Sobre ditadura, liberdades civis (e de imprensa)
O Brasil, a bem da verdade, ainda tem muito o que avançar em termos de aperfeiçoamento e democratização da legislação pertinente aos meios de comunicação, mas é preciso reconhecer que nunca se teve tanta liberdade como hoje
Ângelo Menezes*, Pragmatismo Político
Após mais um dos exaustivos debates presidenciais (o penúltimo, pelo que me consta), acordei com uma série de manchetes e publicações em redes sociais que me deixaram muito incomodado e reflexivo.
“Campanha da Dilma é feita somente de ataques”; “Querem implantar uma ditadura no Brasil”; “Eu tenho 18 (dezoito) anos e não tenho liberdade de expressão, porque o PT tira todos os meus direitos” (esse último, inclusive, já virou meme).
Não pretendo com esse texto traçar um esboço histórico sobre a evolução das liberdades civis e políticas (de imprensa, de manifestação, de associação, etc.) no nosso país, mas, muito me espanta, que em pouco mais de 20 (vinte) anos após a redemocratização brasileira, a memória de um período tão cruel e que é uma das maiores marcas na história do cerceamento de todas as categorias de direitos fundamentais em uma escala global, tenha se esvaído com tanta “leviandade” (palavra da moda de tendência azul).
Vivemos em um país presidido por um partido que, sem embargo das críticas que devem ser tecidas pelas coligações tortuosas firmadas ao longo dos últimos anos (necessárias, porém, por questões de governabilidade), nasceu no berço das lutas dos trabalhadores por uma vida mais condigna.
Vivemos em um país presidido por uma mulher. Não, eu não posso ser mais claro nesse ponto.
Vivemos em um país presidido por uma pessoa que é sim, não importa o quanto você tente negar hoje, símbolo de luta pela redemocratização, pela observância aos direitos fundamentais inerentes à condição humana, pela possibilidade das pessoas (eu, você, o jornal que você gosta, o jornal que eu gosto) expressarem livremente seus pensamentos, sem que isso implique, necessariamente, em uma ameaça direta a sua incolumidade física e psicológica.
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Economistas, administradores, investidores e todas as demais pessoas que vivem de números, tem todo o direito de expressarem suas preocupações com os rumos da política econômica adotada pelo PT – ainda que eu discorde e tenha os meus argumentos dentro dessa perspectiva, respeito imensamente e sei viver com as dissidências de quem pensa o contrário.
Mas da discussão sobre “inflação”, “juros” e “ajustes macroeconômicos”, para uma teoria da conspiração que visa a implantação de uma “ditadura comunista” ou ao cerceamento do exercício de liberdades civis, existe um déficit cognitivo que beira a ingenuidade ou a má-fé – escolha a carapuça que lhe aprouver.
Para não ser acusado de uma defesa “ideológica”, “cega” ou “partidária” (não possuo nenhum tipo de filiação partidária, vale ressaltar), delimitemos o universo da discussão (por ora) as questões relativas à “Liberdade de Imprensa”.
Nesse sentido, trago dados do Programa das Nações Unidades para o Desenvolvimento (PNUD) – antes que também seja acusado de utilizar dados de órgãos manipulados pelo governo. Os relatórios são públicos e os links seguem ao final.
No ano de 2000 o índice de “Liberdade de Imprensa” apontado para o Brasil era de 31 pontos. (onde zero significa a liberdade total e cem representa o controle total dos meios de comunicação em massa). No relatório de 2010, tomando como base os dados colhidos em 2009, o Brasil apresentava 15,9 pontos dentro desse mesmo índice.
Isso significa que passamos do inferno do controle midiático (2000) para o paraíso e perfeição (2009)? Absolutamente não! O Brasil, a bem da verdade, ainda tem muito o que avançar em termos de aperfeiçoamento e democratização da legislação pertinente aos meios de comunicação.
Mas, “nunca antes, na história desse país” a (grande) mídia teve tanta liberdade para exercer o seu mister. O que acontece, contudo, é que ao invés de informar, os grandes mecanismos de comunicação em massa deformam, desinformam, solapam, criminalizam movimentos sociais legítimos e, acima de tudo, cavam verdadeiras trincheiras entre os mais diversos segmentos da sociedade – o que reflete, em muito, no ódio e no verdadeiro sectarismo propagado Brasil adentro ao longo desse mês de outubro.
“Isso não existe!”, “os meios de comunicação são controlados pelo PT”, “O PT só usa suas campanhas para atacar a oposição” são apenas alguns dos exemplos de coisas que li e reli ao longo do dia de hoje. Não coaduno com uma campanha construída na base de ataques ao adversário, mas, dentro da atual conjuntura, de que outros mecanismos dispõe a atual presidenta?
Os mesmos meios de comunicação que noticiaram ao longo do final de semana, em letras garrafais, “Nova regra do TSE barra em 3 dias 4 propagandas de Dilma”, são os mesmos responsáveis por usarem das táticas mais abomináveis para conseguirem os seguintes números – e nesse caso, uma imagem vale muito mais do que as mais de mil palavras desse texto.
No gráfico abaixo temos o número das manchetes e chamadas de capa contrárias a cada candidato ao longo do tempo, dividido em semanas, tomando como começo da série o início do período oficial de campanha, 6 de julho.
Ao invés de conscientizar o cidadão acerca dos meios (liberdades civis e políticas) que dispõe para auxiliar na condução da gestão pública, a mídia prefere resumi-los, em incansáveis campanhas, ao mero exercício do sufrágio.
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Ao invés de contribuir para a construção de uma sociedade realmente pautada no pluralismo político, na discussão de perspectivas contrárias para a construção de um consenso mais favorável à todos, prefere os incontáveis escândalos, denúncias não apuradas, debates pirotécnicos onde as propostas que realmente importam são, seletiva e categoricamente, descartadas – em razão das próprias trincheiras que já foram estrategicamente cavadas durante todo o período que precede o lançamento das candidaturas.
Esse texto não é um manifesto contra “a (grande) mídia” (acho até mesmo essa expressão um tanto quanto piegas), mas, tão somente, uma tentativa de que todos nós façamos um exercício reflexivo sobre inverdades propaladas por oposicionistas rancorosos e sobre a forma de atuação que realmente queremos para os nossos mecanismos de comunicação em massa.
Há muito que se avançar ainda, especialmente no que tange a abertura de espaços e garantia de representatividade para minorias que foram, durante séculos, seletivamente, esquecidas ou escanteadas pelos mais diversos agentes políticos do nosso país.
À mídia e aos meios de comunicação em massa, cada dia mais livres, a responsabilidade de não mais cavar trincheiras e dar azo a sectarismos ou discursos rancorosos que não cabem mais em pleno processo de aperfeiçoamento democrático que vivemos.
Informar, mas, principalmente, formar cidadãos cada vez mais conscientes das ferramentas que dispõem para tornar nossa sociedade, como já previa nossa Constituição em 1988, livre, justa e, principalmente, solidária.
Ditadura, jamais.
Referência:
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2002. Disponível em: http://www.pnud.org.br/HDR/arquivos/RDHglobais/RDH%202002_pt.pdf. Acesso em 20 de out. 2014.
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2010. Disponível em: http://www.pnud.org.br/HDR/arquivos/RDHglobais/PNUD_HDR_2010.pdf. Acesso em 20 de out. 2014.
*Ângelo Menezes é Mestrando em Direito Constitucional pela UFRN e Professor Colaborador da disciplina de Direitos Humanos Fundamentais do curso de Direito da UFRN