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Vigilância e Subversão

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Cabem às organizações sociais que buscam um mundo mais justo, aperfeiçoar os métodos de ação política com as modernas ferramentas online, renovando a prática, melhorando as teorias, a fim de superar a enorme vigilância e opressão corporativa e estatal

Há um história, provavelmente apócrifa, que conta a conversa entre o chanceler Otto von Bismarck e Guilherme II, kaiser alemão, sobre a construção rápida de ferrovias pelo país à época recentemente unificado. Apesar de interessado no progresso industrial e econômico que as ferrovias traziam, Guilherme estaria preocupado com a integração dos movimentos operários e a facilidade de contato entre trabalhadores das mais diversas regiões do país, que possibilitaria a unificação de campanhas republicanas e socialistas contra seu poder semi-absoluto recém conquistado. “Trens podem carregar muitos subversivos”, argumentava. O kaiser sabia que as ferrovias catalisaram as convulsões sociais francesas (WEBER, 1976; HOBSBAWM, 2009), especialmente a mais radical delas, a Comuna de Paris de 1871, e seu temor era de que fizessem o mesmo na Alemanha. Bismarck, porém, no melhor estilo realpolitik, teria convencido o imperador: “Trens também transportam muitas tropas”.

A discussão desses notáveis, apócrifa ou não, é altamente relevante nos dias de hoje.

Muito se tem debatido sobre o papel político da internet e das redes sociais não apenas nas relações comerciais e diplomáticas entre nações, mas também, e sobretudo, nos inúmeros levantes populares que vêm se propagando no mundo, dos protestos na Turquia, aos Indignados espanhóis, ou os Occupy por todo os EUA (especialmente na Califórnia), até as jornadas de junho no Brasil em 2013, passando é claro pelo massivo protesto no Egito e pelo recente Euromaidan na Ucrânia. Do ponto de vista da ordem estabelecida – independente de sua ideologia -, a “subversão” de fato se propaga de maneira muito rápida pela Internet, permitindo a convergência de bandeiras e demandas de regiões antes bastante distintas e a desmistificação da crescente propaganda governamental e corporativa e das manipulações grosseiras da mídia mainstream imediatamente após seu lançamento, transformando as redes sociais em um verdadeiro catalisador de pautas e núcleos descontentes. Como se viabilizasse a formação de uma “cauda longa” de inquietude, a internet e as redes sociais transformam minoriais invisíveis em núcleos autônomos interdependentes dos quais se propagam ondas de protestos e demonstrações públicas antes encabeçadas apenas por organizações tradicionais (partidos, sindicatos, igreja, associação de moradores e etc.) que, por sua natureza, precisam de mais tempo e recursos para propagar suas ideias. Hoje, como demonstrou o Mídia Ninja e suas inúmeras variáveis, basta um celular na mão e um computador com internet e qualquer um pode dar notícias em tempo real, quebrando o monopólio da informação oficial e corporativa.

Entretanto, se parece facilitar a organização de pessoas fora dos meios tradicionais, o “fenomeno Facebook” parece não demonstrar efeitos duradouros se não estiver associado a alguma organização tradicional. Muitas vezes formados tão rapidamente quanto flashmobs  os movimentos “Facebookianos” podem ser também, como estes, igualmente efêmeros e superficiais. Observando a grande manifestação “cívica” do dia 20 de Junho de 2013, percebe-se que as milhares de pessoas que tomaram as ruas do país – cada uma com seu cartaz de protesto, com as mais variadas reinvindicações que, sem coesão ou consenso, mais pareciam um mar de reclamações individualizadas – transformaram a resposta aos críticos do “ativismo de sofá” (“saímos do Facebook”, diziam) numa paródia dela mesmo: não foram as pessoas que saíram do Facebook e foram para as ruas, mas o “mural” do Facebook que foi para as ruas com as pessoas. Transformando o protesto como fim e não como meio, apenas como forma de inserção social e participação política inócua. Seu vazio pode levar a extremas conclusões, como aponta Malcolm Caldwell: “Se antes os ativistas eram definidos por suas causas, agora são definidos pelas ferramentas que empregam. Os guerreiros do Facebook entram na internet para pressionar por mudanças”(CALDWELL, 2010). O objetivo é irrelevante, o importante é protestar.

Se as redes sociais realmente facilitam a “organização subversiva”, o fazem de maneira superficial. Malcolm Caldwell, já citado, tenta encontrar explicações para a fraqueza destes movimentos a partir dos vínculos sociais que estabelecem e do alto risco envolvido em suas questões:

(…) na verdade, [a rede social] não passa de uma forma de organização que favorece as conexões de vínculo fraco que nos dão acesso a informações, em detrimento das conexões de vínculo forte que nos ajudam a perseverar diante do perigo.

Transfere nossas energias das entidades que promovem atividades estratégicas e disciplinadas para aquelas que promovem flexibilidade e adaptabilidade. Torna mais fácil aos ativistas se expressarem e, mais difícil, que essa expressão tenha algum impacto.

As relações de vínculos fracos, isto é, formadas através de redes sociais, comunidades online, fóruns, salas de bate papo, Facebook, Twitter e etc, são essencialmente efêmeros em seu resultado político concreto pois são construídos a partir de indivíduos atomizados em seus computadores pessoais, isolados em suas preferencias individuais e, ao contrário de qualquer organização política tradicional, não possuem um programa identificável, estratégias definidas ou metas traçadas, seu único ponto comum é um descontentamento com o status quo. Como já apontava Rosa Luxemburg há mais de cem anos, a “espontaneidade das massas” por si só, sem construção de um movimento coeso através de uma organização ou partido orgânico, é um esforço inócuo.

A fraqueza política da típica  “manifestação facebookiana” é principalmente ligada à falta de substância e profundidade de seus objetivos e especialmente, a rejeição das organizações sociais tradicionais. Os Indignados espanhóis continuam permanemente indignados sem qualquer esboço de modificação da calamitosa situação espanhola, apesar de regularmente reunirem centenas de milhares pessoas; o Occupy Oakland (EUA), por exemplo, com sua imensa articulação tem como sua grande conquista forçar um abrandamento da repressão e indenização para meia dúzia de espancados pela polícia – mas, fora isso, não obteve qualquer resultado real (FRANK, 2012). No Egito, se podemos atribuir à internet a facilidade de divulgação das manifestações, o resultado é ainda mais catastrófico: milhões seguidamente nas ruas para levar ao poder exatamente o mesmo exército e forças econômicas que geraram a indignação em primeiro lugar.

Por outro lado, as organizações políticas de vínculo forte, chamadas de “tradicionais”, como igrejas enraizadas em suas comunidades; sindicatos organicos (e não os “pelegos” cooptados por patrões) ou mesmo entidades políticas pequenas mas coesas (associação de moradores, agremiação estudantil ou grupos de vítimas de um determinado crime), têm sua força pois estão diretamente ligadas a questões fundamentais na vida de seus membros, refletem questões sobre seu emprego (sindicato), sobre seu bairro (associação de moradores), sobre a cultura tradicional de uma região (igreja) e até sobre traumas comuns (organização de vítimas de um crime). Além disso, a atuação política destes três exemplos, independentes de sua vertente ideológica e por mais que tenham seus inúmeros problemas, são baseadas na disciplina, objetividade e num escopo concreto de ideias. A organização e disciplina das “Mães da Plaza de Mayo” na Argentina foi fundamental para o início da “revisão” dos anos de chumbo da ditadura argentina e prisão de seus responsáveis. A disciplina dos seguidores de Martin Luther King ou Malcolm X, muito antes de qualquer “rede social” foi fator preponderante na conquista dos direitos civis do movimento negro norte-americano.

Símbolo do Information Awareness Office, órgão do governo americano precursor da NSA. Em latim, a frase “conhecimento é poder” (Reprodução)

Porém, se é verdade que as manifestações construídas via redes sociais estabelecem vínculos fracos e efêmeros sem consequências políticas duradouras e abrangentes, é no entanto, inegável que uma vez combinadas a objetividade e coesão de idéias das “formas tradicionais” com o potencial difusor de ideias das redes sociais, a internet se transforma numa ferramenta poderosíssima de transformação social.

O melhor e mais recente exemplo disso foi o desenrolar da paralisação dos garis durante o carnaval do Rio de Janeiro em 2014. Apesar de ter sido realizada à revelia do sindicato da categoria, que se revelou totalmente descolado de sua base, seguiu o modelo tradicional de organização e ação sindical: greve, reivindicações claras e negociação a partir de lideranças estabelecidas pelos afetados e com alto poder de barganha. Criou-se pois, um sindicato orgânico dentro do próprio sindicato pelego. Por sua vez, a divulgação maciça nas redes sociais, somada ao momento certo da ação política, inflou grandemente o poder de negociação dos garis e foi fundamental para a vitória do movimento. E não seria difícil crer que, não fosse a divulgação em redes sociais, as conquistas do movimento teriam sido pífias como foram anteriormente e a escolta policial forçando os garis a trabalhar durante a greve, remontando capitães-do-mato de triste lembrança, teria passada desapercebida pelo grande público, não gerando o grande constrangimento que gerou.

Embora autores como Caldwell ou Thomas Frank tentem colocar nossos pés no chão e diminuir o entusiasmo pelas redes sociais, são notáveis os desconfortos políticos e constrangimentos públicos que as mesmas trazem para o poder estabelecido, seja para corporações que anteriormente tinham suas ações escondidas nos bastidores do poder e que agora ficam cada vez mais visíveis (o que, por exemplo, gera um crescente apelo para retirada de patrocínios privados a campanhas políticas), seja para governos, evidenciando a dificuldade do poder estabelecido de lidar com segredos de Estado e também com manifestações-relâmpago ou semi-espontâneas. Estamos falando da articulação e divulgação conseguida por ativistas como o Yes Men, constrangendo as relações de poder entre corporações e poder político, bem como, evidentemente, da sucessão interminável de “bombas jornalísticas” que a Wikileaks soltou para o público na internet, que precipitou inclusive a retirada de tropas oficiais do Iraque e transformou Julian Assange no mais importante prisioneiro político de nossa época. Em plena Inglaterra! Também estamos falando dos difusos “black blocs” que se reorganizam cada vez que suas comunidades virtuais são fechadas; e dos eventos de grande impacto social, ainda que pouco articulados politicamente, chamados de “rolezinhos” nos shoppings de elite pelo país, expondo mais uma vez o grotesco racismo e preconceito de classe de nossas elites dominantes e sua realidade virtual de consumo que sequer concebem que os “subalternos” possam ter a mesma lógica consumista que eles.

Enfim, se de fato as redes sociais constituem poderosa ferramenta de articulação de “subversivos”, de desmistificação da “palavra oficial” e do marketing corporativo, especialmente se trabalhada a partir de núcleos e estratégias tradicionais de ativismo. Se isso é verdade como parece, deveríamos ter uma visão otimista dessas mídias, como figuras importantes como Pierre Levy, Chris Anderson (autor de A Cauda Longa) e Clay Shirk (autor de Here Comes Everybody)?

Deveríamos mesmo compartilhar deste entusiasmo e nos deslumbrar com as maravilhas da tecnologia numa nova fase de justiça, transparência e organização social, sem antes nos perguntar: Afinal, o “trem virtual” também carrega tropas?

Neste sentido, é comum encontrarmos entusiastas da internet e das redes sociais que acreditam que a rede surge como uma ferramenta de emancipação do homem, através de sua capacidade de conexão entre as pessoas, pautas e idéias, e argumentam que a mesma está sendo “roubada” por governos autoritários, por corporações inescrupulosas e por oportunistas visando o lucro, destinando os evidentes benefícios da internet apenas para o controle e sustentação de governos espúrios e lucro privado de corporações, que a nobreza da internet está sendo vilipendiada pela vileza do capitalismo moderno.

As importantes revelações feitas pela Wikileaks, especialmente a partir do caso do cabo Chelsea Manning (Bradley Mannig) que deu publicidade aos enormes crimes de guerra do exército americano, assim como com as revelações do espião fugido Edward Snowden sobre a sistemática espionagem do governo americano sobre seus cidadãos e de outros países, revelando um aparato de controle e investigação jamais imaginado antes, podem dar reforço a essa argumentação de que “internet estar sendo roubada por governos controladores e corporações oportunistas”. Porém, devemos nos perguntar: seria isso mesmo?

É importante lembrar que a internet surge diretamente associada com o sistema de defesa dos EUA. Seja o SAGE, o ARPANET ou o ICN, é evidente a função militar original da rede. A integração que estas redes buscavam era a integração de núcleos de informação governamental, de laboratórios do departamento de defesa, do sistema de radar e balístico, enfim, tudo que pudesse melhorar a vigilância e a defesa nacional. Foram precisos pelo menos 40 anos restritas as primeiras redes militares e acadêmicas, para surgir a World Wide Web (sistema www) que a internet poderia ser classificada como propriamente “não-militar”.

Da mesma maneira que os grandes aviões bombardeiros deram origem aos aviões comerciais de passageiros, os sistemas de vigilância deram lugar a internet comercial pública. Porém, é importante frisar que, da mesma forma que os aviões bombardeiros continuam sendo fabricados, alguns custando dois bilhões de dólares a unidade, a internet continua como poderosíssima ferramenta militar, apesar de seu largo uso civil. Portanto, observando essa natureza das redes sociais para além das teorias de conspiração, que as colocam como obra direta do Information Awareness Office dos EUA e de seu filhote a NSA (Agência Nacional de Segurança), é factível crer que as mesmas “estão aptas a tornar a ordem social existente mais eficiente. Não são inimigos naturais do status quo” (Caldwell, op. cit). E, como os documentos de Edward Snowden comprovaram, independentemente da sua origem, as redes sociais (Google, Yahoo, Facebook, e etc) trabalham também a serviço de um sistema de vigilância e defesa do governo dos EUA. ”Sem aviso ou debate público, a administração [governamental] tem trabalhado na criação da maior base de dados e sistema computacional do mundo, com a habilidade de rastrear toda compra em cartão de crédito, reserva de viagens, tratamento médico e transações comuns de todo cidadão nos Estados Unidos” (TURLEY, 2002). Investigando e controlando as ações de milhões de seus usuários, o maior sistema de observação já realizado faz a vigilância do Grande Irmão do livro 1984, de George Orwell, parecer uma peça obsoleta de museu.

Portanto, não temos que pensar que governos autoritários e paranoicos, associados com empresas inescrupulosas de informação e internet, estão roubando-a da população. A internet nunca deixou de ser um sistema de vigilância e segurança nacional, e tudo o que se faz nela não é apesar da vigilância, mas exatamente por causa dela. Assim, cabem às presentes e futuras organizações sociais que buscam um mundo mais justo, aperfeiçoar os históricos métodos de ação política com as modernas ferramentas online, renovando a prática, aperfeiçoando antigas e novas teorias, a fim de superar a enorme vigilância e opressão corporativa e estatal.

*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico. (riorevolta@gmail.com)

revisado por Carolina Dias

REFERÊNCIAS

CALDWELL, Malcolm. A Revolução não será twittada. Observatório da Imprensa, n. 620, [on-line] 14/12/2010. Disponível em:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a-revolucao-nao-sera-tuitada. Acesso em 12 abr. 2014.

FRANK, Thomas. Quando a teoria torna a prática delirante. Le Monde Brasil,[on-line] 2012. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1330. Acesso em 13 abr. 2014.

HOBSBAWN, Eric. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

LUXEMBURG, Rosa. The mass strike. Rosa Luxemburg Internet Archive, [on-line] 1999, Disponível em http://www.marxists.org/archive/luxemburg/1906/mass-strike/index.htm. Acesso em 13 abr. 2014.

WEBER, Eugen. Peasants into Frenchmen. Stanford,  Stanford Press, 1976.

TURLEY, Jonathan. George Bush’s Big Brother. Los Angeles Times, [on-line] 17/11/2002. Disponível em: http://articles.latimes.com/2002/nov/17/opinion/oe-turley17. Acesso em 12 abr. 2014.

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