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A Copa e a Corporatocracia

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Leandro Dias*

Em março de 2007, o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo. Desde então, gastamos perto de R$ 30 bilhões (1), algo em torno de R$ 150 per capita para realização do evento e 0,63% do nosso presente PIB (2). Em 1950, para realizar a Copa, gastamos perto de R$ 500 milhões para um PIB de 230 bilhões (3), algo perto de 0,25% do PIB da época. Com apenas seis cidades sede e praticamente nenhuma exigência de construção da FIFA (apenas capacidade de 20 mil torcedores e espaço para imprensa internacional) (4), o país gastou algo em torno de R$10 per capita para realizar o evento. Apesar de proporcionalmente ser pouco mais de duas vezes mais cara (em relação à riqueza nacional), em termos per capita, a Copa de 2014 custou muito mais aos brasileiros do que a de 1950.

Porém, para termos uma ideia comparativa, as Olimpíadas de Londres de 2012 saíram a um custo de R$ 33 bilhões de reais, cerca de R$ 500 per capita a todo o Reino Unido, consumindo 0,5% do PIB daquele país. Tudo bem que o evento é maior do que uma Copa em número de atletas e delegações, mas é reduzido a apenas uma única cidade – o que barateia os custos. Por sua vez, as Olimpíadas de Inverno de Sochi na Rússia em 2014 custaram inacreditáveis R$ 110 bilhões de reais, quase R$ 750 reais per capita e perto de 2% do PIB russo (5). No entanto, tudo isso ainda está bem longe do previsto para a Copa do Mundo do Qatar de 2022, quando se estima que serão gastos inacreditáveis R$ 450 bilhões de reais, a um gasto per capita de  R$ 230.000 (5) e 150% do PIB para os países investidores envolvidos (6). Praticamente um novo país será construído para o evento.

O agigantamento das cifras – e todo o problema que isso envolve – obscureceu a ideia por trás de um grande evento esportivo: a confraternização dos povos, os valores gregários e de camaradagem desportiva entre equipes, que sempre foi uma das marcas de grandes competições internacionais. Valores estes que já protagonizaram belíssimos gestos entre nações rivais, como o atleta alemão Lutz Long e o negro norte-americano Jesse Owen nas Olimpíadas da Alemanha de 1936 (7) ou o famoso encontro bastante amistoso entre as seleções de futebol dos EUA e Irã na Copa de 1998, em meio a graves hostilidades diplomáticas entre os países (8). Ou ainda, como apontou Eric Hobsbawn, transformou o filho de imigrantes muçulmanos Zinedine Zidane “no maior dos franceses” após a vitória da Copa de 1998 (9) (HOBSBAWN, 2013, p. 53).

Porém, somada a histeria (racional ou não) antiterrorista às manobras escusas de governos pouco transparentes ou deliberadamente ditatoriais (caso do Qatar e China) ao trabalhar com entidades em constante suspeita como a FIFA ou o COI, as grandes competições internacionais evidenciam dois aspectos constantes em sua realização: a gritante promiscuidade entre poder público e privado e a escalada da militarização das sociedades envolvidas.

O sucesso das Olimpíadas de Pequim de 2008 talvez tenha mostrado aos países sede como fazer um grande evento em tempos de crise: maciça repressão estatal e máximo lucro privado. Nada como combinar a truculência de um Comitê Central – a pior herança do bolchevismo – com o dinamismo lucrativo das corporações ocidentais. As Olimpíadas de Pequim foram o triunfo do “capitalismo com valores orientais”, o capitalismo autoritário que usa todo o poder estatal para disciplinar o trabalhador, reprimir o dissidente, maximizando os lucros privados de seus parceiros, na medida em que reforça e perpetua o poder político estabelecido.

O exemplo de Pequim funcionou para a Copa da África do Sul de 2010, onde o evento se deu praticamente em estado de sítio permanente: altamente militarizado e segregado, estabeleceram-se áreas onde era proibido livre manifestação de descontentamento; áreas comerciais exclusivas aos patrocinadores da Copa, estabelecendo monopólios comerciais pela força da lei, em detrimento do pequeno capitalismo local; áreas e corredores exclusivos para os visitantes e outras áreas estritamente proibidas a eles, formando verdadeiros bolsões privatizados separando a cidade real da cidade-Copa. A celebração do fim do apartheid racista que a Copa da África do Sul deveria simbolizar acabou normalizando o apartheid econômico do país (10) (ZIRINS, 2010).

Em Londres 2012 não foi diferente: áreas exclusivas para patrocinadores assegurada por 40 mil soldados das forças de segurança, crescente paranoia e militarização da vida cotidiana marcaram a realização do evento. Segundo Setephen Grahan (11),

Os jogos olímpicos são a sociedade em esteroides. Eles exageram tendências maiores. Muito distantes de seus ideais fundadores ou nacionais, esses eventos incorporam dramaticamente as mudanças no mundo em geral: galopante desigualdade, crescente poder corporativo, ascensão do complexo de segurança nacional e mudança em direção a estilos muito mais autoritários de governança, obcecada pelo olhar internacional e o prestígio do espetáculo midiático. (apud EVANS, 2012)

Seja pela real ou fantasiosa ameaça terrorista desde o 11 de setembro, seja pelo reaquecimento global dos protestos de rua no pós-crise de 2008, o cada vez maior  contingente e reforço na segurança, com gritante repressão policial para realização dos grandes eventos, combinado com exaltação patriótica, solidificaram o namoro entre repressão estatal e lucro privado. É como uma releitura da “fórmula” corporativista que Mussolini contou ao fascista espanhol Franco: “[…]um regime que seja simultaneamente ‘autoritário’, ‘social’ e ‘popular’. Essa amálgama, o Duce recomendava, era a forma universal do fascismo” (12) (BOSWORTH, 2006, p. 564, apud ANESI, 2008). Como uma mistura do austrofascismo de Mises-Dollfuss (Áustria 1930-32) com o autoritarismo modernizante de Deng Xiaoping na China, essa releitura do corporativismo fascista obviamente tem diferenças importantes nos dias de hoje, como veremos.

No fascismo “clássico”, na emergência de uma grave crise econômica, o Estado se associou ao grande capitalismo privado em benefício mútuo. O primeiro logrou obter um controle direto da economia nacional que há tempo suas lideranças queriam, e o segundo obteve, além da garantia da demanda de seus produtos assegurada pelo Estado, o controle social dos trabalhadores (em ebulição sindical) e proteção contra a concorrência de empresas estrangeiras. Num cenário de crise generalizada ocorre uma retroalimentação e satisfação mútua de necessidades: o Estado se aproveita da fragilidade das grandes empresas nacionais e, na medida em que as resgata e as fortalece, impõe uma agenda que pende para seus interesses; faz isso enquanto esmaga demandas sindicais, achatando os salários e custos produtivos, satisfazendo seus apoiadores do grande capitalismo. Em sua época, esta agenda, por mais distópica que tenha enfim se mostrado, ainda tentava representar o que os fascistas acreditam ser interesses nacionais coletivos: nacionalismo, pleno emprego e exército forte para restabelecer o orgulho nacional (ANESI, 2009, op. cit)

Agora porém, essa relação Estado-Capital trilha um caminho invertido, mas com resultados semelhantes. Os interesses privados das grandes corporações se associam aos interesses de Estado também em benefício mútuo: o Estado novamente esmaga direitos trabalhistas, apazigua dissidentes controlando a população insatisfeita e estabelece oportunidades únicas de enriquecimento às corporações, à medida que recebe imenso apoio financeiro e político das corporações. Em paralelo, enriquece diretamente os membros do Estado, seja através de corrupção deliberada – caso de Mubarak e seus U$70 bilhões (13), seja pela associação de empresas privadas com o poder público – caso de Putin e seus aliados na Gazprom na Rússia (14) ou de Dick Chenney e a Halliburton nos EUA (15).

Nesse novo modelo de Estado Corporativo, a retroalimentação de interesses se dá em outro nível: as corporações privadas patrocinam a nova aristocracia política, criando núcleos de seu interesse e lobbies mais fortes, aparelhando o Estado em favor de seus interesses, na mesma medida em que o Estado – agora aparelhado – passa leis e cria políticas que reforçam o poder corporativo privado. No entanto agora, a retroalimentação não se faz mais em nome de um interesse supostamente coletivo dos fascistas “clássicos” (da classe política), mas em nome do lucro privado corporativo, desprovido de qualquer projeto nacional além do enriquecimento exclusivo das corporações e seus aliados na aristocracia política. É como um “fascismo individualista”, como se o alto capitalismo tivesse gostado da experiência econômica fascista, mas não daquele ranço nacionalista, um tanto coletivo, de projetos nacionais que seus líderes traziam como herança do socialismo autoritário e do nacionalismo do século XIX. Tire o pouco de substância e preocupação social genuína que o fascismo pudesse ter e fique apenas com a brutal exploração privada do trabalho e do lucro assegurados pela força do Estado. Bem vindo à corporatocracia.

Nem mesmo históricas democracias estão livres deste fenômeno. Além do escândalo do relatório da Plutonomia, feito pelo Citigroup, denunciado por Michael Moore, Noam Chomsky, entre outros (16), um estudo científico comparativo de Martin Gillen e Benjamin Page sobre a democracia norte-americana (17), que buscou identificar o poder de influência política do cidadão comum, das elites econômicas e das associações coletivas de pessoas ou de negócios, a partir de análise quantitativa e de estudos de caso, chegou a uma conclusão óbvia para muitos, mas “surpreendente” para o público em geral: “os Estados Unidos não são uma democracia, são uma oligarquia”. Escrevem:

Com evidências empíricas sobre grupos de interesse, é claramente estabelecido que grupos organizados regularmente fazem lobbies e confraternizam com autoridades públicas; caminham por portas giratórias entre o emprego público e privado; providenciam informações prontas à oficiais; desenvolvem legislações; e gastam grande quantidade de dinheiro em campanhas eleitorais. Mais ainda, […] as evidências claramente indicam que a maioria dos grupos de interesse e lobbistas dos EUA representam firmas e profissionais de negócios. Relativamente muito poucos representam os pobres ou mesmo os interesses econômicos do trabalhador comum […] (GILLEN e PAGE, 2014,, p. 9)

Na conclusão, terminam:

Nossa análise sugere que a maioria do público americano na verdade tem pouca influência nas políticas que o governo adota. Os americanos de fato desfrutam de uma série de pontos centrais a governança democrática, como eleições regulares, liberdade de expressão e associação e abrangentes direitos políticos. No entanto, acreditamos que se a criação de políticas é dominada por poderosos grupos comerciais e um pequeno número de ricos americanos, então, a afirmação de que os EUA são uma sociedade democrática está seriamente ameaçada. (ibidem, p. 24)

Em sintonia com a pesquisa de Gillen e Page, o professor de Harvard Jeffrey Sachs descreve: “A América está perdendo sua democracia na medida em que nossos políticos trocam seus votos por contribuições de campanha dos lobbies corporativos. Nós temos uma corporatocracia ao invés de uma democracia” (18) (SACHS, 2011).

Poderíamos resumir a situação observando que as corporações fazem valer sua vontade política ao patrocinar parlamentares e membros comissionados do Estado, formando seus quadros de interesse no interior do Estado, num literal aparelhamento do Estado pelo poder privado. Em democracias como as do Brasil ou dos EUA, elas fazem isso legalmente através de contribuições de campanha eleitoral, doações a partidos, contratos fechados com uso de parentes, nomeação de aliados a cargos-chave no interior do Estado. Já em ditaduras ou situações semi-ditatoriais fazem isso através de golpes brancos (casos recentes do Paraguai e Honduras) ou em deliberadas ações coordenadas com maciças invasões militares (caso escandaloso do Iraque, fatiado economicamente antes mesmo de ser atacado) (19). O objetivo é aparelhar o Estado de tal modo que as decisões de governo correspondam às vontades econômicas dos grupos hegemônicos. O verdadeiro criminoso sempre buscará um jeito de tornar seu crime legalizado. Se os estudos mostram indubitavelmente que isto está se tornando o padrão para países de tradição democrática como EUA e Inglaterra, o que isso indicaria para um país historicamente elitizado, com concentração de propriedade e fraca tradição democrática como o Brasil?

A Copa das Corporações

Esta grande introdução visou expor em que contexto os grandes eventos e, em particular, a nossa Copa do Mundo, será realizada. A privatização-militarizada que vemos hoje é o último estágio dos “cercamentos das áreas comuns” (enclousure of the commons) e ela, ainda que temporária e específica para determinados eventos, estabelece o padrão ideal que o capitalismo do futuro quer para o mundo: estado autoritário viabilizador do lucro privado.

Neste sentido, a Copa do Mundo brasileira é, como as outras foram, um evento de natureza corporativa e capitalista, isto é, em última instância para o consumo e para o lucro privado. Utilizará a legitimidade e dinheiro estatal dos contribuintes para maximizar os lucros privados de determinados parceiros organizadores. Com a implementação dos estatutos organizacionais exigidos pela FIFA, como a Lei Geral da Copa e inúmeros outros artifícios jurídicos, na prática o que temos é a imposição de uma corporatocracia oficial, sem necessidade do grande capitalismo apelar a subterfúgios legais e indiretos do sistema democrático liberal. No melhor estilo das Trade Companies da expansão colonial europeia do século XVIII, criou-se uma espécie de Estado paralelo, onde inúmeras leis que interferem nos objetivos da FIFA (e de seus patrocinadores) são revogadas, vários direitos consagrados são suspensos e grandes contingentes populacionais são reprimidos e “removidos do caminho”, em nome dos lucrativos ganhos privados. E, como numa colônia daquela época também, tudo é feito à revelia da maioria dos afetados.

As transformações urbanas e maciças remoções sob pretexto da realização de nossa Copa – que em algumas cidades pode chegar a mais de 20 mil famílias (20) – são mais um critério dos “novos cercamentos”. À revelia dos afetados traça-se um projeto de cidade que não procura solucionar o problema de super-ocupação urbana, concentração e deslocamento no interior da cidade de modo perene, mas apenas gentrificar e valorizar os espaços importantes, empurrando as populações incapazes de pagar para áreas cada vez mais distantes dos centros e solucionando os problemas críticos apenas durante a realização dos eventos. Não se discute publicamente com as populações das comunidades e bairros afetados, não se estabelecem reais alternativas para os removidos, apenas se dá – aos poucos com sorte – um “aluguel social” que é praticamente anulado pela própria especulação dos aluguéis que este movimento gentrificador cria. Aproveita-se ainda o “clima de remoção geral e legalizada” para se fundamentarem outros projetos em favor do capital privado, como foi o caso das remoções em Pinheirinho em São Paulo e do Museu do Índio no Rio de Janeiro, ambos declaradamente fora das exigências da FIFA (21). “As remoções oferecem mais um elemento de padrão autoritário. Porque o governo não faz nem valer a lei, nem oferece garantias ao cidadão, com remoções de forma muito bruta, truculenta”, diz Florence Rodriguez, diretora do documentário “A Caminho da Copa” (22).

Em outro exemplo evidente do autoritarismo em favor do capital privado, a FIFA com uma corporação parceira local, a Rede Globo, conseguiram sobrepor a autoridade municipal, se tornando o próprio fiador final das festas públicas em praças e ruas. Para todos os fins legais, estão suspensas as leis e costumes anteriores, que regeram praticamente todas as festas públicas de Copa que tivemos anteriormente, e instaura-se a mediação da FIFA sobre o uso dos espaços públicos para ver os jogos da Copa:

Todas as festas para exibição pública de partidas, independentemente do tamanho ou tipo, também têm que seguir regras gerais. Televisores ou telões só podem estar ligados na TV Globo. Eles devem estar transmitindo ininterruptamente dez minutos antes de a partida começar até dez minutos após o apito final. Os intervalos comerciais também precisam ser transmitidos. O sinal da TV e som não pode sofrer qualquer alteração. (KONCHINSKI, 2014) (23)

É difícil observar mais clara privatização das áreas comuns. Não é à toa que as ruas parecem menos enfeitadas do que em copas anteriores. É fácil perder o entusiasmo, mesmo que patrocinado por certas corporações rivais, quando até mesmo para reunir o bairro e festejar é preciso pedir uma autorização privada e ficar confinado a apenas um canal de televisão. É a força da lei estabelecendo um monopólio capitalista privado. Como diria Rockefeller: “a competição é um pecado”.

Se, por um lado, o governo ganha com o prestígio internacional, estabilidade econômica e expansão dos empregos que as inúmeras obras oferecem, como não negam os dados estatísticos e o crescimento econômico – ainda que moderado – num cenário internacional de estagnação ou crise pós-crash de 2008 (24), por outro as corporações obviamente têm assegurado o lucro de seu empreendimento. É a conhecida lógica do capitalismo moderno de socialização dos custos e privatização dos lucros: o melhor dos mundos para as corporações. Essa relação retroalimentar apenas reforça a promíscua relação entre as empresas privadas ligadas a representantes políticos, os prestadores de serviço para realização da Copa e os próprios comitês organizadores dos grandes eventos.

Não é coincidência que as grandes corporações envolvidas todas tenham os seus candidatos e representantes políticos na organização da Copa (25). Alguns inclusive, como Sérgio Cabral (governador do Rio de Janeiro até recentemente), são amigos próximos, convidados a jantares particulares em Paris e viajam em jatos de empresa envolvida em uma série de obras públicas (26 e 27). Outros, como César Pires, casado com uma Magalhães – da dinastia de Antonio Carlos Magalhães, soberanos bahianos -, entrou para o hall dos bilionários da Forbes, pelas suas obras pela empreiteira OAS (28). Nem mesmo os alemães escapam desta relação promíscua: o centro de treinamento alemão na Bahia, alardeado como feito “para a Copa”, na verdade já vinha sendo construído antes mesmo de se saber que a sede alemã seria na Bahia e era construído por uma empreiteira teuto-brasileira (Terravista, com um alemão como dono), sendo pago pela DFB (a CBF deles). Toda a negociação foi bastante suspeita e está em análise naquele país (29).

Por sua vez, o fenômeno Ronaldo Nazário vai mais além nessa relação. Membro do comitê organizador desde o começo, defensor árduo da “Copa sem hospitais” até “anteontem”, é também comentarista ao vivo pago pela emissora parceira da FIFA no evento (30). E mais, como dono de algumas empresas no setor, é importante agente econômico e publicitário de vários atletas presentes (31). É praticamente a representação icônica do agente público-privado constante em realizações deste porte. O conflito de interesses e os impedimentos legais passaram ao longe desta “suruba econômico-desportiva”. O que fica evidente, portanto, é que o lobby político é condição sine qua non ao funcionamento “normal” da democracia capitalista, seja nos EUA denunciado por Jeffrey Sachs, seja no Brasil da Odebrecht e da Rede Globo.

Mais ainda, mesmo se considerarmos a corrupção de fato como algo relevante no custo total da Copa, mesmo considerando que tenha havido desvio ilegal de recursos públicos em favorecimento pessoal de determinada pessoa ou grupo como fator constante na realização do evento; mesmo sabendo, como apontou Andrew Jennings em seu vasto trabalho (32), que a FIFA também é uma corporação suja como qualquer outra, envolvida em suspeitos esquemas de corrupção, compra de votos de parlamentares e de  mensalões por onde passa, para – como as outras – fazer valer sua vontade privada num parlamento “público”; mesmo com tudo isso, temos que ter a consciência de que o que se movimenta legalmente, o que se transfere de renda pública para o interesse privado, é colossalmente maior do que qualquer porcentagem desviada ilegalmente. O verdadeiro criminoso sempre buscará um jeito de tornar seu crime legalizado. Assim, sejamos justos, a FIFA talvez não pode ser acusada de sonegação de impostos, crime comum entre corporações, pois, por onde passa, obtém vasta ou completa isenção fiscal, da Suíça ao Brasil (33).

Portanto, os crimes da Copa não têm de ser vistos apenas os desvios de dinheiro por ladrões imorais ocasionais e oportunistas, mas exatamente a legalização escancarada da lógica corporatocrática que vem se impondo no mundo capitalista como um todo. Numa observação simples da construção de estádios de alto padrão pelo mundo de hoje, veremos que os R$ 3,3 bilhões de reais apenas para fazer Wembley na Inglaterra ou o Yankee Stadium nos EUA; ou o R$ 1,7 bilhão para o Allianz Arena na Alemanha ou o R$ 1,1 bilhão para o Soccer City em Johannesburgo, constataremos que os custos de construção de estádios na nossa Copa, do porte de um Maracanã, Mané Garrincha ou Arena Corinthians no padrão FIFA, com ligeiras variações, estarão muito próximos dos valores internacionais de mercado. Portanto, temos que realmente observar que a perda real de dinheiro público não está no que pode ter sido roubado ilegalmente, mas na renda pública que foi legalmente subtraída pelo capital privado. Este que, muitas vezes, não apenas ganhou construindo o estádio, mas vai ganhar administrando-o, como o caso da Odebrecht no Maracanã e a OAS na Arena das Dunas.

Assim, para além dos desvios econômicos de nossa aristocracia política, nossa indignação não deve ser reduzidas a um moralismo anticorrupção, “antiladrões” e em  imolações conformistas tipo “isso é Brasil”, fundamentando o argumento de que o único problema da Copa foi a corrupção e o desvio de dinheiro na realização das obras. Não, este não foi o principal problema. O problema real da Copa 2014 (e de todos os grandes eventos semelhantes) é a lógica que emerge transparente: a completa submissão do poder público ao poder privado; a maciça transferência de renda pública para cofres privados de maneira lícita, às vistas de todos. A democracia, onde supostamente o poder estabelecido deve prestar contas e consultar seus fiadores – o povo -, é suplantada pela vontade particular de um pequeno grupo de interesse privado, em geral com intenções antagônicas aos interesses da maioria da população, agindo à revelia destes.

Portanto, o único e poderoso legado que a Copa nos deixa é o de expor de maneira cristalina a real face da democracia liberal, o inverso de sua imagem: a mais pura ditadura do poder econômico, o “comitê de negócios comuns do alto capitalismo”. Qualquer dissidência será reprimida, venha ela de populares descontentes, grupos de interesse coletivo sem voz ou mesmo de capitalistas menores, fracos economicamente para estabelecer igual poder. E nós, cada vez mais cercados, privados de escolhas reais, assistiremos aos jogos conscientes de que nossa posição em campo é apenas produzindo e consumindo, jamais comandando a partida. De espectadores de jogos reduzidos a espectadores políticos.

*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico. (riorevolta@gmail.com)

Revisado por Carolina Dias

(Leia todos os textos de Leandro Dias aqui)

NOTAS

1 – Gastos entre R$28 e 33 bilhões segundo o mais recente levantamento – http://www1.folha.uol.com.br/esporte/folhanacopa/2013/06/1297264-gastos-publicos-com-a-copa-2014-sobem-e-chegam-a-r-28-bilhoes.shtml

2 – PIB de R$4.8 trilhões – http://economia.terra.com.br/pib-brasileiro-cresce-23-em-2013-e-chega-a-r-48-trilhoes,9629af8624274410VgnCLD2000000ec6eb0aRCRD.html

3 – Seis Décadas de Transformações, América Economia,  2014 –   http://americaeconomiabrasil.com.br/content/seis-decadas-de-transformacoes

4 – CASTRO, Luciana.  “Brasil Repete os mesmos erros da Copa de 1950”. Gazeta Online, 2014. http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2014/04/esportes/futebol/1485486-brasil-repete-os-mesmos-erros-da-copa-de-50–diz-um-dos-autores-do-livro-1950-o-preco-de-uma-copa.html

5 – GREGORY, Sean. Why Qatar is spending 200 billion on soccer; TIME, 2013 – http://keepingscore.blogs.time.com/2013/07/11/why-qatar-is-spending-200-billion-on-soccer/

6 – Em inglês – http://www.ace-ins.com/content/gcc-gdp-surge-back-2020-world-expo-and-2022-world-cup

7 – Vídeo em inglês – https://www.youtube.com/watch?v=6FSbJH-Qk_s

8 – Editora 3. EUA x Irã: Some o Ódio ao Grande Satã http://istoenacopa.com.br/2013/09/02/eua-x-ira-o-odio-ao-grande-sata-desaparece-em-campo/

9 – HOBSBAWN, Eric – Tempos fraturados. São Paulo, Cia. Das Letras, 2013

10 – ZIRINS, David – “At Least Under Apartheid…” http://www.thenation.com/blog/least-under-apartheid…-south-africa-world-cup-kicks

11 – EVANS, Brad – Militarization of London Olympics… – http://truth-out.org/opinion/item/10527-militarization-of-london-olympics-shows-one-more-host-countrys-fetish-for-displays-of-force

12 – ANESI, Chuck: Fascism the Ultimate Definition. Online IN: http://www.anesi.com/Fascism-TheUltimateDefinition.htm

13 – INMAN, Phillip: Mubarak’s Family Fortune could reach U$70 bi –  http://www.theguardian.com/world/2011/feb/04/hosni-mubarak-family-fortune

14 – ASLUND, Anders: Why Gazprom resembles a crime syndicate. Online:  http://www.themoscowtimes.com/opinion/article/why-gazprom-resembles-a-crime-syndicate/453762.html

15 – YOUNG, Angelo: Cheney’s Halliburton Made $39.5 Billion on Iraq War; ONLINE:   http://readersupportednews.org/news-section2/308-12/16561-focus-cheneys-halliburton-made-395-billion-on-iraq-war

16 – CHOMSKY, Noam: Plutonomy and the Precariat, Huffington Post, 2012. http://www.huffingtonpost.com/noam-chomsky/plutonomy-and-the-precari_b_1499246.html

17 – GILLEN, Martin. PAGE, Benjamin: Testing Theories of American Politics:

Elites, Interest Groups, and Average Citizens. Perspective on Politics, Princeton, 2014 – http://www.princeton.edu/~mgilens/Gilens%20homepage%20materials/Gilens%20and%20Page/Gilens%20and%20Page%202014-Testing%20Theories%203-7-14.pdf

18 – SACHS, Jeffrey: Paul Ryan, American Values and Corporatocracy. Huffington Post, 2011. http://www.huffingtonpost.com/jeffrey-sachs/paul-ryan-american-values_b_991817.html

19 – BIGNELL, Paul – Secret memos expose link between oil firms and invasion of Iraq. The Independent, 2011 – http://www.independent.co.uk/news/uk/politics/secret-memos-expose-link-between-oil-firms-and-invasion-of-iraq-2269610.html

20 – JÚNIA, Raquel. Agência Brasil. EBC, 2014 – http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-05/mais-de-20-mil-familias-foram-removidas-nos-ultimos-quatro-anos-no

21 – NITAHARA, Akemi. Agência Brasil, EBC, 2012 – http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-10-22/fifa-nega-ter-pedido-demolicao-do-museu-do-indio-na-area-do-maracana

22 – RODRIGUES, Florence; CAFFE, Carolina. Polis, 2014 –  http://www.diarioliberdade.org/audiovisual/consumo-e-meio-natural/39318-a-caminho-da-copa-document%C3%A1rio-sobre-os-impactos-da-organiza%C3%A7%C3%A3o-da-copa-no-rio.html

23 – KONCHINSKI, Vinicius. UOL, 2014 – http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2014/05/01/quer-fazer-festa-no-seu-bairro-durante-copa-a-fifa-tem-um-preco.htm

24 – MARTINS, Arícia. Valor, 2014 – http://www.valor.com.br/brasil/3485622/economia-brasileira-do-pos-crise-nao-brilha-avalia-belluzzo

25 – ROSSI, Amanda; BRAMATTI, Daniel. Estadão, 2012 –  http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,empreiteiras-lideram-ranking-de-doacao-privada,930787

26 – Gazeta de Notícias, Consciencia.net, Junho 2011 –  http://www.consciencia.net/agencia/deputados-querem-saber-sobre-relacoes-de-sergio-cabral-com-empresarios-que-possuem-contratos-com-governo-do-estado/

27 – ASTUTO, Bruno. Terra, 2011 – http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/acidente-de-helicoptero-na-ba-choca-alta-sociedade-carioca,d69ccc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html

28 – MORENO, Felipe. Infomoney, 2014 – http://www.infomoney.com.br/carreira/gestao-e-lideranca/noticia/3224245/genro-politico-dono-empreiteira-vira-bilionario-gracas-copa-mundo

29 – DAMASCENO, Marcelo – Deutschwelle, 2013 – http://www.dw.de/base-dos-alem%C3%A3es-na-copa-deixa-quest%C3%B5es-em-aberto/a-17300338

30 – NOGUEIRA, Kiko: O absurdo conflito de interesses no trabalho de Ronaldo como comentarista da Globo.  Diário Centro do Mundo, 2014 –  http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-absurdo-conflito-de-interesses-no-trabalho-de-ronaldo-como-comentarista-da-globo/

31 – MATTOS, Rodrigo: Empresa ligada a Ronaldo fatura com contrato do governo para Copa. Uol, 2014 – http://rodrigomattos.blogosfera.uol.com.br/2014/03/14/empresa-ligada-a-ronaldo-fatura-com-contrato-do-governo-para-copa/

32 – KFOURI, Juca: O novo livro de Andrew Jennings, Uol 2014 – http://blogdojuca.uol.com.br/2014/05/na-segunda-feira-o-novo-livro-de-andrew-jennings/

33 – POLLOCK, Ian. To tax or not to tax? BBC, 2010 – http://www.bbc.co.uk/news/10091277