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As Revoluções de Lampedusa

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O brasileiro não se enxerga como parte do poder constituinte, não se vê como fiador das autoridades, dos políticos e dos representantes. Não se enxerga como parte da "cidade". Ele é, pois, um não-político, um anti-burgo, alienado de sua principal característica da modernidade liberal: ele é um súdito e não um cidadão. Seria o Brasil um expert em Revoluções de Lampedusa?

No romance Il Gattopardo, o autor italiano Giuseppe di Lampedusa teceu importantes considerações sobre a mentalidade conservadora diante de uma crise revolucionária, cenário de sua obra. A elite encastelada, formadora de uma oligarquia que dominava a Sicília em uma Itália em unificação, é apresentada fazendo todo jogo político necessário para se manter no poder, evitando que o caos que tomava as ruas mudasse alguma coisa significativa para eles. Na passagem emblemática que se tornou clássica do seu pequeno livro, o autor escreve:

O Príncipe teve uma de suas visões: um selvagem conflito de guerrilha, tiros nas florestas e Tancredi, caído no chão com suas tripas para fora, como um pobre soldado. “Você é louco, meu garoto, por ir com eles, o povo! São todos mafiosos, são todos arruaceiros. Um Falconeri deveria estar conosco, pelo Rei!

Seus olhos sorriram novamente: “Pelo Rei, sim, mas é claro. Mas qual Rei!?” O rapaz teve um súbito ar de seriedade que o tornou muito misterioso e cativante: “A não ser que nós tomemos medidas agora, eles irão nos forçar uma república. Se quisermos que as coisas continuem como estão, as coisas precisam mudar. Você entende?!” (The Leopard, 1960, pag. 10)

A frase “[s]e quisermos que as coisas continuem como estão, as coisas precisam mudar” ficou muito famosa e ela simboliza claramente o sentimento conservador, seja qual for a tendência política, de permanecer no poder. Fazem-se ajustes aqui, corta-se um excesso acolá, concede-se uma pouco aqui, para ganhar ali, enfim, na pior das hipóteses, perdem-se os anéis para não se perderem os dedos, deixando a mão intacta para agir como sempre fez. Mudam-se as estruturas, mas os fantasmas persistem a assombrar, formando a perpétua impressão de que, apesar de toda a aparente mudança, nada de fato mudou.

Assim, seria o Brasil um expert em Revoluções de Lampedusa?

Em 1964 ocorreu um golpe dado por parte da sociedade brasileira que, entre outras coisas, via na “república sindicalista de Jango” o fantasma comunista, desculpa ideal para, no contexto de Guerra Fria, fomentar um golpe. Não importava que João Goulart fosse um rico estancieiro, ligado ao trabalhismo (movimento identificado com a esquerda mas que rejeitava o comunismo), para o espírito conservador que dominava a elite e setores da pequena classe média brasileira, seguindo a linha de seus principais apoiadores, os EUA, as reformas de base de Jango eram sinais da quimera bolchevique, origem de todo o mal. Assim, buscando a “renovação nacional”, ele precisava cair, tudo precisava mudar… para continuar exatamente como sempre foi.

Embora existissem entre os golpistas reais setores nacionalistas se esforçando para emplacar algumas reformas desenvolvimentistas, especialmente ligadas à filosofia militar de “segurança nacional” (setor energético basicamente), a parte civil da ditadura, núcleo fundamental de suporte econômico e ideológico ao golpe, fez o esforço necessário para que, após 25 anos, a “revolução” (sic) dos militares, deixasse o país exatamente como nela eles haviam entrado: desigual, analfabeto, com as antigas oligarquias intactas e uma ainda pior e inabalável concentração de propriedade e renda. Se por revolução entende-se uma mudança considerável de alguma sociedade, a nossa não passou por revolução alguma em 1964. E pior, a ditadura militar terminaria, após seu último presidente (o civil e imortal José Sarney), conseguindo a proeza de deixar as Forças Armadas tão ou mais sucateadas do que quando aderiram à aventura golpista, reforçando a tese de que os militares foram apenas a infantaria necessária para as oligarquias que vinham perdendo seu poder para Jango, Brizola e seus aliados realizarem seu projeto de retorno ao poder, já que vinham perdendo o governo seguidas vezes nas urnas.

Seguiu-se então o “período democrático” para “mudar tudo”. O ranço autoritário dava lugar à “nova era de liberdade brasileira”. E como não poderia deixar de ser, o período seria não apenas comandado por praticamente as mesmas forças econômicas que “mudaram tudo” com o golpe, mas também muitas vezes foi literalmente encabeçado pelas mesmas pessoas que dividiam o poder na ditadura. Destituindo parlamentares opositores e “subversivos” de seus cargos, com prisões e exílio de outros, a ditadura pôde criar seu simulacro de parlamento, incluindo até uma oposição consentida, que na prática não lhe servia de real oposição, mas de legitimação de seu poder absoluto, e por mais que figuras importantes da redemocratização como Tancredo Neves se empenhassem numa redemocratização “de dentro”, o faziam na medida que reconheciam a legitimidade do governo golpista que faziam parte. Assim, é incrível observar que, muitos dos “ícones” políticos e líderes partidários, que construíram o poder no novo período democrático, são exatamente os mesmos que dividiram situação e oposição durante o período ditatorial anterior: famílias Sarney, Neves, Quércia, Tuma, Maluf, Alckmin, Dornelles, e muitas outras; estavam todas com cargos importantes no período ditatorial, independentes de gostarem ou não da “linha central”, formavam o poder constituído. É difícil encontrar uma só figura fundadora da “nova democracia” brasileira que não estivesse profundamente ligada às oligarquias que governaram o país nas três décadas anteriores.

Não é incrível que o primeiro presidente eleito a terminar um mandato no novo período, Fernando Henrique Cardoso, tivesse tido como vice Marco Maciel, proeminente figura da ditadura, presidente da Câmara na ditadura, governador “biônico” nomeado por Geisel em 1978?! E, mais ainda, a base governista de FHC era o PFL, herdeiro direto do ARENA, partido do comando da ditadura, de gente como Jorge Bornhausen e Antonio Carlos Magalhães, expoentes do Brasil de 1964… mas e quem mais? PMDB é claro! Na “democracia”, as antigas oposição e situação se unem num “novo governo” para um “novo período”. Isso é que é renovação democrática. Mudam-se as ideias, mas o fantasma das estruturas persiste.

Por fim, passado o “Tucanistão”, a renovação lulista de 2002 em diante precisou se associar com quem para governar? Exatamente com o PMDB, que divide o poder com quem quer que seja o vencedor. Assim, as oligarquias regionais brasileiras descobriram o mais estável modelo de governo para o capitalismo aristocrático e de interesses que representam: a democracia liberal parlamentar. Fiel partidário do “extremo centro”, o PMDB elevou ao limite a conciliação de vontades opostas em prol do mútuo favorecimento, no clássico espírito de corte, consagrando o mito da “cordialidade brasileira”, onde cordialidade tem um sentido ainda mais literal. Os quadros do partido são os mais heterogêneos possíveis, variando de figuras dinastias progressistas como Roberto Requião, até o simulacro de senhores feudais como José Sarney, passando por intransigentes como Sérgio Cabral e Eduardo Paes (cria do próprio PFL-PSDB). Talvez o único aspecto em comum de todos os seus componentes é serem, em maior ou menor grau, representantes legítimos das oligarquias de suas regiões. Sem este suporte parlamentar do PMDB, o governo do PT, como de qualquer outro partido, seria completamente inviável no Brasil. Por sua vez, para as oligarquias estabelecidas que o PMDB tão bem representa, quem melhor do que um popular líder sindical para executar uma conciliação de interesses conflitantes e apaziguar os desiludidos pela falta de prosperidade que a “renovação democrática” deveria ter trazido?

O PT, então, vem consolidar a tese da “classe estabilizante” de Jean-Claude Milner, difundida por Slavoj Zizek: “[não é] a velha classe dominante, mas aqueles comprometidos com a estabilidade e continuidade da ordem política e econômica – a classe daqueles que, mesmo quando clamam por mudança, o fazem para assegurar que nada realmente vá mudar” (ZIZEK, 2012). Hoje, após três sucessivas vitórias eleitorais e uma aliança já aparentemente orgânica com as oligarquias, o PT surge como fiador da ordem estabelecida, do capitalismo oligopolista de grandes empreiteiras, sistema financeiro, conglomerados de mídia e mega-varejistas, como prova final de que o capitalismo brasileiro está finalmente estável e consolidado. Vale observar a guinada do movimento trabalhista inglês nos anos 90 para melhor entender o contexto:

Quando Margareth Tatcher foi perguntada qual sua maior conquista, ela prontamente respondeu: ”New Labour”. E ela estava certa: seu triunfo foi quando até mesmo os inimigos políticos dela adotaram suas políticas econômicas básicas. A verdadeira vitória sobre os inimigos dela ocorre quando eles começam a usar a própria linguagem dela, de forma que suas ideias formem a base de todo o campo em discussão. (idem)

Não é por acaso que Odebrecht e Magazine Luiza estão com o PT. Não é por acaso que foi no petismo e não no Tucanistão que os grandes bancos ficaram ainda maiores e bateram recordes atrás de recordes de captação e crescimento, com lucros superiores a 83 países do mundo e Roberto Setúbal, presidente do Itaú, chamou Lula de “maior presidente do Brasil”. Nenhum governo foi tão bom para o grande capitalismo nacional quanto o petista, e somente dinossauros da antiga elite é que não enxergam isso e o acusam de bolivariano, bolchevique e outros impropérios. Parecem desconhecer que mesmo o arremedo de trabalhismo petista, se minimamente bem feito, é o túmulo do comunismo.

E então chegamos ao presente, onde as “jornadas de junho” e o calor das ruas parecem representar uma nova perspectiva de mudança no cenário político nacional. Mas estaríamos vivendo um ensaio de uma nova Revolução de Lampedusa?

Em junho de 2013, o preço das passagens dos transportes públicos aumentou e a repressão policial foi dura em cima dos que reclamaram do aumento. Pareceu a gota d’água para muitos brasileiros. Milhares se levantaram quase que simultaneamente em várias capitais; atearam fogo na Assembléia do RJ num histórico dia 17 de Junho; depredaram prédios governamentais em São Paulo e tomaram o Palácio da Alvorada em Brasília, tudo na mesma semana. “O gigante acordou”. E então, sem muito esforço, os governos por todo o país baixaram as passagens; realizaram alguns pronunciamentos assustados na TV e a classe dirigente, atordoada, pareceu notar pela primeira vez em décadas, a existência dos seus governados, esboçando medidas governamentais que de fato pareciam atender o “clamor das ruas”.

No entanto, passaram-se os meses sem que nada tivesse mudado de fato, e os protestos perderam a força nacional, voltaram ao núcleo dos “que nunca dormiram” (sindicatos combativos, esquerda radical e periferias mais ou menos organizadas, as mais assoladas pelas intempéries governamentais). Aparentemente, os 20 centavos foram suficientes para acalmar o resto da população. E agora, o pequeno reaquecimento das ruas em fevereiro de 2014 foi devidamente abortado por conta da tragédia na manifestação contra novo aumento da passagem no Rio de Janeiro, quando, além do aposentado Tasman Acciolly, atropelado ao fugir das bombas da polícia, o cinegrafista da Band, Santiago Andrade, morreu por fogo amigo de manifestantes em caso de repercussão nacional. A comoção generalizada acelerou o processo de acomodação.

Seja pela excessiva repressão policial, levando os moderados que estão nas ruas a temer sua associação com a violência disruptiva de alguns manifestantes; seja pela auto-realização social e demonstração pública de “dever cumprido” de alguns que foram as ruas em junho como se participassem de um “ritual cívico”, um gozo político-carnavalesco lembrando mais um Entrudo do que qualquer outra coisa, alimentando a ilusão de que agora afinal, os governantes prestarão contas à população. Seja por estes fatores todos combinados enfim, a poeira revoltosa de 2013 parece devidamente baixada e o brasileiro parece estar voltando à sua normalidade. E, independente de reconhecer os excessivos gastos na realização da Copa, as ingerências dos governos e o abuso da Lei Geral da Copa, além é claro, das corriqueiras mazelas de nossas grandes cidades (nota especial para o transporte no Rio de Janeiro), quase 80% dos brasileiros não irá a manifestações contra a Copa, sendo que 40% é abertamente contra os protestos. A classe dirigente aliviada caminha para nova estabilidade, mudou-se tudo, para tudo continuar na mesma. Lembrando aquelas mensagens ao final de grandes produções hollywoodianas: “Nenhuma oligarquia saiu ferida na realização deste filme”.

Essa constatação de nova calmaria parece reforçar o sentimento de que o brasileiro enxerga o poder constituído como algo dado, natural e legítimo em si, como uma formal imperial de ordem. Parece vigorar um aspecto tenebroso do etos cultural pré-liberal: a autoridade emana do próprio cargo, assim como sua legitimidade. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O brasileiro não se enxerga como parte do poder constituinte, não se vê como fiador das autoridades, dos políticos e dos representantes. Não se enxerga como parte da “cidade”. Ele é pois, um não-político, um anti-burgo, alienado de sua principal característica da modernidade liberal: ele é um súdito e não um cidadão.

A frase-slogan de Lenin “[o] estado somos nós” tem sua antítese na opinião que parece comum ao brasileiro: nada do que o governo faz teria relação com a população, “o estado são eles”. Como se, além de ser legítimo em si, o governo e seus quadros não refletissem sentimentos e costumes comuns à sociedade que o compõe. Figura sempre a perspectiva de que a população é vítima de um governo absolutista alheio a ela, como se “do nada” tivesse surgido e erguido seu poder à revelia da vontade popular, em estado perpétuo de imposição ditatorial. Com isso, a população parece se eximir de responsabilidade sobre seu próprio destino, vive como se todo tipo de barbárie e ingerência cometidos pelo poder não só não lhe dizem respeito, mas, como por isso mesmo, são legítimos, pois o governo é auto-justificado por ser a autoridade atual, independente da vontade da população. “O Estado NÃO somos nós”. E o brasileiro, resignado e milenarista, espera que outro governante “melhor”, um messias esclarecido, venha salvá-los de sua incapacidade de governar e de se responsabilizar pela política.

*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico. (riorevolta@gmail.com)

REFERÊNCIAS

ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001.
LAMPEDUSA, Giuseppe di. The Leopard. New York: New York Review of Books, 1960.
ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samatha. (Orgs.) Construção social dos regimes autoritários: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
ZIZEK, Slavoj. Why Obama is more than Bush with a human face. The Guardian, Nov. 2012. Disponível em: <http://www.theguardian.com/commentisfree/2012/nov/13/obama-ground-floor-thinking>. Acesso em: 20 fev. 2014.
ZIZEK, Slavoj. When only heresy can keep us alive. Odbor, Nov. 2012. Disponível em: <http://www.odbor.org/when-only-a-heresy-can-keep-us-alive/>. Acesso em 19 fev. 2014.