. Também serão desligados do 9º BPM (Rocha Miranda). Uma perícia feita na viatura em que o corpo de Claudia ficou preso e foi arrastado, constatou que a tranca da mala do veículo não estava com defeito.
Aqueles que argumentam usando as cartas da segurança pública e da política criminal deveriam se envergonhar de jogar a cartilha da lei e da ordem contra as garantias constitucionais.
Aqueles que argumentam dizendo que a crítica enfraquece a esquerda e dá elementos para a crítica da direita não perceberam que, nessa matéria, direita e esquerda tem tido historicamente as mesmas respostas repressoras e policialescas quando o assunto é segurança pública.
Os que rebatem a crítica perguntando o que colocaremos no lugar da Polícia Militar, deveriam começar desnaturalizando a militarização como essencial para a segurança e olhar para experiências que funcionam independente desse critério.
Vi tanta gente gritar por Santiago Andrade — o cinegrafista morto em uma manifestação. Queria vê-los gritar por Claudia Silva Ferreira. Mulher negra, 38 anos, auxiliar de limpeza num hospital, mãe de 4 crianças que ficaram orfãs, que cuidava de outros 4 sobrinhos para a irmã ou cunhada poderem trabalhar. Queria saber porque seu corpo vale menos ou porque poucos sabem seu nome.
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