A fala censurada de Wagner Moura repete o que já está dito por outros artistas, como Chico Buarque em Subúrbio; Zélia Duncan em Braços Cruzados; e Cazuza em Um Trem Para as Estrelas
Frei Betto
Por que a fala do personagem do Wagner seria ofensiva? A meu ver, ela não ofende Jesus; ao contrário, reconhece que a imagem em placas de pedra-sabão é expressão da presença invisível dele, a quem se dirige inconformado.
Encaro a fala do personagem como a do salmista que protesta contra Javé, acusando-o de indiferença e omissão: “Ó Deus, não fiques calado, não fiques mudo e inerte, ó Deus!” (Salmo 83). “Por que me rejeitas, Javé, e escondes tua face longe de mim?” (Salmo 88).
O personagem de Wagner Moura, magoado porque Cristo não atendeu às preces concernentes à sua relação com a personagem Clara, suplica que o Redentor saia de sua imobilidade pétrea e vá “lá embaixo” e interfira para que haja mais amor, a polícia não atue como assassina, evite as inundações que afogam vidas, propicie escolas a todas as crianças.
Na fala de Wagner, há uma crítica teológica pertinente: é um erro, nós cristãos, esperarmos que Deus atue em nosso lugar. Oramos para que ele nos infunde fé, esperança e amor, para que sejamos capazes de agir como Jesus agiu, conforme descrevem os evangelhos.
Deus jamais é tapa-buraco de nossa omissão. Ele age através de nós, que somos seus “templos vivos”, segundo Paulo na Carta aos Coríntios (3, 16-17). Sonho com uma Igreja que censure, sim, governos e poderosos que, por suas decisões, apoiam policiais torturadores e assassinos, sonegam educação de qualidade às crianças pobres, e condenam milhares de “templos vivos” à miséria, à exclusão, a uma vida ingrata e infeliz.
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Uma criação artística não deve sofrer censura, exceto a que procede do gosto do público.
Equivoca-se quem sobe ao Corcovado na expectativa de encontrar Cristo. Ele não está naquele bloco de granito. Está “lá embaixo”, e quem “não tem amor” jamais será capaz de encontrá-lo onde ele mesmo disse estar: em quem tem fome, sede, está enfermo, é imigrante ou carente de bens tão essenciais como a roupa do corpo (Mateus 25, 31-46).
O Antigo Testamento relata como os hebreus insistiam em adorar Javé através da veneração a um bezerro de ouro ou um frondoso carvalho. Procedimento sempre condenado pelos profetas como idólatra. Será que Deus exigia dos hebreus um alto grau de abstração, a ponto de prescindirem de qualquer referência sensível ao prestar-lhe culto? Ao contrário, Javé queria apenas que eles o vissem no próximo, no ser humano criado à sua “imagem e semelhança”.
O Cristo Redentor é um monumento público, como a Estátua da Liberdade e a Torre Eiffel. Embora seja patrimônio da arquidiocese, é símbolo da Cidade Maravilhosa e foi eleito uma das sete maravilhas do mundo moderno. Seu valor simbólico ultrapassa-lhe o estatuto patrimonial. Tombado desde 1937 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é também considerado pela UNESCO patrimônio mundial, por se situar no Rio, eleita, em 2012, primeira cidade Patrimônio Cultural da Humanidade.
A fala censurada repete, em outras palavras, o que já está dito por outros artistas, como Chico Buarque em Subúrbio (“Lá tem Jesus / E está de costas”); Zélia Duncan em Braços cruzados (“Eu quero menos abandono, mais cuidado / Cristo Redentor / Eu vi seus braços cruzados, tudo é ilusão”); e Cazuza em Um trem para as estrelas (“Depois dos navios negreiros / Outras correntezas / Estranho o teu Cristo, Rio / Que olha tão longe, além / Com os braços sempre abertos / Mas sem proteger ninguém”).
O papa Bento XVI, ao visitar Auschwitz em abril de 2010, exclamou: “Por que, Senhor, permaneceste em silêncio? Onde estava Deus nesses dias?” O próprio Jesus se queixou de Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Marcos 15, 34).
Queixar-se a Deus é uma forma de oração.
(Atualização)
Arquidiocese libera imagem do Cristo no episódio de José Padilha em ‘Rio, eu te amo’. Segmento traz personagem de Wagner Moura reclamando com a estátua, durante voo de asa delta. Padilha comemora decisão.