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Manual homofóbico e machista é distribuído em Fórum de Ensino Religioso

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Manual machista e homofóbico é distribuído pela Secretaria de Estado de Educação do Rio em encontro de professores de Ensino Religioso

Stela Guedes Caputo*

A Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC) realizou em seu auditório, no último mês, o X Fórum de Ensino Religioso (ER). Essa atividade, que acontece anualmente e reúne professores de religião, teve um caráter especial para seus organizadores pois comemorou os 10 anos de Ensino Religioso no Rio.

Na verdade, o ER já existia com centenas de docentes de outras áreas desviados para esta disciplina. A comemoração marcou então os 10 anos do concurso na modalidade confessional, realizado em 2004, e que colocou mais 500 professores, sendo a imensa maioria católica seguida pelos evangélicos e alguns poucos de “outras religiões” nas escolas. De lá para cá outros 140 professores foram chamados e, em 2013, novo concurso acrescentou 450 professores de religião à rede pública estadual.

Deixaremos de lado, neste texto, todas as críticas que fazemos ao longo de muitos anos, tais como a total ausência de laicidade na escola pública, a falta de pudor de todos os 10 fóruns de ER que assumem publicamente seu objetivo de organizar a Campanha da Fraternidade nas escolas, os gastos anuais que chegam a quase R$ 16 milhões com esta disciplina, enquanto a gigantesca demanda de professores de todas as áreas só cresce, a discriminação de religiões afrodescendentes que o ER legitima.

Faremos isso por um momento apenas para nos concentrarmos no que consideramos um ato criminoso: durante o X Fórum, a Secretaria Estadual de Educação distribuiu a todos os participantes um material chamado “Keys to Bioethics” (Chaves para a Bioética), também denominado “Manual de Bioética”. São 80 páginas de puro conservadorismo em diversos aspectos, mas também será no seu conteúdo homofóbico e machista que focaremos aqui.

Com ilustrações perversas e debochadas, a página 68 do manual, por exemplo, diz que “a teoria do gênero supervaloriza a construção sociocultural da identidade sexual, opondo-se à natureza, gerando um novo modelo familiar e uma nova organização da sociedade”.

Diz o material em sua página 69: “Apesar de tudo, a união entre um homem e uma mulher é a única possível para gerar um filho e inscrevê-lo na continuidade das gerações”. O texto segue condenando além da homossexualidade, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo e a transexualidade. Tudo baseado em supostos estudos científicos e na Bíblia.

Assim como a coleção de livros católicos, publicada em 2007, para a utilização dos professores católicos na rede pública, este novo manual, entregue a todos os professores presentes no fórum, independente de seu credo, é ultra conservador e machista porque afirma que maternidade é parte constitutiva de uma “identidade feminina”, condena a utilização de métodos contraceptivos e o aborto, mesmo em casos de estupro.

Indica citações do Gênesis para dizer que Deus fez a mulher para ser “auxiliar do homem”. É mais um material que vai na contramão de estudos de educadores que, com suas pesquisas e ativismo cotidianos buscam desconstruir a ideia de que as identidades sexuais são determinadas por estruturas biológicas, neurais e hormonais, o que serve somente para a patologização das inúmeras maneiras de se viver as sexualidades. Estudos, chamados de “transviados”, ou mesmo “queer”, desenvolvidos, por exemplo, pela professora Berenice Bento, da UFRN, autora de “A (re) invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual” (2006) e “O que é transexualidade?” (2008).

Bento defende que os estudos transviados não perguntam “o que é um homem?” ou “o que é uma mulher?” tampouco “Qual é a diferença entre um homem e uma mulher?” Mas sim, “para que serve esse lugar de homem e de mulher na nossa sociedade?” e, ainda: “Quem disse que a prerrogativa da feminilidade está na presença do útero?” Exatamente porque gênero e estrutura biológica não definem o que é um ser humano é que os estudos transviados sugerem a desconstrução de gêneros na perspectiva de uma sociedade e de uma educação mais inclusiva em todos os seus níveis.

Essa difícil luta que vem sendo travada há longos anos por milhares de organizações, ativistas e Grupos de Trabalhos nas Universidades têm alcançado conquistas importantes. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que casais do mesmo sexo têm o direito legal a essas uniões, o que já foi decisivo para direitos como pensão, herança e adoção. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução que obriga todos os cartórios do país a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

Há mais avanços necessários. Atualmente, proposto pelos deputados federais Jean Wyllys (PSOL) e Érika Kokay (PT), tramita no Congresso Nacional o “Projeto de Lei da Identidade de Gênero” que, seguindo o exemplo da Argentina e de outros países, garante que toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e de imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincida com sua identidade de gênero auto-percebida. Isso sem a necessidade do trâmite médico.

É contra toda essa vigorosa afirmação da vida e de sua pluralidade que o “Manual da Bioética” se coloca. Produzido pela Pastoral Familiar do Brasil, pela Foudation Jérôme Lejeune e pela Jérôme Lejeune Catédra de Bioética, foi distribuído massivamente na Jornada Mundial da Juventude, que reuniu, em 2013, milhares de católicos no Rio. Em que pese seu absurdo conteúdo, o máximo que podíamos fazer era denunciar, criticar sua circulação e lutar cotidianamente por uma outra educação em todos os espaços possíveis.

Mas quando a Secretaria Estadual de Educação distribui o manual para professores de Ensino Religioso, em uma atividade de formação da educação pública, em dependências públicas, onde foi informado que existem milhares de exemplares disponíveis em uma igreja no Rio, revela o que já sabemos: o governo do estado concorda com seu conteúdo. Afirma que é legítimo, correto e parte da função dos professores apresentar estas questões em sala de aula a partir da visão unilateral, conservadora e homofóbica da Igreja Católica.

Ignora todo o constrangimento que este material certamente causará a alunos e alunas, professores e professoras, funcionários e funcionárias, que escapam à normatização e aos seus imperativos de comportamento. São lésbicas, gays, bissexuais, transexuais que, todos os dias, enfrentam preconceitos que chegam, não raramente, à violência física, inclusive, na escola. Como se sentirão também os filhos e filhas de casais com diferentes orientações sexuais? Ou alunas que já tenham interrompido a gravidez e mesmo as que não queiram ter filhos?

“A distribuição desse manual pela SEEDUC não cabe num processo pedagógico e curricular, quando estamos justamente repensando continuamente modos de romper com a invisibilidade dos alunos e alunas, lutando para que apareçam no seu modo de ser, na sua integralidade. Porém não é de estranhar tal postura. Atualmente a política de educação do Estado vem impondo metas, com isso gera mais um controle e engessamento do currículo e mais pressão sobre os cotidianos da sala de aula. A formação de um pensamento crítico, da cidadania e o respeito pelas particularidades de cada pessoa é deixada de lado”, diz Antônio Pinheiro, professor do Instituto de Educação Sarah Kubitschek e do Instituto de Educação Superior do Rio de Janeiro, ativista do movimento LGBT.

Na segunda-feira, 31 de março, uma integrante do Ilé Oba Òyó, nosso Grupo de Pesquisa, e professora da rede estadual, esteve na paróquia indicada e retirou uma caixa com 100 exemplares do manual. Outro ligou e foi informado que 20 caixas com o mesmo conteúdo foram retiradas por professores só nesse dia.

O lamentável ocorrido exige mais do que a simples crítica e podemos fazer mais. Podemos exigir que sejam recolhidos todos os manuais que já chegaram às escolas e impedir que cheguem mais. Podemos denunciar a SEEDUC por homofobia ao Ministério Público (e vamos fazer). Podemos chamar ativistas, sindicatos, associações, universidades, parlamentares, estudantes, funcionários e docentes que apostam no avanço das conquistas que fizemos e não em seu contrário. É o que esperamos com essa nota. O SEPE-RJ já aprovou moção de repúdio contra o manual em congresso, realizado no último fim de semana.

O manual é mais um instrumento não só para os professores de ER, mas para todos os professores e professoras de outras disciplinas que tenham práticas obscurantistas. Ele fere o trabalho dos que apostam, todos os dias, em uma educação libertária, inclusiva e plural e torna a escola ainda mais repressora e excludente. E isso nós não vamos permitir. Quem soma mais?

(*) Stela Guedes Caputo, coordenadora do Grupo de Pesquisa Ilé Oba Òyó, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, com colaboração de: Cristiano Sant’ Anna, Pedro Castanheira de Freitas, Luciana Monsores e Antônio Pinheiro / Fazendo Media