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Privatização é caminho sem volta

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Para especialistas, aliança entre o Estado e a iniciativa privada em consonância com as taxas crescentes de encarceramento pode criar retrocessos irreversíveis na promoção dos Direitos Humanos.

Luísa Moura*, Pragmatismo Político

No auge da disputa à presidência de 2014, o debate sobre a privatização do sistema carcerário brasileiro volta à tona como solução de segurança pública, dividindo eleitores e acirrando disputas.

A iniciativa levantada no programa de governo do atual candidato à eleição Aécio Neves (PSDB) diz respeito à condução dos processos de construção e gestão das penitenciárias, que passariam a ser de responsabilidade da iniciativa privada. A proposta, contudo, não é inédita. As tentativas de aliança entre os setores público e privado já aconteceram nos estados do Ceará, Minas Gerais, Santa Catarina e Paraná desde os anos 1990.

Na opinião de analistas, a adoção do modelo de parceria público-privada (PPP) pode não só se mostrar ineficiente para o tratamento da impunidade como significar um irreversível retrocesso na conquista de direitos individuais.

O Brasil possui a 4ª maior população penal do mundo, com aproximadamente 550 mil presos. As taxas crescentes de encarceramento e a evolução de políticas de segurança no sentido do recrudescimento e do alargamento do escopo da criminalização demonstram a vontade política de resolver o problema da criminalidade com a detenção.

Para Laurindo Minhoto, professor de Sociologia na Universidade de São Paulo (USP), “o chavão de que o Brasil é o país da impunidade é uma mentira”. Para ele, o Brasil é hoje um país que pune em excesso e de forma desigual. “A cultura de hiper-repressão penal afeta sobretudo as camadas mais desprivilegiadas. Existe um encarceramento em massa voltado a esses setores”, afirma. A parceria público-privada é, para ele, motivo de preocupação: “Tornar a iniciativa privada sócia nesse empreendimento penal seletivo é uma maneira de aprofundar as desigualdades sociais. A privatização dos presídios poderia ocultar sob a aparente melhora no curto prazo de condições prisionais a substituição paulatina de um projeto de estado de bem-estar social para o de um ‘estado prisional’, no qual a população marginalizada seria matéria-prima para controle e negócio”.

O processo de privatização do sistema carcerário aprofundaria o mecanismo de exclusão social do infrator. Com remuneração relativa à quantidade de presos e à permanência das penas, a privatização poderia sedimentar o cruel processo de exclusão da população marginal. “O preso não é mercadoria, é um sujeito de direitos. Um dos grandes problemas da privatização do sistema carcerário é o filtro de quem entra”, diz Rafael Custódio, especialista em Direito Penal Econômico e coordenador do programa de justiça da Conectas Direitos Humanos.

Na opinião de organizações de Direitos Humanos, como a Conectas e a Pastoral Carcerária, essa conduta não resolve o problema da criminalidade, mas a joga para baixo do tapete. A própria legislação penal determina qual parcela da população o Estado pretende encarcerar. “Cerca de metade [da população carcerária] é de homens de até 29 anos, que invariavelmente possuem uma questão de vulnerabilidade social por trás. Quando uma conduta é tipificada [pela legislação penal], já se sabe quem vai ser preso”, afirma Custódio. Para ilustrar a diferença, ele questiona: “Quando você sonega um imposto, o Estado te processa, mas te dá uma chance de se regenerar. Por que isso não acontece com o roubo de um celular, por exemplo?”. Para ele, a política de encarceramento em massa não atinge as bases que levam à criminalidade, mas delimita os contornos de uma parcela da sociedade que não será alcançada pela tutela do Estado, em uma dupla punição por estar à margem do status quo que deveria ser proporcionado pela própria ação estatal.

Em visita realizada pela Rede Justiça Criminal ao presídio de Ribeirão das Neves (MG), que é coordenado pela iniciativa privada, Custódio narra o alto nível de controle físico e psicológico como uma das faces cruéis do modelo de gestão. “A alma do presídio é muito mais brutal do que a do sistema público. Como a empresa sofre sanções se houver reclamação de tortura ou fugas, ela aumenta o controle sobre o preso a um nível desproporcional. No banho, por exemplo, há um chuveiro no meio da cela e o cada preso tem quarenta segundos para usá-lo”. Como o novo modelo não rompe com as denúncias de maus tratos ou com as incidências de revoltas, muitos dos detentos visitados demonstraram preferência aos presídios federais pela forma de tratamento que lhes seria dada. “Cria-se, com a privatização, a imposição para a empresa não torturar. Contudo, ela não vai deixar de fazê-lo, mas o fará de forma menos rastreável. Os novos presídios não inspiram ou renovam o convívio em sociedade, mas tornam o cárcere uma experiência ainda mais sombria”.

Divergências

Dentre os argumentos a favor da privatização, um dos fatores positivos da adoção do modelo seria a garantia dos direitos do sentenciado. A Lei de Execução Penal determina 15 direitos do preso, que incluem direito ao trabalho e à previdência social, à assistência material e à integridade física, psíquica e moral. Segundo Henrique Kloch, especialista em direito penal e processo penal, “A maioria das vezes o direito do preso é violado nas unidades do sistema prisional brasileiro, resultando rebeliões, pois seres humanos desejam ser tratados como tal”. A gestão privada dos presídios permitiria maior eficiência no cumprimento dos direitos do preso e de sua ressocialização.

O Capitão Emerson Massera, assessor de comunicação da Polícia Militar de São Paulo, concorda com a superioridade do modelo. Indagado sobre sua opinião a respeito do tema, ele questiona, curioso: “alguém é contra?” Massera engrossa o coro daqueles que se opõem ao encarceramento em massa, concordando a respeito de sua ineficiência na capacidade de modificar as causas que levam ao crime. “Nós temos uma constatação empírica de que o crime está associado a uma carência de condições que proporcionem qualidade de vida”. A política do encarceramento em massa inverteria, assim, a prioridade da ação política e legislativa, tentando mitigar efeitos que não viriam a ocorrer caso fossem eficientemente prevenidos: “ao invés de resolver a origem do problema social, o encarceramento o mascara de forma artificial”. Entretanto, como essas medidas de prevenção tampouco são realizadas de forma adequada, melhores condições no sistema penal poderiam ao menos remediar as más condições sociais que cercam a população delinquente: “Nós somos obrigados a reconhecer que a nossa sociedade hoje tem um problema, de forma que nós não podemos simplesmente abrir mão da política do encarceramento. Temos que encontrar um ponto de equilíbrio entre prevenção e repressão”.

A maior eficiência do modelo privado resultaria em um processo de ressocialização mais eficiente, uma vez que estruturas adequadas permitiriam que as penas fossem humanizadas. Como resultado, seus defensores apontam taxas de reincidência criminal 40% menores do que as observadas no sistema público, no qual os índices estão em torno de 70%. Essa redução demonstraria o sucesso da parceria. Para Rafael Custódio, contudo, “se o modelo é tão perfeito, esse índice pode ser considerado baixo”. Para ele, a política de egressos é muito difícil de ser pensada, pois envolveria um amplo horizonte temporal de acompanhamento nunca antes empreendido em território nacional. Nos Estados Unidos, a American Civil Liberties Union (ACLU), organização de defesa dos direitos e liberdades individuais, demonstrou que o processo de privatização do sistema penal acarretou no aumento médio da permanência no regime de detenção, demonstrando que os resultados da privatização não se voltam para a ressocialização, mas para o aprofundamento da reclusão.

Marcos Fuchs, diretor do Instituto Pro Bono, concorda com a melhoria das condições de tratamento dos presos em presídios privatizados, mas acredita que esse fator não deve determinar a transferência da responsabilidade do Estado: “A privatização melhora as condições de ressocialização, mas o Estado é quem deveria trabalhar nisso”. Como um dos fatores problemáticos na parceria, ele aponta a exploração do trabalho. De acordo com a Lei de Execução Penal, o preso deve trabalhar caso existam vagas no sistema penitenciário, sendo sua recusa considerada uma falta grave. Embora não tenha direito a vínculo empregatício, o preso tem direito à remuneração de ao menos 3⁄4 do salário mínimo. A exploração dessa disparidade salarial pela iniciativa privada é um ponto de crítica de opositores à parceria e de forte contestação sindical.

Outro aspecto importante diz respeito à discutida constitucionalidade da medida. Laurindo Minhoto aponta que, como o poder de punir com prisão é uma atribuição exclusiva do Estado, não se poderia delegar a execução da pena a agentes privados. “A administração do sistema penal é uma função indelegável do Estado”. Para defensores da privatização, a inconstitucionalidade poderia ser, contudo, sanada com a adoção de modelos mistos que previssem a articulação entre agentes públicos e privados. Capitão Massera segue por essa linha: “O sistema misto consegue fazer com que o Estado intervenha quando haja algum abuso. É possível adequar as estruturas e criar mecanismos para que problemas não ocorram. Agora, não podemos usar possibilidades de falhas como desculpa para não enfrentar o problema, ou para não privatizar”. Segundo esse entendimento, a existência de normas e agentes estatais poderia descaraterizar a usurpação de prerrogativa exclusiva do Estado. Integra essa visão o argumento de que seria possível diferenciar com clareza atividades de natureza administrativa e atividades de natureza estritamente jurisdicional.

Minhoto argumenta, contudo, que o que muitas vezes se quer apresentar como meramente administrativo possui inequívoco caráter jurisdicional. Como exemplo, pode-se apontar as atividades voltadas a estratégias de ressocialização de detentos as que envolvem direitos e garantias previstos em lei. “Do ponto de vista sociológico, deve-se levar em conta que o cotidiano da aplicação de normas jurídicas e disciplinares torna difusos os contornos entre as funções de arbitrar e executar a sanção: “sabe-se que no interior das prisões aplicam-se rotineiramente regras e sanções extra-jurídicas, produzindo-se, na prática, um espaço institucional de suspensão de direitos.”

A insistência no modelo de encarceramento é, contudo, um paradoxo. Enquanto se defendem bandeiras da redução da maioridade penal, a Fundação Casa liberta muitos de seus internos antes do cumprimento da pena por falta de condições estruturais para mantê-los no regime fechado. Presídios superlotados e más condições de tratamento são denúncias recorrentes de órgãos internacionais e de organizações do terceiro setor, como o recente relatório do Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da Organização das Nações Unidas (ONU). Para Rafael Custódio, não é ausência de leis que determina as más condições do sistema carcerário no Brasil, mas sua má utilização: “Queremos
reformar leis sem nunca tê-las aplicado. O Estatuto da Criança e do Adolescente nunca foi aplicado e agora se fala em reformas sobre a maioridade penal”. O remédio para a profunda crise do sistema carcerário brasileiro poderia, para ele, passar por uma melhor aplicação do repertório jurídico e legislativo de que já dispomos.

Modelos pautados na prevenção da criminalidade nunca foram impostos no país, ainda que já tenham sido propostos. A necessidade de mudar o modelo de política e de polícia é, para o coordenador, um dos meios de estabelecer um sistema mais justo e reformador. O presidente francês François Mitterand enfrentou a opinião pública e revogou a pena de morte por guilhotina que persistiu em seu país até a década de 1980. A medida, inicialmente rechaçada pela opinião pública, foi essencial para a promoção dos Direitos Humanos no continente europeu. “É necessário que haja uma conduta contra-majoritária em momentos de baixa racionalidade por parte do governo federal. Só assim podemos salvaguardar os direitos humanos”, conclui Custódio.

*Luísa Moura é graduanda em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e colaboradora de Pragmatismo Político

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