Fernanda Montenegro: ‘O medo e a coragem nos alimentaram. Fomos audaciosos’. Atriz, de 84 anos, conta que foi ameaçada de morte e, dias mais tarde, uma bala estilhaçou a janela de seu quarto
Por Fernanda Montenegro
Penso que também para muitos de nós da área cultural não é fácil lembrar o golpe de 1964 porque, nos anos que se seguiram, a perda da liberdade de se expressar chegou às raias da total crueldade, da total boçalidade e da criminalidade.
Uma censura cavalar na sua trindade de forças: a federal, a estadual e a municipal. Durante 20 anos ficamos entregues ao jogo sádico desses inúmeros funcionários ou nomeados, ditos censores. Pois a cada momento, em cada cidade, tudo poderia ser alterado ou proibido. Qualquer petição, qualquer pedido de revisão, só em Brasília.
Quando da proibição da peça “A volta ao lar,” de Harold Pinter, em São Paulo (apesar de a mesma já ter sido apresentada no Rio por dez meses), o coronel, em Brasília, que atendeu Fernando Torres pegou um parecer sobre sua mesa e finalmente explicou que, desde que chegasse a ele um documento com “aquela cor”, isso significava que não tinha volta. Eram ordens do alto escalão.
Havia a censura do texto, quando eram feitos inúmeros cortes. Mas o golpe mortal vinha constantemente no ensaio geral. Foi aí que se instituiu um sistema orgânico de destruição de uma cultura. “Uma solução final.” Estreia suspensa: elenco desesperado, desempregado. Produtor endividado. Estaca zero. Recomeçar. Vivemos aqueles anos sempre com uma lupa inquisitorial sobre qualquer ato criativo. Destaque para o teatro e a música popular.
Quando da proibição de “Calabar,” de Chico Buarque e Ruy Guerra, junto ao comunicado veio uma advertência, não escrita, de que não se poderia tornar pública essa interdição. Terminantemente proibido falar à imprensa, citar o nome da peça, dos autores e atores. Tínhamos já vendido cinco espetáculos. O aviso nos jornais se resumiu ao seguinte: o espetáculo que estrearia no dia X, no Teatro João Caetano, está adiado “sine die.” Ponto final.
Já na montagem de “O homem do princípio ao fim”, uma colagem de textos alinhavada por Millôr Fernandes, na excursão que fizemos em grande parte do Brasil, em cada cidade tínhamos alterações. Em Porto Alegre, podia-se apresentar só o slide de Getúlio Vargas, não a “Carta testamento.” Em Brasília, a “Carta testamento” foi liberada, mas o slide, não. Na mesma apresentação, trechos de “ A megera domada,” de Shakespeare, foram, no dizer deles, amenizados. Em Curitiba cortaram uma fervorosa oração de Santa Tereza d’Ávila.
Explicamos que a oração não era do Millôr, era da própria santa. Diante do esclarecimento, liberaram. Em “A volta ao lar” estropiaram brutalmente o diálogo, cortando o que eles consideraram “baixo calão”. Fernando (diretor) e o protagonista Ziembinski foram à censora, Dona Solange. O grande Ziembinski, em lágrimas, suplicou que não destruísse a peça. Os termos crus, violentos do seu papel eram a força do seu personagem. Para vencer a proibição, uma estranha composição: para cada expressão mais forte tivemos que barganhar dois ou três vocábulos menos violentos. E com “Um elefante no caos,” de Millôr, repetiu-se o processo de “Calabar.” A peça foi proibida, e a proibição, oficialmente, jamais pôde ser comunicada.
O medo e a coragem nos alimentaram sempre. Fomos homens e mulheres audaciosos, resistentes, desafiadores.
Hoje, na distância desses 50 anos, para aqueles que nasceram no pós-golpe é praticamente impossível avaliar o clima de terror político, persecutório, no qual sobrevivemos. Cada um de nós, a seu modo, viveu situações-limite, muitas vezes arriscando a própria vida.
Como fatos emblemáticos desses anos de chumbo, guardo dois acontecimentos que me ficaram e ficarão para sempre: O CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadindo um teatro e espancando um elenco completamente indefeso. E a prisão (e exílio) torpe, covarde, abismante de dois jovens e extraordinários artistas: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Homens, já naquela época, referências importantes na cultura do nosso país.
Bala estilhaçou a janela
E, no que diz respeito ao Fernando e a mim, não posso deixar de narrar uma situação de terror extremado pela qual passamos durante a temporada, em São Paulo, de “É…”, também de Millôr. Através de constantes telefonemas anônimos, fomos ameaçados de um ato extremista: eu sofreria um atentado em cena. Um tiro certeiro na testa. Em pânico, nos perguntávamos se devíamos parar a temporada, voltar ao Rio e reconstruir a vida. Mas permanecemos. Pedimos segurança à polícia (época louca: a polícia era o sistema). Os espectadores eram revistados ao entrarem no Teatro Maria Della Costa. Representamos mais de um mês com as luzes da plateia acesas e quatro seguranças em cada ângulo da sala. Preciso lembrar que na mesma época houve uma radicalização na caça às bruxas.
Segue o horror:
No início de uma madrugada, nesse mesmo período dos telefonemas, hospedados eu e Fernando na casa do diretor e amigo Celso Nunes, estávamos já no nosso quarto, no segundo andar, quando uma bala estilhaça o vidro da nossa janela e fica cravada na madeira do teto. Um carro, da rua, arranca em disparada.
Celso Nunes é testemunha desse fato pouco divulgado.
Paro aqui.
Muitos de nós, se ainda vivos, têm tanto ou mais para contar.
* Em depoimento a Nani Rubin