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O ranking mundial de medo à tortura policial

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Brasil lidera com folga ranking de medo de tortura policial, seguido por México, Turquia e Paquistão

por Rafael Barifousse, originalmente publicado em BBC Brasil

Trinta anos depois da assinatura da Convenção Internacional Contra Tortura da ONU por 155 países, entre eles o Brasil, a grande maioria dos brasileiros ainda teme por sua segurança ao serem detidos por autoridades, revela um relatório divulgado nesta segunda-feira pela ONG de defesa de direitos humanos Anistia Internacional.

Quando questionados se estariam seguros ao serem detidos, 80% dos brasileiros ouvidos pela ONG no levantamento discordaram fortemente.

Trata-se do maior índice dentre os 21 países analisados no estudo e quase o dobro da média mundial, de 44%.

“É um índice chocante que revela a percepção social em torno da tortura”, diz Erika Rosas, diretora para Américas da Anistia Internacional, à BBC Brasil.

“Não podemos dizer que a tortura é uma prática sistemática no Brasil como em outros países, mas temos documentado diversos casos preocupantes.”

Impunidade

No levantamento, que ouviu 21 mil pessoas em todo o mundo, o México ficou num distante segundo lugar, com 64% dos participantes respondendo temer a tortura por autoridades. Turquia e Paquistão empataram na terceira posição, com 58%.

O Reino Unido (15%), a Austrália (16%) e o Canadá (21%) foram os países onde este medo é menor.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Wadih Damous, diz não se surpreender com a posição do Brasil no ranking.

“A tortura persiste porque houve a impunidade com a anistia dos agentes da ditadura que a praticaram. Isso gera um salvo conduto para as autoridades atuais”, afirma Damous.

“A violência policial é perceptível e está enraizada nas políticas de segurança pública do país.”

Nos últimos três anos, o número de denúncias dos atos cometidos por agentes do governo no país cresceu 129%.

Entre 2011 e 2013, foram relatados 816 casos por meio do Disque 100, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, envolvendo 1.162 agentes do Estado.

Avanço

Damous aponta como avanço nesta questão a aprovação no Congresso Nacional do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que prevê entre outras medidas a permissão para que peritos independentes tenham acesso a prisões e hospitais psiquiátricos para avaliar o tratamento dado a detentos e pacientes.
“Hoje, os peritos policiais se sentem coagidos por colegas a mudarem seus laudos”, afirma Damous.

Rosas, da Anistia Internacional, diz que o sistema aprovado no país é louvável, mas que é agora preciso colocar essa política em prática.

Atualmente, o comitê de peritos ainda precisa ser nomeado pela presidente Dilma Rousseff.

“É preciso treinar as forças de segurança e criar leis secundárias para dar apoio a este sistema”, afirma Rosas.

“Isso deve ser feito especialmente em relação às manifestações que ocorreram e ainda estão por vir com a Copa do Mundo, para garantir que os protestos não sejam criminalizados e não colocar os manifestantes numa posição em que possibilite que eles sejam detidos e talvez torturados. O mundo estará de olho no Brasil neste período e a forma como o país lidar com isso servirá de exemplo.”

Ao mesmo tempo, de acordo com a pesquisa da Anistia Internacional, a maioria dos brasileiros condena a tortura: 83% concordam que é preciso haver regras claras contra esta prática e que elas violam leis internacionais e 80% discordam que ela pode ser necessária em alguns casos para obter informações para proteger a população.

“Isso é como o racismo: ninguém declara abertamente apoio à tortura. Mas percebemos que, em segmentos importantes da sociedade, bate-se palmas à tortura ou ela é ignorada porque foi praticada contra criminosos. Isso ocorre principalmente nas redes sociais, onde as pessoas costumam ser mais honestas”, afirma Damous.

“A sociedade precisa fazer sua parte e colaborar, porque os policiais sentem-se legitimados por esta parte da população.”

Campanha

Juntamente com a pesquisa, a Anistia Internacional lançou uma campanha contra a tortura.

Em seu relatório, a ONG afirma que, apesar de muitos países terem aceito a proibição universal da tortura e vêm combatendo-a com sucesso, diversos governos ainda usam tortura para extrair informação, obter confissões forçadas, silenciar dissidentes ou simplesmente como uma punição cruel.

Segundo Rosas, da Anistia Internacional, é preciso dar fim à noção de que a tortura é necessária para controlar os níveis de criminalidade.

“Falta vontade política dos governos para punir quem pratica a tortura porque ela é vista como uma prática aceitável para combater o crime”, afirma Rosas.

Entre janeiro de 2009 e maio de 2013, a Anisitia Internacional teve conhecimento de torturas e maus tratos em 141 países.

Amarildo

Apesar de não fazer parte oficialmente desta estatística, o caso do pedreiro Amarildo de Souza é citado nominalmente no lançamento da nova campanha contra tortura.

Em 14 de julho de 2013, ele foi detido ilegalmente pela polícia militar na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Uma investigação concluiu que ele foi morto por meio de tortura dentro de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) instalada pela polícia na favela.

“Assim como outros países dos continente, o Brasil tem um legado de violência gerado pelas ditaduras, que usava a tortura como ferramenta de opressão. É muito preocupante que, em 2014, autoridades sigam torturando”, afirma Rosas.

Vinte e cinco policiais acusados de terem envolvimento com sua tortura e morte estão atualmente em julgamento.

“O caso de Amarildo foi exatamente como ocorria na ditadura e mostra que a tortura não é coisa do passado”, afirma Damous.

“Talvez por causa da repercussão na internet e internacionalmente, ele tenha virado uma exceção, porque houve punição. A regra ainda é a impunidade.”