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Vila Madalena: quando o xaveco vira agressão sexual

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Apertões, puxões de cabelo, tentativas de beijos forçados e encoxadas. Vila Madalena vira micareta em dia de jogo da Copa do Mundo

Verônica Mambrini

A Copa do Mundo no Brasil foi a Copa das Copas? Goleadas, zebras, hinos a capela e confraternização generalizada dizem que sim. Mas esse clima de festa irrestrita, regada a álcool e, muitas vezes, com pessoas falando línguas diferentes, teve um aspecto condenável que só as mulheres viveram: o xaveco transformado em assédio sexual.

Em alguns casos, a agressão é real. Mas acabava mascarada pelo clima de carnaval, de micareta, de ninguém é de ninguém. Se no início da noite, as torcedoras brasileiras mais exaltadas perguntavam aos rapazes se eram “gringos” antes de se atirar aos braços daqueles que respondiam “Yes”, “Si” ou “Oui”, com o nível alcoólico subindo o jogo mudava.

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Qualquer mulher, estivesse ela pronta para a balada, de vestidinho curto e decote, ou uniformizada como repórter, de tênis, calça jeans e camiseta, virava um alvo. É preciso não só desviar de homens embriagados, que tentam fechar a passagem com o próprio corpo e roubar um beijo à força. Mas também ignorar provocações e xingamentos.

Ao desviar de um deles, ouvi uma bronca: “O que foi? Está com medo de mim?” Estava: primeiro, porque tentou me puxar à força. Segundo, porque gritou comigo, como se eu não tivesse o direito de recusar a abordagem.

Toda mulher tem esse direito. Além do mais, eu estava trabalhando. E a função exige olhos atentos, escaneando a movimentação de torcedores, vendedores ambulantes, estrangeiros, varredores de rua e policiais. E os olhares que, frequentemente, acabavam se cruzando, para alguns frequentadores, eram sinal de disponibilidade. Mais de uma vez, agarraram meus braços, puxaram meus cabelos: “Ô repórter!”, “Ô fotógrafa”. Ao serem ignorados, os homens atiravam: “Sua escrota”.

Muitas mulheres cedem. Talvez por vontade. Talvez para não levar esse tipo de repreensão. Conversei com uma moça, cadeirante, que recebeu um beijo e carinhos de um desconhecido. “Preferia que ele não me abordasse assim, né? É bem melhor quando o cara chega conversando em vez de colocando a mão”. Na esquina seguinte, menos de 5 minutos depois, o mesmo rapaz estava aos beijos com uma loira vistosa.

A cena se repetia a cada quarteirão, todos os dias: homens se aproximam de mulheres, forçam o contato, tentam passar a mão no corpo e lutam para arrancar um beijo à força. Muitas cedem e vão se desvencilhando aos poucos. Nem sempre conseguem se livrar do contato forçado. Não dá para saber o quanto é consentimento e qual a parcela de medo de uma retaliação em cada abordagem bem sucedida. Nesse ambiente, homens rejeitados muitas vezes são agressivos. Aconteceu comigo.

A imprensa publicou reclamações de mulheres contra estrangeiros agressivos na abordagem. No jogo da Argentina contra a Suíça, a Vila Madalena estava salpicada de camisetas brancas e celestes. Um hermanito, de 6 ou 7 anos, começou a jogar charme. Se escondia atrás do irmão quando eu olhava e fazia manha quando apontava a câmera para tirar foto. Menos sutis, outros argentinos, mais velhos, terminavam as entrevistas com elogios e abraços um pouco além da cortesia. Forçavam beijos no rosto e insistiam para pegar dados de contato.

No mesmo dia, flagrei uma briga entre duas brasileiras e uma dupla, formada por um brasileiro e um argentino radicado no Brasil. Os quatro estavam no mesmo bar, em mesas diferentes. Elas alegavam que os dois homens teriam se aproveitando de uma adolescente alcoolizada, tocando-a e tentando levantar sua blusa. Quando cheguei, a menina em questão não estava mais lá. As mulheres estavam revoltadas com a atitude e quase foram agredidas pelos dois homens. Garçons e o gerente entraram no meio. Eles foram expulsos, mas continuaram cercando o bar aos gritos de “vagabundas”, “vai arrumar macho” e “você é lixo”. Nenhum dos dois quis dar entrevista.

Duaney Santos disse que estava difícil frequentar a Vila Madalena nos dias de jogos. “Estamos em festa, estrangeiros são bem vindos. A Copa é pública, mas nosso corpo não. Eles assediam mulheres na rua, passam a mão, ameaçam agredir se você reclama”.

Câmera, crachá e bloquinho não serviam muito como salvo conduto nas baladas de rua da Copa. Apertões, puxões de cabelo e encoxadas eram difíceis de defender. Frequentadores que cobravam uma foto e atenção especial, xingando quando eu só acenava ou passava batido, eram parecidos com aqueles zagueiros violentos, que até mesmo pontas habilidosos têm dificuldade para driblar. Nessa Copa, jogo de corpo e jogo de cintura, definitivamente, não são habilidades necessárias apenas dentro das quatro linhas.

Uol Copa