Cartilha do Itamaraty a viajantes brasileiros apresenta dicas desatualizadas, preconceituosas e polêmicas. Dicas abrangem 104 países e buscam alertar viajantes sobre problemas de toda espécie que podem enfrentar
Ao viajar para os Emirados Árabes, evite expor o corpo de “forma indecente”. Se for à Austrália, mantenha “distância mínima de três palmos” de outras pessoas. Na Romênia, tome cuidado ao conjugar o verbo “pular”: sua forma imperativa, “pula”, significa em romeno o “órgão sexual masculino”.
As recomendações estão em um site do Ministério de Relações Exteriores (Itamaraty) voltado a brasileiros que vão viajar para o exterior, o Portal Consular.
As dicas, que abrangem 104 países, buscam alertar os viajantes sobre problemas de toda espécie que podem enfrentar em suas visitas, além de informá-los sobre questões burocráticas, como a necessidade de vistos.
Chancelarias de potências como os Estados Unidos e a Alemanha oferecem serviços semelhantes a seus cidadãos, atualizados com frequência.
Alguns capítulos do portal do Itamaraty, porém, já não recebem qualquer atualização há alguns anos.
No item sobre Moçambique, ex-colônia portuguesa na África com que o Brasil mantém intensas relações diplomáticas e empresariais, informa-se que o país “passa, desde o acordo de paz de 1992, por situação de estabilidade política”.
Desde 2013, no entanto, Moçambique vive sérias turbulências causadas por conflitos entre o governo e o principal partido da oposição. Confrontos armados recentes entre os dois grupos causaram dezenas de mortes, inclusive de civis, e chegaram a fechar a principal estrada do país.
O item sobre o México tampouco faz menção à escalada de violência no norte do país, onde gangues e cartéis de drogas têm provocado frequentes matanças nos últimos anos.
Outros destinos importantes para viajantes brasileiros – entre os quais Angola, sede da maior comunidade nacional na África – nem sequer constam do site.
Há ainda incrongruências nas recomendações médicas aos viajantes. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), tanto São Tomé e Príncipe quanto Camarões integram o grupo de países na África Ocidental com altíssima incidência de malária causada pelo Plasmodium falciparum, o tipo mais letal da doença.
No entanto, enquanto o Itamaraty diz que em São Tomé e Príncipe o uso de medicamento preventivo (quimioprofiláxico) é contraindicado a viajantes, o órgão recomenda que em Camarões os visitantes tomem a droga diariamente.
Segundo o médico Gustavo Johanson, do núcleo de Medicina do Viajante da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a pertinência do uso do medicamento por viajantes deve ser analisada individualmente.
Sexualidade
As recomendações do ministério também abordam diferenças culturais que podem causar constrangimentos aos brasileiros no exterior. No capítulo sobre os Emirados Árabes, país de maioria muçulmana, recomenda-se que o viajante não exponha o corpo “de forma indecente”.
“É recomendável cobrir os ombros e joelhos, evitando transparências e decotes excessivos. Para os homens, é aconselhável o uso de calças compridas em ambientes mais formais ou religiosos”, diz o órgão.
Para Juliana de Faria, criadora do projeto feminista Think Olga, a recomendação é “machista”, já que somente aos homens é dito que os trajes compridos se aplicam apenas a ambientes formais ou religiosos.
Ela diz que, ao usar o termo “indecente” para qualificar a forma de se vestir, o Itamaraty exprime um juízo de valor, algo incompatível com suas atribuições.
Segundo Faria, a mensagem da chancelaria “legitima a desmoralização de mulheres por suas escolhas de moda, como se alguém pudesse ser indecente simplesmente pela saia que está usando”. Diferentemente de outras nações islâmicas, os Emirados Árabes não abordam regras de vestimenta em sua legislação.
No item sobre a Jamaica, o Itamaraty diz que a sociedade local “tem certa intolerância para com pessoas com diferente orientação sexual (homoafetivos)”. O órgão afirma ainda que, “em casos extremos, esses turistas podem vir a receber ameaças e sofrer atos de violência”.
Para Marcelo Hailer, membro do Núcleo Transdisciplinar de Investigações de Sexualidades, Gêneros e Diferenças da PUC-SP, a recomendação é pertinente, mas o Itamaraty foi “infeliz” ao formulá-la.
“Ao usar o termo ‘diferente’ para se referir às pessoas LGBT [sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros], sugere-se que elas são fora da norma, esquisitas”, afirma.
João Fellet, BBC