Redação Pragmatismo
Economia 03/Out/2014 às 18:11 COMENTÁRIOS
Economia

20 anos do Plano Real: e depois?

Publicado em 03 Out, 2014 às 18h11

20 anos do Plano Real e pouca perspectiva de futuro. Como reduzir o rentismo que transformou o Brasil num guichê pagador de juros? Ausência de autocrítica e de renovação do pensamento econômico preocupam. Não há nenhuma menção sequer ao caráter mais estrutural da quase-estagnação que o país se encontra desde o lançamento do Real

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FHC, Pedro Malan, Armínio Fraga e André Lara Resende (Imagem: Pragmatismo Político)

Felipe Calabrez*, Pragmatismo Político

No primeiro semestre do ano realizou-se em São Paulo o evento de comemoração dos 20 anos do Plano Real1. Em auditório na Avenida Paulista reuniram-se os principais elaboradores do plano e partícipes do processo. Entre os presentes, Gustavo Franco, Edmar Bacha, André Lara Resende, Pérsio Arida, Armínio Fraga e Pedro Malan, além de Roberto Mendonça de Barros (secretário de política econômica no governo FHC), Gustavo Loyola (presidente do Banco Central) e Eduardo Giannetti – economista de matiz liberal que não teve participação direta no plano ou no governo. Estavam quase todos lá e, naturalmente, o aglutinador de toda a intelligentsia econômica, o político Fernando Henrique Cardoso, responsável pela abertura e encerramento do evento. Segue abaixo um resumo das intervenções dos economistas presentes.

A importância do processo de construção de instituições monetárias e fiscais foi um dos pontos da fala de Gustavo Loyola. A SUMOC, as lutas pela criação do Banco Central e extinção da Conta Movimento foram lembradas a fim de se mostrar que é apenas com sólidas instituições que se pode minimizar vulnerabilidades e extinguir o risco de insolvência do Estado. O papel das políticas anti-cíclicas adotadas pelo governo Lula foi por ele reconhecido, mas entendido como algo apenas possível por conta do legado de construção institucional. Entretanto, na avaliação de Loyola, a atual adoção de políticas heterodoxas representa um retrocesso, uma volta ao passado. O erro do atual governo consistiria em querer, a qualquer custo, a redução (artificial) dos juros, a depreciação cambial, a redução do superávit primário e a adoção de medidas intervencionistas.

Gustavo Franco adotou uma fala mais genérica. Apontou para a importância de como se organiza o discurso econômico e fez referências à indispensabilidade dos mecanismos de mercado, sugerindo que o papel do Estado não deve ir muito além de garantidor de um ambiente que proporcione decisões igualitárias de empresas e pessoas. Sua fala, como de costume, foi recheada de menções a Goethe, em específico, à segunda parte do mito de Fausto, na qual o mito do progresso leva à criação do papel moeda. A crítica de Franco é à “alquimia” que permite ao Estado imprimir papel moeda acreditando assim produzir progresso e desenvolvimento econômico. Trata-se de uma óbvia alusão ao desenvolvimentismo brasileiro, visto pelo economista liberal como irresponsável. O que chama atenção é que sua crítica à “mágica” que permite aos governos imprimir dinheiro não se estende, em momento algum, à “mágica” que permite ao dinheiro virar mais dinheiro apenas por meio de aplicações em títulos e/ou posse de papéis. Em suma, sua visão crítica e trágica do poder estatal e do desenvolvimento econômico, curiosamente, convive muito bem com a cobiça daqueles que lucram com aplicações financeiras. Lucros vorazes dos shareholders internacionais não lhe suscita nenhum dilema faustiano.

José Roberto Mendonça de Barros listou uma série de críticas ao governo atual, apontando para o problema das baixas taxas de crescimento e de investimento. Suas propostas foram para que superemos a ultrapassada visão segundo a qual a indústria, os serviços e a agricultura são setores que se contrapõem, e sua fala se encerrou com genéricas advertências para que o governo mude as “regras” e opere com menos casuísmo. Edmar Bacha frisou a importância da competitividade da indústria nacional, e, sem fazer qualquer menção ao câmbio, criticou a política industrial protecionista.

Eduardo Gianneti adotou um tom politicamente apelativo, o que hoje – poucos meses depois – parece compreensível se observarmos seu papel na conjuntura eleitoral. Criticou o “Estado muito grande” e fez ferrenhas críticas ao que chamou de “bolsa empresário”, que se refere aos empréstimos subsidiados que o BNDES concede a determinados setores sem que tais decisões passem pelo debate público. Sua recomendação é, curiosamente, um retorno ao que foi o 2º governo Cardoso e o 1º governo Lula, caracterizado pela estabilidade, tranquilidade e previsibilidade, essenciais para que o mercado funcione.

Por falar em previsibilidade, passemos à fala de Pedro Malan. Ícone do governo Cardoso, Malan frisou a importância do controle da inflação. Na monocórdia que lhe é habitual, comemorou os 20 anos de autonomia operacional do Banco Central na condução da política monetária. Afirmou apoiar os programas de transferência de renda consolidados pelo governo Lula para, em seguida, apontar para o que, a seu ver, seria o maior problema que o Brasil enfrenta: O fato de que as intenções de gasto excedem a oferta de recursos de que o Estado dispõe. Sua receita: Priorizar o uso de recursos escassos e, de maneira mais concreta, priorizar o ensino fundamental para que diminuamos as desigualdades. Convém aqui investigar sua posição quanto aos “gastos” em educação quando Ministro da Fazenda, tendo em vista relatos de Fernando Henrique2 segundo os quais a garantia dos recursos do FUNDEF teriam sido frutos de seus esforços pessoais e, de certa maneira, a despeito das convicções de sua equipe econômica, da qual Malan era uma espécie de líder.

Pérsio Arida adotou um tom que pareceu divergir ligeiramente da estratégia dos demais presentes. Em dado momento afirmou que as coisas devem ser chamadas pelo seu nome, isto é, que a perspectiva geral ali, apesar de pontuais discordâncias, é liberal. Diante de certo incômodo de alguns, prosseguiu resgatando John Stuart Mill para sustentar que é possível ser liberal ao mesmo tempo em que se defende gastos estatais em educação básica e algumas políticas de cunho social.

Por fim, Armínio Fraga enfatizou que devemos retornar ao modelo que vigorava até 2006. Credibilidade e previsibilidade da política fiscal, uma defesa vaga de uma “reforma do Estado” e garantia da autonomia do BC foram seus pontos principais. A crítica que dirigiu ao governo atual focou na falta de disciplina e perda de transparência da política fiscal e, o que seria dela consequência, perda de credibilidade e ameaça de rebaixamento. (Aqui Fraga se refere às agências de classificação de risco que, por critérios questionáveis, avaliam a rentabilidade de ações e ativos de governos para seus clientes investidores). Em seguida o economista se colocou a questão de “o que fazer”, ao que respondeu: Respeito ao tripé macroeconômico! Atingir o centro da meta de inflação, que está em 4,5% anuais, para, gradativamente, reduzi-la (até um nível não explicitado). Reforçar a autonomia operacional do Banco Central e, principalmente, reforçar um regime de responsabilidade fiscal, no qual se buscasse estabilizar a relação dívida/PIB e no qual a despesa primária seja definida “sem artifícios” e inclua todos os subsídios. Outra proposta foi a de que seja estabelecido um limite formal para a relação gasto público/PIB. “A coisa começa pelo gasto”, concluiu.

O espírito geral do evento era de certo modo saudosista. Fernando Henrique Cardoso relembrou sua virtú em aglutinar colaboradores técnicos e apoio político a fim de levar a cabo um projeto que ia além do mero controle dos preços. Com efeito, o Plano Real significou a consolidação de uma nova fase de inserção do Brasil na economia internacional e uma repactuação sócio-política. Do ponto de vista do controle de preços, a avaliação do caráter inercial da inflação – que, vale dizer, não se limitava ao círculo de economistas do Real – foi fundamental para pôr fim ao processo de hiperinflação que assolava o país. O restabelecimento do equilíbrio relativo de preços e a grande inovação que representou a URV foram estratégias heterodoxas habilidosas e fruto de inegável inteligência. Entretanto, chama atenção a completa falta de autocrítica e, sobretudo, de renovação do pensamento econômico, por parte de economistas que nem sempre foram devotos da ortodoxia liberal. Não há nenhuma menção sequer ao caráter mais estrutural da quase-estagnação que o país se encontra desde o lançamento do Real. Simplificadamente, pode-se dizer que desde o lançamento do plano, o país passou por períodos de estagnação intercalado por miniciclos de crescimento (ao que os economistas chamam de stop and go), de modo que a pergunta que se coloca é a de onde estes renomados economistas retiram a crença de que basta cortar gastos, eliminar subsídios e aumentar superávit primário que o crescimento baterá às portas.

Há ainda mais questões não mencionadas e que causam angústia àquele que não olha apenas para o resultado primário das contas públicas para avaliar a situação do país em que vive: O desequilíbrio estrutural das contas externas não é mencionado, não há uma avaliação dos resultados de uma estratégia de crescimento com poupança externa e tampouco há uma discussão sobre o câmbio, o que nos leva a crer que basta eliminar subsídios (a bolsa empresário) e aumentar o grau de abertura da economia que os empresários schumpeterianos brasileiros voltaram a investir pesadamente no setor produtivo. Os economistas do Real, em sua conversa entre amigos, ignoram uma séria de debates que têm sido feitos, em específico na FGV-SP com a chamada “macroeconomia novo-desenvolvimentista”, pra não dizer dos “social-desenvolvimentistas” abrigados na UNICAMP. Entretanto, o que mais chama atenção é o fato de que, desde o lançamento do Plano Real, o país passou por uma série de “crises” atribuídas à instabilidade do comportamento dos “mercados financeiros internacionais”. Foi assim já em 1994, ano de lançamento do plano, o que se repetiu em 1997 com a crise na Ásia, em 1998 com a crise na Rússia, e em 2002 naquilo que alguns economistas do PSDB chamam, incrivelmente, de “efeito Lula”. O que esses eventos históricos deveriam sugerir ao observador minimamente atento é que há uma enorme vulnerabilidade no modelo adotado. Na verdade, pode-se falar em estabilização da inflação, mas dificilmente pode-se sustentar que houve uma consolidada estabilização macroeconômica. Assim, culpar a possibilidade da vitória eleitoral de Lula pelo “pânico econômico” que se observou em 2002 não passa de uma estratégia política, tal qual aquela adotada pelo próprio PT que, entre seus correligionários falava em “herança maldita de FHC” enquanto tranquilizava o mercado financeiro de que não alteraria os “bons fundamentos” da política econômica herdada.

O Plano Real esteve ancorado, desde seus fundamentos, num modelo de abertura financeira e teve o controle da inflação sustentado por uma âncora cambial que necessitava da incessante entrada de capital externo. Na visão de seus economistas fundadores, além de não haver qualquer problema na valorização cambial que decorre desse modelo – e consequente perda de competitividade da indústria nacional – não há problema também em que o modelo de estabilização do país fique à mercê da percepção de investidores internacionais ávidos por ganhos em curto prazo. Assim, na visão de seus formuladores, não se deve diferenciar capital nacional de capital externo – um reducionismo e degeneração macroeconômica da análise histórico-sociológica que se consagrou como “teoria da dependência associada” –, como não se deve também falar em controle de capitais, o que lhes soaria aos ouvidos como uma heresia heterodoxa intervencionista. Desse modo, dependentes do capital externo – muitas vezes de caráter meramente especulativo – devemos guiar nossa política macroeconômica de modo a conquistar constantemente sua confiança e credibilidade, o que se começa a fazer cortando gastos, como ficou claro na transcrição das ideias feita acima.

Cumpre acrescentar que o governo Lula só logrou colocar as políticas sociais no centro de sua ação, possibilitando o avanço que se observa hoje, após um longo processo de negociação política e busca de credibilidade frente ao hegemônico “mercado financeiro” e seus representantes. O processo de negociação, que se deu em nível político-parlamentar e, principalmente, com as agências financeiras com quem o governo brasileiro tem que tratar, lhe custou todo o primeiro mandato. Naquele momento foram mantidos no comando da economia nomes que negociam e “acalmam” os mercados – como Palocci e Meireles – como também foram mantidos os altos níveis de desemprego herdados de FHC. E é precisamente a esses tempos sombrios que os economistas do Real pretendem retornar. Afirmá-lo não é nenhum terrorismo eleitoral, visto que é esse o período Lula que lhes arranca elogios.

Fica também a pergunta de como ao menos reduzir o rentismo que se hegemonizou no Brasil e que transformou o Estado brasileiro num guichê pagador de juros, tornando o país uma espécie de plataforma de valorização de capitais e tornando a aplicação em títulos públicos um negócio mais certo e rentável que o investimento produtivo. Parece pouco crível que a eliminação de subsídios e o corte de despesas sejam suficientes para permitir uma consistente baixa nos juros, e isso por razões mais políticas que macroeconômicas: Tem ficado claro que a classe que vive de juros adquiriu um enorme poder de influenciar – quando não capturar – a política estatal, como também basta assistir aos telejornais para constatar sua hegemonia ideológica. Os detentores do grosso dos ativos financeiros e seus financistas possuem um enorme poder de barganha frente aos implementadores de política econômica, quando não ocupam diretamente os postos chave no aparelho estatal. Esse é o nó que o governo do PT não foi capaz de extirpar, embora tenha deslocado parcialmente a balança de poder, afastando determinados agentes do mercado financeiro do comando da política econômica e transferindo a dependência financeira do Estado para os fundos de pensão e seus controladores, muitos de origem sindical, o que parece ter aumentado a margem de manobra do governo para alocar gastos. Trata-se, ao que parece, de mudar os agentes da intermediação. E, ao que parece, os antigos querem retornar.

1 Organizado pelo instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC), o evento ocorreu no dia 12/03/2014 em São Paulo.
2 Cf. a Arte da Política: a história que vivi.

*Felipe Calabrez é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutorando em Administração Pública e governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP)

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