O gol de placa que a Fifa não mostrou
O grande gol que a Fifa não mostrou, a Globo não deu bola mas o lance foi além do futebol: entrou para a história da ciência
Quase não deu para perceber. Enquanto a atenção de milhões de torcedores em todo o mundo estava voltada para o início do jogo Brasil x Croácia pela abertura da Copa, naquela tarde ensolarada de 12 de junho, na Arena Corinthians, em São Paulo, por três segundos a TV mostrou uma imagem inusitada: num canto do gramado, um homem usando um macacão com a estampa da bandeira brasileira, o número 10 no peito, se levantou e, assim que o juiz apitou, chutou a brazuca (bola oficial do torneio), que rolou poucos centímetros sobre um tablado. Não houve chamada, aviso ou explicação dos alto-falantes do estádio, nem do narrador da partida, já a postos.
Perceptivelmente constrangido, minutos depois do término da exibição o comentarista Ronaldo falou algumas palavras a respeito, que pouco ou nenhum sentido fez para os telespectadores desavisados. Mais tarde, pela internet, e muito depois, pelos telejornais da noite, é que o público pode ter uma ideia do que acontecera ali. Pela primeira vez na história, uma pessoa com paralisia conseguiu se levantar e se mover usando seus próprios sinais cerebrais. Para o paulista Juliano Pinto, 29 anos, da cidade de Garça, que há cerca de oito anos perdeu o movimento das pernas num acidente de carro, aqueles poucos segundos foram mágicos e jamais serão esquecidos. Para 170 cientistas de centros de pesquisas de vários países, foi o início de um grande passo da ciência.
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Rápida, mas sem deixar de emocionar, a demonstração integra o projeto Andar de Novo, que desenvolve um dispositivo que permitirá a pessoas com paralisia voltar a caminhar utilizando seus próprios sinais cerebrais. A iniciativa, que conta com apoio financeiro da Agência Brasileira da Inovação (Finep), vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que injetou R$ 33 milhões, é chefiada pelo cientista brasileiro Miguel Ângelo Laporta Nicolelis.
Nascido em São Paulo, filho de um juiz e de uma escritora, o neurocientista de 53 anos formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Há mais de 20 anos divide seu tempo entre o Brasil e os Estados Unidos. Aqui, ele coordena o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Lily e Edmund Safra (IINN-ELS), na capital potiguar, que criou – é outro grande patrocinador do projeto que representa esperança para Juliano e milhares de pessoas em todo o mundo que sofrem de paralisia. Lá, ele é codiretor do Centro de Neuroengenharia na Universidade Duke, na Carolina do Norte, onde também é professor titular de Neurobiologia.
Amante do futebol e torcedor “doente” do Palmeiras – o site de seu laboratório tem link direto para o do clube –, Nicolelis é um craque na área e hoje um dos mais importantes cientistas do mundo. O prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, chegou a incluir o conjunto de seu trabalho entre os dez com maiores chances de mudar o mundo para melhor. Entre as pesquisas que coordena estão justamente o que permitiu a Juliano chutar a brazuca.
“Miguel é um grande cientista e um grande amigo. Ao contrário de outros cientistas, ele está trabalhando pelas pessoas de todo o mundo e de seu país em particular. Seu trabalho traz um grande impacto ao Brasil, com escolas de ensino fundamental, hospital e centro de pesquisa científica”, diz o colaborador Gordon Cheng, referindo-se à atuação do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, que mantém escola para estudantes pobres com foco no ensino de Ciências. Professor e coordenador do Instituto de Sistemas Cognitivos da Faculdade de Engenharia Elétrica e Tecnologia da Informação da Universidade Técnica de Munique, na Alemanha, o australiano é responsável pela supervisão técnica do Andar de Novo. Número 2 do time, ele chefia o laboratório onde foi desenvolvida a veste robótica usada por Juliano, uma espécie de pele artificial capaz de transmitir sensações táteis e a percepção dos membros inferiores.
Cheng trabalha com Nicolelis desde 2008, quando chefiava o Departamento de Robótica Humanoide e Neurociência Computacional do Instituto Internacional de Pesquisas Avançadas em Telecomunicações, em Kyoto, no Japão. Conheceu o brasileiro durante a experiência célebre, já relatada até a uma comissão do prêmio Nobel, em que seu robô humanoide, do outro lado do mundo, caminhou seguindo impulsos cerebrais emitidos por uma macaca do laboratório de Nicolelis. Os sinais, captados nos Estados Unidos, seguiram para o Japão por meio da internet e de lá voltaram. O experimento exigiu treino dos animais para reagir à mensagem artificial produzida pelo computador, bem como a programação de computadores para decifrar os impulsos cerebrais dos animais para, enfim, moverem braços mecânicos a tantos quilômetros de distância. “Foi ali que vislumbramos um caminho possivel para que pessoas com paralisia voltassem a andar”, conta Cheng.
De acordo com o cientista, diversos laboratórios em todo o mundo desenvolvem hoje projetos semelhantes. No laboratório de Engenharia Robótica da Universidade da Califórnia em Berkeley, a terceira melhor do mundo, o engenheiro mecânico de origem iraniana Homayoon Kazerooni trabalha num projeto menos ousado. Baseado num computador com baterias acoplado a uma mochila que aciona um par de muletas com botões, que se encaixam em volta das pernas e fazem os movimentos de caminhada, além de proporcionar a estabilidade necessária para que paraplégicos possam caminhar, com segurança.
No entanto, segundo Cheng, até agora nenhum projeto foi capaz de fazer o cérebro se adaptar a um corpo complexo externo, tal como um robô, como acontece no Andar de Novo. “Nosso diferencial é a tecnologia da´pele robótica´, desenvolvida no meu laboratório, que, similarmente à pele humana, pode sentir temperatura, força, toque, impacto”, diz Cheng. Ele estima que daqui a dez anos será possível produzir exoesqueletos robóticos mais leves, mais baratos e sob medida.
A título de comparação, a geringonça apresentada no Itaquerão é como o computador, que quando foi inventado ocupava andares inteiros dentro de prédios. Hoje em dia um celular, que cabe na palma da mão, processa informações em número e velocidade infinitamente maior. “Então chegará o dia em que os exoesqueletos deverão ser como uma peça de roupa”, diz Cheng.
Na Universidade Estadual do Colorado, também nos Estados Unidos, uma publicação especial conta em detalhes – e com entusiasmo – a participação da instituição no Andar de Novo. Nela, seu vice-presidente de Pesquisa, Alan Rudolph, afirma que o “projeto extrapola os limites do gramado”. Integrante do time de Nicolelis, ele captou recursos que possibilitaram a abertura, no ano passado, do laboratório Idea-2-Product, que conta com impressora 3D para concepção e desenvolvimento de produtos em alta velocidade. Ali foi produzida aquela espécie de touca que, na prática, fez a interface entre o cérebro de Juliano e o exoesqueleto.
Como Rudolph afirmou ao jornal Denver Post, do Colorado, exoesqueletos não são mesmo mais novidade – e sim o controle pela atividade cerebral. “Nosso exoesqueleto funciona a partir de sinais do cérebro que geram sinais associados com movimentos específicos. E esses sinais são detectados por dispositivos localizados no capacete que produzimos aqui na CSU”, explicou. “Nós determinamos maneiras de extrair esses sinais produzidos a partir do pensamento de quem está usando o dispositivo, que é enviado para o exoesqueleto entrar em ação.”
Interesse
Em dezembro, a prestigiada revista Nature, uma das melhores do mundo sobre ciência e medicina, incluiu o Andar de Novo entre os dez estudos com melhores perspectivas de resultados para este ano. Em junho, a versão da revista voltada para a divulgação de notícias sobre metodologias científicas, a Nature Methods, deu capa para a equipe de Nicolelis em Duke, sobre implantes cerebrais realizados em macacos que estão na base das pesquisas do brasileiro.
Em maio, o geneticista Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, uma agência subordinada ao Departamento de Saúde do governo norte-americano, esteve em São Paulo, no laboratório montado na Associação de Apoio à Criança com Deficiência (AACD), uma das parceiras do projeto. Respeitado internacionalmente por ter chefiado o projeto Genoma Humano, que mapeou os genes que compõem o corpo humano, ele é também responsável por gerir um orçamento de US$ 38 bilhões para pesquisas em saúde em todo o mundo. Entusiasmado com o que viu, chegou a defender o Brasil como cenário fértil da pesquisa científica em neurociência.
Da mesma maneira que a tecnologia despertou o interesse de cientistas de vários países, que se juntaram ao projeto, setores conservadores da sociedade, ciência nacional e mídia tradicional inclusive, partiram logo para o ataque. Mais do que críticas – sempre aceitas e bem-vindas para o debate e a reflexão em qualquer área do conhecimento, inclusive o científico –, o projeto e seu líder passaram a ser hostilizados. Desde o começo do ano, o jornal Folha de S. Paulo publicou reportagens que os desqualificavam, sempre na ótica carregada de sentimentos mais subjetivos que científicos. O blogueiro Reinaldo Azevedo logo manifestou na revista Veja sua torcida para “que os feitos de Nicolelis, um dia, estejam à altura de sua capacidade de gerar notícia”. Diego Mainardi também não perdeu a oportunidade e logo provocou: “Exatamente como Santos Dumont, Nicolelis inventou o que já havia sido inventado”. O músico Roger Moreira aderiu: “Que sucesso esse exoesqueleto, heim? Tem que colocar a tábua embaixo sempre? Não é muito prático, né? Show de bola… Cientista arrogante”.
Ativista virtual, Nicolelis rebateu sempre com vigor semelhante. Até mesmo a página de um dos maiores pesquisadores em células-tronco do mundo, o carioca Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), transformou-se em espaço de críticas. A Federação Internacional de Futebol (Fifa) e a Globo não deixaram por menos e descumpriram o combinado. A caminhada de Juliano por 25 metros até o meio de campo e o pontapé inicial do jogo não foram permitidos para poupar o “tapete” da festa.
A equipe de Nicolelis, que trabalhou incansavelmente por 17 meses, entregou o serviço com qualidade. E como parece ter antevisto um dos colaboradores, o pesquisador afegão Solaiman Shokur, de 34 anos, o chute inicial não era só da Copa. E sim de um projeto longo, uma conquista, o começo de algo maior não apenas para uma pessoa, mas para que milhares possam voltar a andar nos próximos anos.
Cida de Oliveira, RBA