O racismo como 'faz de conta'
Usando o faz de conta para falar de racismo. Escola de educação infantil em São Paulo usa bonecos e um pouco de imaginação para trabalhar diversidade de um jeito nada óbvio
Nem loiro dos olhos azuis nem moreno dos olhos verdes. Diferente dos estereótipos presentes nas histórias de literatura infantil, o boneco Azizi Abayomi é um príncipe africano negro. Figura conhecida por alunos e professores da escola municipal de educação infantil Guia Lopes, na zona norte de São Paulo, o personagem tem sido usado para discutir questões sobre racismo e tolerância com crianças de 3 a 5 anos. Com uma dose de imaginação e um pouco de criatividade, esse e outros bonecos já fazem parte do dia a dia escolar, mostrando que racismo é coisa séria, mas que pode ser tratado de forma lúdica.
Trabalhando com a ideia de figuras de afeto, a escola utiliza bonecos para criar vínculos com os alunos. O primeiro personagem negro a ser incorporado no cotidiano da escola foi Azizi. Feito de palha e com roupas de pano, o boneco foi apresentado em 2011, como uma forma de desenvolver um projeto pedagógico que incluísse o ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo, conforme institui a lei 10.639/03.
“A gente sempre procurou trabalhar o tema diversidade com os alunos, mas era daquela forma de que se pontuava apenas o óbvio”, contou a diretora Cibele Racy. Segundo ela, durante uma reunião pedagógica com as professoras da escola, após levantar o questionamento se existia racismo entre as crianças, não foi possível chegar a uma conclusão. A partir daí, perceberam que seria necessário incluir essas discussões no ambiente escolar. “A nossa incapacidade de perceber a existência da intolerância nos levou a desenvolver esse projeto”, explicou.
Para apresentar o boneco africano aos alunos, a escola promoveu uma festa de recepção do príncipe Azizi. Em seguida, como extensão das atividades, levantou a discussão se o príncipe poderia se casar com Sofia, uma boneca branca de cabelos loiros. A partir daí, começaram a surgir os primeiros questionamentos e algumas crianças foram demonstrando o que pensavam sobre o assunto. “Nesse momento surgiram as primeiras falas de preconceito dos pequenos”, relatou a diretora.
Após a aceitação da união entre os personagens, o projeto inseriu de forma lúdica o nascimento dos filhos do casal, Dayo e Henrique, como uma maneira de falar sobre outros temas ligados à constituição de famílias, paternidade e questões de gênero. Nesse período, os alunos acompanharam a gravidez da boneca Sofia, questionaram como seriam os bebês e aprenderam o que era melanina – responsável pela pigmentação da pele. “Com esse gancho do imaginário você pode trabalhar diversos assuntos”, pontuou a diretora.
Hoje, além de Azizi, Sofia e os dois filhos do casal, já existem outros 15 bonecos na escola, entre negros, brancos, orientais e deficientes físicos. Todos foram apresentados para os alunos como crianças trazidas da África. Os personagens possuem um espaço especial reservados dentro do ambiente escolar e se revezam entre as 13 turmas da escola.
Inspirados por Madiba
Cada ano a escola desenvolve um tema central para as atividades com os bonecos. Agora os alunos estão aprendendo sobre a vida de Nelson Mandela. “As crianças inventaram que o Azizi é neto do Mandela”, contou a Cibele. Para falar sobre o líder sul-africano, a escola aproveitou os personagens estampados nas mochilas e fez um paralelo sobre quais características aqueles heróis tinham que poderiam se aplicar na vida de Madiba – como costumava ser chamado o líder da África do Sul. Com isso, eles passaram a estudar sobre o Apartheid e a luta conta a segregação.
“Nós perguntamos para eles se ainda existe separação entre brancos e negros nos dias de hoje. Eles falaram que não, pois haviam crianças negras e brancas sentadas juntas na mesma sala. No entanto, após entregar revistas e pedir para que eles recortassem a foto de cinco pessoas negras, alguns reclamaram não conseguir encontrar”, lembrou Cibele. Segundo ela, é fundamental trabalhar esse tema na educação infantil. “Se crianças de 3, 4 ou 5 anos são capazes de verbalizar preconceitos, é porque elas já aprenderam isso antes”, apontou a diretora.
Trabalhando o tema em outras dimensões
Outra atividade realizada dentro da escola para incentivar a valorização da cultura afrodescendente é o dia da beleza. “A gente percebeu que muitas mães mandam as crianças para a escola com os cabelos presos e bem esticados. Nesse dia, nós convidados as meninas a soltarem os cabelos e assumirem a sua beleza natural”, contou. Os meninos também participam e podem fazer penteados diferentes usando gel. A data funciona como uma espécie de ação afirmativa dentro da escola. “Depois disso, as próprias mães começam a perceber de forma diferente a beleza dos filhos negros”, destacou Cibele.
O papel da comunidade e da família também é visto como essencial dentro das atividades propostas pela escola. Além de promover eventos e palestras sobre racismo, preconceito e influência da mídia, todas as pesquisas e temas de atividades realizadas com as crianças são enviadas para os pais. A intenção é que eles também participem do processo de aprendizagem.
Formação da equipe e busca por referências
Para trabalhar esses assuntos com os alunos, a formação de professores foi essencial. Antes de iniciar as atividades, a escola buscou referências sobre cultura africana e diversidade em diversos materiais de apoio, como os da Secretaria Municipal de Educação, da A Cor da Cultura e do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades). “Nós saímos da escola para procurar coisas em outros locais”, disse a diretora. Segundo ela, há uma série de publicações literárias e materiais que subsidiam o trabalho sobre diversidade e racismo. No Ceert, por exemplo, existe um projeto voltado para a inclusão de discussões sobre questões étnicas na educação básica. “Eles nos deram uma visão diferente sobre o que a gente chamava de diversidade”, afirmou.
Em uma das atividades desenvolvidas entre os professores, foram entregues fotos dos bonecos africanos para que eles inventassem uma história de vida para cada um. Ao observar os resultados, era comum ver narrativas ligadas ao trabalho escravo, tragédias pessoais e crianças com fome. Com um trabalho de sensibilização, esses textos foram trocados em uma dinâmica com a equipe e os professores tiveram que identificar nas histórias dos seus colegas indícios que sinalizavam uma ideia negativa do continente africano. “Primeiro precisamos perceber o quanto de racismo tem em nós, para depois mudar a nossa percepção de mundo”, contou a diretora.
Marina Lopes, Porvir