A "Sheherazade da Política" engoliu o próprio autor
Confesso que quando você me criou não levei muita fé. Os amigos saudaram seu senso de oportunidade. Afinal, Paulo Francis criou uma marca, morreu e o lugar ficou vago. Você tinha cultura suficiente para ocupar o trono. Conhecia cinema, literatura, mais ainda, conhecia a retórica das esquerdas desde seus tempos de UNE, dominava os clássicos marxistas e fizera autocrítica pública. Quem melhor?
E você me criou para ser o último vagido da modernidade contra o atraso secular brasileiro, a esperança europeia contra a colonização portuguesa, o ideal nunca alcançado de repetir o padrão cosmopolita de Nova York.
Achei uma frescura danada, admito, um excesso de sofisticação que não tinha nada a ver. Mas o que fazer: você era o criador, eu a criatura.
Os amigos saudaram seu senso de oportunidade, os intelectuais elogiaram seu estilo, os leitores gostaram e você conseguiu transitar dos bares de Ipanema aos bistrôs do Leblon. Parabéns!
Mas não gostei, insisto. Perdoe a franqueza, você me criou, me deu forma e eu não devia estar aqui falando mal de sua criação: eu. Mas essa fase inicial – de você autor, eu personagem – positivamente não me agradava.
Eu era um personagem menor, criado apenas para satisfazer seu ego. De que adiantavam os artigos brilhantes iniciais? Só para você se lembrar do intelectual que um dia foi, do cronista que pretendia ser, dar uma chegadinha em Ipanema e receber o tapinha nas costas dos amigos?
Lembro-me o dia em que produziu um épico sobre a Casa da Dinda, pretendendo-se um Nelson Rodrigues redivivo. O texto foi celebrado por intelectuais de todas as cores porque, afinal, não foram apenas o branco e preto que derrubaram Collor.
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Foi magistral, admito, mas era muita frescura para o meu estilo grosso e direto. Tentei mostrar que o buraco era mais embaixo, que a civilização cristã ocidental estava ameaçada por hordas de muçulmanos ululantes, pelo fim da União Soviética e que não seria defendida por almofadinhas construindo cenas de teatro grego ou esgrimindo frases bonitinhas e literárias de salão.
Você olhava para mim e gargalhava. Saía de casa e exibia o cinismo dos que se julgam superiores, caçoando de sua criatura – eu – e vangloriando-se da esperteza de desenhar um personagem de teatro e ser aceito no mundo performático do jornalismo.
Os amigos de Ipanema gargalhavam, mas eu sabia quem iria rir por último.
A cada dia que passava apareciam competidores de escol, alertando para o perigo vermelho com o ímpeto de um Eugene McCarty, com a solidez de um Plínio Correa de Oliveira , sem receio de serem desmoralizados como o foram os intimoratos almirante Penna Boto, Amaral Netto e outros heróis incompreendidos da história – que, aliás, você ajudou a desmoralizar nos seus tempos ímpios de CPC e do Pasquim.
Mas, pouco a pouco, fui fazendo você experimentar o gosto de ser um campeão da ordem, da moral e dos bons costumes perdendo de vez esse sentimento pequeno burguês do medo do ridículo.
No começo você resistiu um pouco. Estava ainda com os fricotes desse intelectualismo babaca. Mas não há nada que resista à verdade nua e crua dos fatos.
O mercado mudou e, agora, a mídia queria um campeão branco, um lutador de UFC capaz de encarar a maré vermelha. Já tinha passado o tempo de cronistas prenhes de literatices e fricotes, era chegada a hora de homens com H maiúsculo. Entendeu? H maiúsculo.
Não bastava simplesmente falar mal da colonização lusitana, das heranças históricas, lamentar a distância que o Brasil ficava de Nova York, não bastava o pornô-chic das críticas elaboradas: eles queriam a sacanagem crua da rua Aurora, o reality show da vida, o BBB da política.
Pouco a pouco, você foi cedendo. E eu fui tomando conta.
Mas admito que venci pelo cansaço.
Você me procurava com o deadline estourando, faltando minutos para entrar na rádio, entregar o artigo, aparecer na TV. Temas pululavam na sua frente. Mas imagine a trabalheira que daria analisar a geopolítica de Obama, a diplomacia de Lula, a política econômica de Palocci ou de Guido, os fenômenos sociais que explodiam na nossa cara, as mudanças culturais trazidas pelas novas classes.
Você não dava conta, tornara-se o grande campeão de boxe que, vitorioso, já não precisava lutar pelo título. Sem a garra inicial, vinha com ar de enfado pedir minha ajuda. E eu dava. Para quê surpreender o leitor? O caminho é acostumá-lo com o prato feito do tema único, acordando-o para o tema dos temas: a defesa da civilização cristã ocidental.
Comecei a catequizá-lo.
Insisti na ameaça da União Soviética. Você rebateu: se a União Soviética acabou, como poderia ameaçar? E eu lhe expliquei pacientemente que os estilhaços da explosão produziram vírus letais que estão contaminando todo o tecido ocidental, entrando pelos cinco buracos da cabeça dos desavisados, piores que a Aids, mais mortíferos que a Peste Negra, mais letais que a criptonita, mais assustadores que o monstro da lagoa negra, mais alarmantes que a mosca da cabeça branca.
Você foi melhorando dia a dia, aceitando meus argumentos, embebendo-se da minha retórica.
E enquanto você descansava, um novo mundo se entreabria no universo dos seus – aliás, dos meus – leitores. A cada dia desenhava-se um novo perfil de leitor, do jeito que eu gosto, querendo sangue, simplicidade, objetividade, o branqueamento da raça, sem esse sentimento molóide da complacência com temas sociais, com políticas de cota, sem os pecados da ingenuidade, da crença nas utopias democráticas, sem as fraquezas do igualitarismo.
Um dia você acordou mais bem disposto e elaborou um texto dos antigos, caprichado, intelectual. Quando olhou para seu público, viu uma multidão de leitores diferentes. Você os chamou de toscos, analfabetos, reclamou que não era o público à altura do seu talento. Cadê meus leitores qualificados, os intelectuais que tinham orgasmos com meus artigos, os escritores que enalteciam minhas roteirizações da política, os elogios que recebia até de ícones intelectuais da esquerda, como Antônio Cândido?
Aí, dei uma de Analista de Bagé: é o que você tem; é pegar ou largar.
Nem aí você deixou de lado o orgulho. Apenas entregou-se à nova realidade: essas porcarias de leitores que sobraram não merecem coisa melhor. E me passou definitivamente o bastão.
É o que venho fazendo desde então, catequizando os ímpios, queimando na fogueira as ideias estranhas, alertando para os grandes perigos mundiais. Ajudei meu público a entender que o castrismo estava mais vivo que nunca, que a venezuelização era questão de semanas, que os hereges querem dominar o mundo. Tornei-me a Sheherazade da política.
E você foi cedendo, cedendo, até que achei que era hora da minha alforria.
Aí, assumi definitivamente as rédeas, descobri que era hora de sair dessa posição subalterna de personagem e passar a redesenhar o autor.
Você me deu um pouco de trabalho no início. Mas passei a reescrevê-lo todas as noites, não com os pincéis que você utilizou para me criar, mas com broxas, formões, pás de pedreiro, cimento e tijolo.
E pouco a pouco foi nascendo meu personagem predileto: você.
Convenci-o de que os olhos vermelhos de sua melhor amiga poderiam indicar a presença de um guerrilheiro infiltrado no sótão do cérebro; que os sons e luzes da televisão ligada, quando termina a programação, poderiam ser uma maneira subliminar do comunismo se infiltrar na santidade do lar; que o barulho da madeira do teto indicaria passos furtivos de algum comuna no telhado; que o olhar de Dilma era sintoma da ingestão de droga hipnótica visando lavar seu cérebro e induzi-la a caminhar em direção ao comunismo.
Fui acompanhando dia a dia o personagem magistral que construía. Tive orgasmos de orgulho no dia em que você avançou sobre o barbudo da banca armado de um crucifixo, julgando que fosse o Lula. Ou quando cruzou com um andarilho do MST e passou a gritar “vade retro, vade retro”.
O preço da liberdade é a eterna vigilância. E estamos aqui, eu criador, você criatura, para zelar pelos valores eternos da civilização cristã ocidental.