Tadeu Alencar Arrais
Colaborador(a)
Desenvolvimento Brasileiro 30/Out/2014 às 13:52 COMENTÁRIOS
Desenvolvimento Brasileiro

Fomos todos Severinos: Uma reflexão sobre a funcionalidade econômica dos pobres

Tadeu Alencar Arrais Tadeu Alencar Arrais
Publicado em 30 Out, 2014 às 13h52

Tadeu Alencar Arrais*

Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta.
– João Cabral de Melo Neto, Morte e vida Severina

Essa semana, nas redes sociais, observamos demonstrações inequívocas de quanto a diversidade regional de nosso país, característica positiva de nossa formação nacional, converteu-se em uma negatividade. Para além do resultado das eleições no Nordeste, que pode ser interpretado a partir de várias perspectivas, assistimos um sem número de agressões ao grupo que classificam, grosso modo, de nordestinos. Uma das mais estranhas é aquela que deseja aos nordestinos a morte, dolorosa, por febre hemorrágica decorrente da contaminação por ebola. Não menos estranha é aquela que classifica as mulheres nordestinas como fêmeas reprodutoras, comparando-as às cabras que se multiplicam, de forma promíscua, no semiárido. Os dois exemplos são suficientes para que se dedique algum tempo para refletir sobre o significado dessas ofensas.

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O Nordeste pitoresco, representado tanto por coronéis decadentes quanto por Viúvas Porcinas, compareceu de diversas maneiras na literatura e na dramaturgia brasileira. Esse Nordeste foi forjado, em grande medida, pela indústria do entretenimento. Durval Muniz de Albuquerque, no livro A invenção do nordeste, cartografou o surgimento desse Nordeste e como suas representações mudaram ao longo do tempo (Albuquerque Júnior, 2006). Essa representação caricatural coincide com o momento da integração do mercado nacional, quando o Nordeste desempenha duas funções para o Sudeste brasileiro. A primeira foi a migração, já cantada pelo poeta Patativa do Assaré, em Triste Partida. Os estudos sobre padrões migratórios são inequívocos em afirmar a importância da migração de nordestinos para formação do mercado de trabalho no Sudeste brasileiro. Seria difícil compreender o processo de industrialização e a urbanização de São Paulo sem a presença do migrante, de forma geral, e do migrante nordestino, de forma específica. Os padrões migratórios, desde a década de 1930, estão estritamente relacionados com a oferta de trabalho e não apenas aos fatores hidrológicos.

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A segunda função foi desempenhada pelo viés do consumo. A população nordestina, longe de um grupo estático, durante esse período, também consumiu serviços e bens de consumo. Nesse ponto vale lembrar a reflexão de Francisco de Oliveira (1978) sobre o papel desempenhado pelo Estado para a reprodução do capital na região Sudeste e, mais especificamente, em São Paulo, por meio do financiamento da produção. E adivinhem, especialmente nos primeiros quarteis do século XX, de que lugar partiu uma parcela das importações regionais para o Nordeste brasileiro? Boa parte originou-se do Sudeste brasileiro. Não é exagero dizer, portanto, que o Nordeste contribuiu, a partir da cadeia do consumo, com a industrialização do Sudeste.

Mas o Nordeste de hoje é muito distinto daquele Nordeste que sofria com os flagelos da seca, à esperar o dia de São José, como fazem, hoje, os paulistanos. Mesmo o sertão, sítio inicial da sina de Severino, vê sua paisagem regional totalmente modificada. Cidades como Caruaru (PE), Floriano (PI), Barreiras (BA), Caicó (RN), Imperatriz (MA), Mossoró (RN), Juazeiro do Norte (CE), Petrolina (PE), entre outras, demonstram pujança econômica, resultado da associação entre um setor agrícola moderno com o setor de serviços que atende grandes extensões de áreas do sertão. Os dois setores foram beneficiados por políticas de crédito. A força do setor terciário nessas localidades, com oferta de emprego e renda acima das médias regionais, reforça a compreensão da importância da presença do Estado, seja por meio das transferências de renda, seja pela presença de serviços que dinamizam a economia. Vejamos o exemplo da expansão e consolidação da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Os pigmentos visualizados na figura 01 demonstram o quanto a matriz de investimento da educação federal, antes localizada apenas nas capitais, mudou radicalmente o mapa da educação brasileira. As Cidades de Codó (MA), Urucui (PI), Sobral (CE), Arapiraca (AL) ou mesmo Jacobina (BA), entre dezenas de outras cidades, foram contempladas com investimentos que resultarão, certamente, em dois impactos. O mais imediato é a qualificação profissional. O segundo é o efeito em cadeia, indicado pela oferta de mão obra qualificada, com atração de vários segmentos industriais, cujos exemplos mais notáveis são as cidades de Imperatriz (MA) e Marabá (PA). Mas os investimentos federais na educação superior não se limitaram a expansão da rede física dos Institutos Federais ou mesmo das Universidades Federais. É necessário lembrar que a cobertura da rede privada, por meio do PROUNI (Programa Universidade para Todos), também foi beneficiada. Segundo informações do MEC (2014), foram ofertadas, em 2014, 162.329 bolsas, sendo 108.686 integrais e 53.643 parciais. Só o Estado de São Paulo foi contemplado com 56 mil bolsas. Para além da discussão do mérito, que sempre é colocado em xeque quando se trata de Bolsa Família, as bolsas do PROUNI também são funcionais para economia e representam um custo unitário maior que os programas de transferência de renda.

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Figura 1: Expansão da rede federal de educação profissional, científica e tecnológica (MEC-2013)

Essas transformações são resultado, não há porque negar, de mudanças macroeconômicas, por um lado, e mudanças na matriz de investimentos públicos, por outro lado. A aposentadoria rural, os ganhos reais do salário mínimo, o controle inflacionário e os programas de transferência de renda mudaram a realidade do Nordeste brasileiro. Como podemos observar na figura 02, a evolução do salário mínimo é incontestável, seja considerando a referência em dólar, seja considerando os ganhos reais. O corte temporal não é gratuito, uma vez que envolve políticas macroeconômicas edificadas no governo FHC e no governo Lula. A diferenciação é inequívoca e pode ser lida, também, pela ótica do consumo da cesta básica pelas famílias, que aumentou em igual proporção. Mas não há impacto maior do aumento do salário mínimo do que aquele registrado nos trabalhadores domésticos que passam a ter direitos não apenas institucionalizados, mas aplicados, a exemplo do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). Reportagem da revista Carta Capital, citando dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), indica que Brasil é o país com maior número de empregados domésticos, sendo que 95% dos 7,2 milhões, dados de 2010, são mulheres. Esse mercado, como argumentam alguns, foi inflacionado pelo aumento do salário mínimo e pela garantia de direitos trabalhistas, algo que não agradou nenhum pouco a chamada classe média alta que se orgulha em gastar R$ 300 em um cabernet sauvignon e sente-se confrontada, ao mesmo tempo, em depositar o FGTS para trabalhadoras domésticas, em valor que raramente ultrapassa os R$ 80,00 mensais. Não é necessário dizer o quanto essas mudanças desagradaram a parcela da sociedade brasileira que louva as distinções econômicas e que se recusa a remunerar de forma adequada aqueles responsáveis pela rotina doméstica que são, em grande proporção, Nordestinos.

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Figura 2: Evolução do salário mínimo, em dólares (U$) (DIEESE)

Mas enganam-se aqueles que imaginam que os programas sociais contemplam apenas o Nordeste brasileiro. A tabela 1 indica, claramente, que esse programa não beneficia apenas essa região, bastando para isso observar a posição de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, estados que receberam, aproximadamente, 22% do total de recursos totais do Bolsa Família. Todos os municípios brasileiros foram contemplados, o que torna o Bolsa Família o programa de maior capilaridade social e econômica do país.

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Tabela 1: Distribuição dos recursos do Bolsa Família referente a Outubro/14 (Portal da Transparência do Governo Federal; CAIXA Econômica Federal/Benefícios sociais)

As transferências de renda movimentam as economias municipais, com impacto direto no varejo e indireto na geração de empregos, seja na modesta Piripiri (PI), seja na onipresente São Paulo (SP). Só quem não conhece o interior do Nordeste ou mesmo as periferias das grandes cidades para imaginar que a renda do Bolsa Família é aplicada em ações, letras do tesouro nacional ou fundos de renda fixa. O grosso dessa renda alimenta uma rede de varejo de bens de consumo duráveis e não duráveis que reverbera em todo o país. Quando um casal da zona rural do Quixeramobim (CE) adquire bens de consumo com recursos do Bolsa Família, por exemplo, está alimentado uma cadeia produtiva totalmente integrada nacionalmente. É por esse motivo, portanto, que o Bolsa Família, para além dos condicionamentos, como frequência na escola, pré-natal e atualização da agenda de vacinações, tornou-se funcional para a economia nacional. Estudo do IPEA aponta que a cada R$ 1 gasto com o Bolsa Família, R$ 1,78 são incorporados ao PIB. O Bolsa Família, portanto, gera emprego e distribui renda para todas as regiões do país, como bem descrito por Neri, Vaz e Souza (2013). O mesmo não pode dizer, por exemplo, das pensões vitalícias para filhas de militares que, em 2013, segundo informações do Correio Brasiliense, representou a bagatela de R$ 10,3 bilhões. Esse valor foi apenas para 103 mil filhas, exemplo semelhante à mais ilustre pensionista brasileira, a artista global Maitê Proença – não é de se estranhar sua ferrenha oposição ao Bolsa Família.

A ampliação da presença do Estado, fato insofismável em nossa histórica política e econômica, por meio de financiamento, sempre foi funcional para a economia. É por esse motivo e não por outro que a crise que abalou a economia dos Estados Unidos, cujo maior sintoma foi a crise habitacional, não atingiu o Brasil com a mesma intensidade. O que dizer das linhas de crédito do PRONAF (O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) que beneficiam pequenos agricultores, pescadores, silvicultores, comunidades tradicionais? O que falar das linhas de crédito do FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) que permite que alunos ingressem em universidades privadas com juros de aproximadamente 3,4% ao ano e com financiamento total das mensalidades? Que dizer do programa Minha Casa Minha Vida, programa que reduziu o déficit habitacional e, ao mesmo tempo, estimulou o mercado da construção civil? Todos esses recursos dinamizam a economia, geram emprego, distribuem renda e, sobretudo, melhoram qualidade de vida de parcela significativa da população brasileira.

Mas o que não deve nos escapar na análise é o seguinte:

a) Esses programas são universais e, muito embora possamos identificar um perfil regional, atingem de forma expressiva a economia do Centro Sul do país tanto quanto a economia do Nordeste. A metáfora econômica da Locomotiva, que advogava para São Paulo o protagonismo da economia do país, nunca foi tão inapropriada quanto agora.

b) A manutenção ou ampliação desses programas não depende da retórica desse ou daquele político, mas de uma matriz econômica historicamente localizada. A perseguição do superávit primário, o sucateamento dos bancos públicos (responsáveis diretos pelo financiamento e gerenciamento desses programas), a ideia de um Estado Mínimo que preserve a liberdade do mercado e a obsessão pelas privatizações não permitem, considerando essa matriz, a permanência e/ou mesmo a ampliação desses programas, fato que se enquadra, historicamente com as propostas do PSDB.

Toda essa carga de preconceito, expressa em mensagens divulgadas na internet e adesivos em veículos, até agora, não nos tornou rancorosos. Nossa alegria foi construída diante de dificuldades econômicas, sociais e hídricas, fato que deveria nos aproximar de todos os brasileiros. Mas não confundam nossa alegria com ingenuidade. Nossa receptividade com submissão. Nossa humildade para aprender com qualquer tipo de tolerância em relação às calúnias e práticas xenofóbicas. É preciso registrar, com a força do repente, que já não somos os mesmos Severinos. Que não morremos de velhice antes dos trinta e nem de fome, um pouco por dia.

Arre égua!

*Tadeu Alencar Arrais é filho de cearenses, pai de uma menina maranhense e colaborador em Pragmatismo Político

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 3ª Ed. Recife: FJN, São Paulo: Cortez, 2006.

BRASIL: Portal da Transparência do Governo Federal: Transferência de Renda Diretamente às Famílias em Condição de Pobreza e Extrema Pobreza. Brasília: Controladoria Geral da União, 2013. Disponível em: http://www.portaltransparencia.gov.br/PortalTransparenciaPesquisaAcaoUF.asp?codigoAcao=8442&codigoFuncao=08&NomeAcao=Transfer%EAncia+de+Renda+Diretamente+%E0s+Fam%EDlias+em+Condi%E7%E3o+de+Pobreza+e+Extrema+Pobreza+%28Lei+n%BA+10%2E836%2C+de+2004%29&Exercicio=2014. Acesso em 10/10/2014.

BRASIL. Consulta Pública ao Bolsa Família. Brasília: Caixa Econômica Federal, 2014. Disponível em: https://www.beneficiossociais.caixa.gov.br/consulta/beneficio/04.01.00-00_00.asp#. Acesso em 10/10/2014.

CARTA CAPITAL. Os serviçais do Brasil. Ideias. 23 de janeiro de 2013.

CORREIO BRASILIENSE. http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2014/02/23/internas_economia,414241/pensoes-a-beneficiarios-de-militares-chegaram-a-r-10-3-bilhoes-em-2013.shtml. Acesso em 11/10/2014.

MEC. Brasil.  In: http://redefederal.mec.gov.br/ . Acesso em 13/10/2014.

MEC. Brasil. In: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-01-17/sobe-para-162-mil-numero-de-bolsas-do-prouni. Acesso em 13/10/2014.

NERI, Marcelo Cortes; VAZ, Fábio Monteiro & SOUZA, P. Herculado G. Efeitos macroeconômicos do programa Bolsa Família: uma análise comparativa das transferências sociais. In. Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Org. Tereza Campello, Marcelo Côrtes Neri. Brasília: IPEA, 2013.

OLIVEIRA, Francisco. Elegia para uma re(li)gião. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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