"Rodriguinho e o pensamento infantil", resposta do deputado Jean Wyllys ao colunista Rodrigo Constantino, da revista Veja
Por Jean Wyllys*
Em desenhos de super-heróis animados destinados às crianças, a vida é dividida de maneira simples e esquemática: há o Bem e o Mal; heróis e vilões: de um lado, Esqueleto; do outro He-Man, ou, de um lado, a Legião do Mal; do outro, a Liga da Justiça. Nesse esquema montado para estruturas cognitivas de uma criança em formação, o mundo é o cenário de uma guerra entre dois lados perfeitamente definidos, sem contradições nem interseções. Contudo, quando a gente cresce e começa a conhecer o mundo como ele é de fato, a vida se apresenta em sua complexidade e precisamos nos esforçar mais para compreendê-la fora do esquema simplista dos desenhos animados de nossa infância: é o que chamamos de amadurecimento. Há, no entanto, pessoas que, mesmo depois de adultas, continuam analisando o mundo com as estruturas cognitivas e emocionais de uma criança e, por isso, têm sérias dificuldades em lidar a complexidade da vida. É o caso de Rodriguinho, aquele colunista da revista marrom e enfant terrible que distrai a corte de reacionários brasileiros sem discernimento, mas com muita indigência intelectual. Em seu novo desabafo macartista, ele responde ao meu texto – “Desonestidade intelectual” – publicado nesta sexta-feira em O Globo, tentando enquadrar meu pensamento em seus esquemas infantis por não conseguir ir além: quem é o “bom” e quem o “mau”? Oriente ou Ocidente? Negros ou brancos? Gays ou héteros? Feijão preto ou o caviar?
Vou tentar ser didático e espero que dessa vez ele consiga compreender. E passarei ao largo de suas referências ao BBB, porque estas são frutos de sua inveja mal-disfarçada do sucesso alheio. Deve ser mesmo frustrante para alguém criado a Toddy e Ovomaltine em bairros nobres e formado em escolas papai-pagou-filhinho-passou ter de ver um gay assumido, mestiço, nordestino, sem apadrinhamentos nem capitanias hereditárias, vindo das camadas mais pobres da população na posição que eu ocupo hoje. Também não comentarei outras pérolas da estupidez que não valem a pena.
No primeiro texto que Rodriguinho publicou em O Globo, ele dizia que o movimento gay é de esquerda; odeia Ocidente — e, portanto, os brancos — e gosta da África; e que, por isso, não critica a lei homofóbica aprovada em Uganda, já que, para fazê-lo, o movimento gay precisaria dizer que os negros são homofóbicos. Vejam como sua simplificação é burra — e racista — ao ponto de não diferenciar “negros” de “africanos” e “brancos” de “ocidentais”. Ele precisa colocar um grupo inteiro do lado dos bons e o outro — porque, em sua percepção como na das crianças, o mundo é binário e só tem dois grupos de pessoas — do lado dos maus.
E precisa imaginar que eu faço o mesmo, só que no sentido contrário ao dele: Uganda aprovou uma lei anti-gay porque os negros africanos esquerdistas são homofóbicos, mas nós, gays, não criticamos essa lei porque somos de esquerda e, portanto, gostamos dos negros e detestamos os brancos, que são ocidentais judeus e cristãos, e, por isso, inimigos da esquerda…
Harvey Milk era negro, Obama é branco e Karl Marx era oriental. Não é mesmo? (Aviso que isto é uma ironia, já que a claque de Rodriguinho tem as mesmas estruturas cognitivas que a dele e, por isso, pode não captar a ironia de um texto.)
Além de informar o colunista sobre tudo o que os movimentos gays do mundo inteiro têm feito para denunciar a lei homofóbica de Uganda e outras semelhantes, eu tentei explicar para ele algumas questões básicas que ele parece desconhecer sobre a história da África. Tentei que ele compreendesse que as primeiras leis homofóbicas desse continente (as chamadas leis “antissodomia”) foram levadas pelo Império Britânico quando dominava vastos territórios por ali; e que a onda de preconceitos anti-homossexuais que infelizmente tem se espalhado por lá nos últimos anos não tem raízes nas culturas africanas, como o colunista imagina, mas na religião dos conquistadores e, mais recentemente, na ação política de igrejas evangélicas fundamentalistas dos EUA que investem milhões de dólares na “evangelização” desses povos, usando o preconceito contra os homossexuais como estratégia de marketing e financiando campanhas de políticos homofóbicos.
São dados da realidade, comprováveis com uma mínima pesquisa histórica. Há livros, documentários e teses que se debruçam sobre esse fenômeno e estão disponíveis para quem quiser ler. E, afinal de contas, não deveria ser difícil de compreender, porque no nosso próprio país, a força do discurso homofóbico vem, também, do fundamentalismo evangélico (que não é a mesma coisa que o evangelismo ou o cristianismo, mas uma versão fanática, extremista e preconceituosa dele, da mesma maneira que o islamismo dos aiatolás do Irã ou dos terroristas de Al-Qaeda não é a mesma coisa que a religião de Maomé, mas uma versão fanática, extremista e preconceituosa dela).
Contudo, sua estrutura cognitiva infantil –que divide a vida entre bons e maus– precisava adaptar minha resposta à sua visão do mundo. Então, o que ele entendeu é que eu estava dizendo que a culpa da homofobia na África é “do Ocidente”, da Grã-Bretanha e dos EUA, e não, como ele acha, “dos negros”.
Ele diz: para Jean Wyllys, a culpa é “do homem branco ocidental”. Não, menino, você não está entendendo nada! Há fatos históricos, como a implantação das leis antissodomia britânicas nas colônias africanas, e há fatos mais atuais, como a ação das igrejas fundamentalistas dos EUA que desmentem a sua burra e racista teoria de que a homofobia é um “traço cultural dos negros africanos”; porém, nem uma coisa nem a outra dizem respeito ao Ocidente como um todo uniforme e atemporal: nem as leis dos britânicos daquela época dizem respeito à sociedade atual desse país, que tem até casamento igualitário — de fato, os gays britânicos, que também são ocidentais, foram vítimas dessas leis, como testemunha a história do cientista Alan Turing —, nem a ação das igrejas neo-pentecostais americanas dizem respeito ao povo americano como um todo.
E nada disso tem a ver com a esquerda e a direita — afinal, da mesma maneira que o Império Britânico levou leis homofóbicas à Índia e às colônias africanas, o estalinismo soviético levou homofobia e outras calamidades aos países socialistas. A história da humanidade vai além, muito além, do esquema mental e da indigência intelectual que a divide em Legião do Mal e Liga da Justiça.
É fato que a homofobia — o nome que hoje adotamos para se referir à interdição e aversão à relação sexual entre pessoas do mesmo sexo — é um fundamento das religiões abraâmicas — as chamadas “religiões do livro”: o judaísmo, o islamismo e o cristianismo; e está ligada à exortação “crescei e multiplicai-vos” feita pelo Deus de um povo (as tribos patriarcais semitas) que precisava sobreviver à fuga do cativeiro até a “Terra Prometida”.
Essa exortação fez, do sexo para procriação, o único legítimo, e se converteu num valor reproduzido e transmitido ao longo dos séculos, pela língua e demais regimes de representação, nas culturas engendradas e influenciadas por essas religiões. E as sociedades ocidentais ainda carregam o legado dessa história, embora muitos teólogos e líderes religiosos já não façam a mesma leitura desses fatos (um exemplo é o arcebispo anglicano Desmond Tutu, da África do Sul, ativo militante contra o racismo e a homofobia, mas também tem outros exemplos nas igrejas protestantes dos “ocidentais” EUA e Grã-Bretanha). Também é fato que as sociedades ocidentais, capitalistas e com democracias liberais (nem todas as sociedades capitalistas são ocidentais, nem todas são democráticas), no último século, avançaram mais (e mais rápido) no reconhecimento dos direitos humanos da população LGBT e outras minorias, do que outros regimes.
E é fato, também, que os países africanos mais subdesenvolvidos e com regimes pós-coloniais que ainda nem chegaram ao capitalismo liberal têm condições de miséria (tanto no acesso aos bens de consumo quanto aos bens culturais e à educação formal) e carência de regras democráticas que fazem com que eles sejam mais permeáveis à ação dos fundamentalismos religiosos. A própria Igreja católica tem começado a olhar mais para a África e a América Latina, ao tempo que perde influência na Europa, que já foi seu berço e seu império. Para entender tudo isso tem que estudar e pensar um pouco mais!
Eu poderia continuar enumerando outros fatos, mas o fundamental é compreender que o mundo é bem mais complexo do que os desenhos animados e não há blocos estáticos, uniformes, atemporais, essenciais. A luta contra a homofobia, o racismo, o machismo, a intolerância religiosa e outras ameaças contra a liberdade e a dignidade humana é um desafio no capitalismo e no socialismo, em Cuba e nos EUA, no Oriente e no Ocidente, em Roma e em Teerã, no judaísmo, no islamismo, no cristianismo e até entre os ateus. E tem dado passos e recuos em cada canto do mundo. Os preconceitos se entrecruzam das maneiras mais diversas — há gays racistas, negros homofóbicos, mulheres antissemitas, judeus xenófobos, etc. — e atravessam nossa cultura das mais diversas formas, em diferentes regimes políticos e econômicos.
Quem quiser derrotá-los e construir uma sociedade mais justa e mais livre, precisará se livrar dos dogmatismos e deixar de ver o mundo como uma guerra entre o Bem e o Mal, como o vêem as crianças e os indigentes intelectuais (tenho pena dos conservadores que adotaram o enfant terrible como seu mentor intelectual). Precisará fazer política, no melhor dos sentidos, que é o que eu tento fazer cada dia da minha vida.
*Jean Wyllys é professor universitário e deputado federal pelo PSOL. Artigo originalmente publicado no sítio de CartaCapital