Em um cenário cada vez mais dominado por trios de axé e celebridades, iniciativa de dar destaque a blocos afro gerou polêmica na Bahia
“Da Sé ao Campo Grande, somos Filhos de Gandhy, de Dodô e Osmar. Por isso, chame, chame, chame, chame gente”. Quando compôs Chame Gente, Moraes Moreira parecia profético sobre o que se tornaria o Carnaval de Salvador. A turba de turistas ouviu o chamado e invadiu a cidade. E o mundo dos negócios também. Só que, com os novos atores da festa, seus foliões tradicionais foram para escanteio. Até mesmo o próprio Moreira, que abandonou a festa neste ano por divergências com sua organização.
Mas, como manter a convivência da tradição da folia baiana com o grande negócio que o maior Carnaval de rua do mundo se tornou? Se é difícil para uma figura conhecida como Moraes Moreira, é pior ainda para as mais de 140 entidades de Carnaval de matriz africana de Salvador. Apesar de terem originado tudo, hoje lutam para manter sua presença na folia. Como diz Alberto Pitta, presidente da Liga dos Blocos Afro, “o bolo que criamos cresceu, mas nós ganhamos a menor fatia”.
R$ 1,3 bilhão
O prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM) reconhece que o bolo é mesmo gigante e conta que o Carnaval de Salvador vai “movimentar neste ano R$ 1,3 bilhão e gerar cerca de 210 mil empregos temporários”. Todo o recurso foi captado da iniciativa privada: “R$ 45 milhões em cota de patrocínio”, dos quais, segundo o prefeito, “R$ 10 milhões serão de lucro a ser investido na cidade”.
Além de comemorar os números, ACM Neto também reconhece a importância das entidades de matriz africana. E lembra que este Carnaval homenageia os 40 anos de ressurgimento dos blocos afro e afoxés na festa.
— O Carnaval de Salvador só tem essa beleza e energia por causa do som que ecoa, primeiro, dos bairros berços dos blocos afro.
Se a beleza, som e energia sobram, ainda faltam recursos e holofotes para esta gente. O grande foco da festa continua sendo os blocos de trios com as estrelas do axé que atraem multidões. Neste ano, segundo o prefeito, a cidade receberá 600 mil turistas até a próxima Quarta-Feira de Cinzas. Gente que procura a festa como símbolo de diversão. Para ACM Neto, não deve haver guerra entre blocos afro e axé.
— Acredito que a axé music surgiu como mais uma manifestação cultural, criada para estar ao lado dos blocos afro. Não devemos pensar em disputa entre as duas manifestações porque ambas tiveram seu lugar na história do Carnaval.
“Apartheid” no Carnaval?
Homenageados da vez, os blocos afro terão mais de destaque em 2014. Aqueles que desfilavam esquecidos no circuito Batatinha, no centro histórico, agora desfilam em horário nobre no Campo Grande – que, junto com a Barra, formam os dois grandes circuitos da festa, com farta cobertura da mídia e camarotes.
Tudo porque a prefeitura abarcou e adaptou a ideia do Afródromo, pensada inicialmente por Carlinhos Brown e algumas lideranças afro. O Afródromo, inicialmente, consistia em um novo circuito a ser montado na Cidade Baixa, que seria ocupado apenas por agremiações de matriz africana. Contudo, membros da própria comunidade acusaram a iniciativa de tentar provocar um “apartheid” dentro do Carnaval baiano, dividindo a festa dos negros da dos brancos.
João Jorge Rodrigues, do Bloco Afro Olodum, considerou que o Afródromo como novo circuito “criaria gueto”, e Gilsoney de Oliveira, presidente da Unafres (União de Afoxés, Afros, Reggaes e Samba do Estado da Bahia) falou que a iniciativa criava “um apartheid Carnavalesco”. Diante do impasse, a prefeitura de Salvador procurou agradar a gregos e troianos e levou a ideia do Afródromo como um horário especial de desfile dentro do circuito oficial.
“Uma pobreza só”
O presidente da Liga dos Blocos Afro, Alberto Pitta, foi um dos defensores ao lado de Carlinhos Brown do Afródromo em novo circuito. Ele explica que a iniciativa “não queria provocar separatismo”, mas dar espaço aos blocos afros de aparecerem sem ter de disputar espaço com celebridades.
—A ideia do Afródromo gerou uma reação da sociedade conservadora e racista da Bahia. O apartheid já é o próprio Carnaval, que releva os blocos afros a um circuito [Batatinha] que não tem visibilidade. Queríamos o novo circuito perto do porto, para atrair os turistas que chegam nos cruzeiros, em sua maioria estrangeiros que têm interesse na cultura afro.
Pitta lembra que, ao contrário dos trios e camarotes milionários, que atraem robustas verbas da iniciativa privada, os blocos afros vivem com verba mirrada e desfilam “com pessoas descalças, vestidas com tecidos de má qualidade, uma pobreza só”.
Apesar de não ter conseguido o novo circuito, Pitta espera que o Afródromo incorporado pela prefeitura possa ajudar os blocos a se reerguerem.
— O Carnaval de Salvador foi vendido e ninguém quer abrir mão de sua parte, porque os lucros são grandes. Só que ninguém lembra que tudo isso só existe por causa dos blocos. Arrecadaram R$ 45 milhões com nossa ideia do Afródromo, só não podem se esquecer que somos os atores principais da festa. Vamos ver como será. Ironicamente, no Carnaval 2014, o Cortejo Afro comandado por Pitta tem como tema A Relação de Confiança no Outro.
“Papagaios de pirata com pulseira VIP”
Paulo Miguez, professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA (Universidade Federal da Bahia), afirma que blocos de origens africanas “devem ser apoiados com base em políticas culturais, sob pena de correrem o risco de desaparecer”. O especialista lembra que é preciso dar atenção ao Carnaval afro, que sofre de “invisibilidade”, já que “a mídia está mais interessada no seu ‘star system’, nas celebridades, nas subcelebridades e no bando de papagaios de pirata que matam e morrem por uma pulseirinha VIP”.
Para o estudioso da folia baiana, a ideia inicial do Afródromo como um circuito novo era “uma segregação espacial estranha ao espírito que inspirou o surgimento dos blocos afro 40 anos atrás: a recusa do gueto e a afirmação política do seu direito à participação no Carnaval”. O professor da UFBA prefere como Afródromo atual: incorporado ao circuito existente.
— Os blocos afro não apenas transformaram a festa carnavalesca como produziram um impacto de grande envergadura na cultura e no cotidiano de Salvador.
Preto e branco não entram
Ao contrário da maioria dos blocos que se abriram aos turistas, o Ilê Aiyê, o pioneiro e mais cultuado bloco afro baiano, mantém a proibição de brancos participarem de seu desfile. A entidade, composta apenas por afrodescendentes, afirma fazer isso como forma de “preservação de sua identidade étnico-cultural”.
Fato é que blocos que se abriram demasiadamente a turistas, como o Afoxé Filhos de Gandhy, assistem atualmente a recorrentes atitudes de desrespeito à tradição por parte dos “novos foliões”.
Analisando o assunto, o pesquisador Paulo Miguez lembra a música Tradição, de Gilberto Gil, que se refere a um tempo “que preto não entrava no Bahiano [Clube Bahiano de Tênis, da aristocracia baiana] nem pela porta da cozinha”. Situação que, segundo ele, “ainda perdura dentro e fora do Carnaval”.
O professor da UFBA lembra que na década de 1980 alguns blocos de Carnaval da elite baiana exigiam fotografia e até comprovante de residência dos foliões, como forma de barrar negros e pobres.
— A discriminação chegou a sugerir um bloco de classe média alta autonomear-se como “o metro quadrado mais bonito da avenida”. Isso numa cidade em que “beleza” tem cor e que, sabemos, não é a cor preta.
Mesmo com tanta agressividade na história do Carnaval, Miguez não acredita que responder com segregação seja o caminho.
— Não concordo que a proibição da participação de foliões brancos nos desfiles de um bloco afro, prática que só acontece no Ilê Aiyê, seja uma política acertada de enfrentamento do racismo que ainda marca presença na festa e na cidade.
Miguel Arcanjo Prado, R7