A esquerda caviar e o pobre conservador
O oposto à esquerda caviar não seria uma direita mortadela ou uma direita rapadura, mas sim o conservador astuto, pobre de espírito, aquele que contribui para que o menos favorecido aceite a pobreza de si próprio e legitime a riqueza de outrem
César Zanin*
Esquerda caviar é o apodo usado hoje no Brasil para designar quem faz parte das classes mais favorecidas da sociedade e defende o socialismo ou mesmo o progressismo, em oposição ao capitalismo neoliberal ou simplesmente ao conservadorismo.
Muita gente pensa que a expressão foi inventada por algum colunista da Veja, mas já nos anos 80 era usada pelos detratores de Miterrand na França.
Podemos encontrar equivalentes em outras línguas também, o conceito remonta à primeira metade do século XX, talvez até mesmo à segunda metade do XIX.
Depois das manifestações de junho de 2013 e principalmente agora nas atuais eleições presidenciais, os ânimos para o debate e o embate políticos se exaltaram como não acontecia no Brasil nos últimos 30 anos.
A ideia da expressão é desqualificar, no estilo “Fla-Flu”, ou melhor dizendo, “Curíntia-antis”; denotando que os membros da esquerda caviar não são sinceros em suas convicções, uma vez que pregam uma sociedade socialista e, de maneira hipócrita, se beneficiam do sistema capitalista; implicitando que somente os pobres poderiam defender o socialismo com legitimidade.
Resta saber se, para quem acredita nessa ideia, a esquerda caviar seria ardilosa (fingindo ser simpática à causa dos menos favorecidos e ao mesmo tempo perpetuando as diferenças) ou apenas ingênua (desconhecendo que com essa postura poderia perder suas regalias).
Ainda não li o livro do colunista da Veja…
O ponto de partida para isto tudo é uma visão de mundo, de quem acredita nessa ideia de esquerda caviar, onde a sociedade foi, é e será dividida entre classes espertas e classes preguiçosas, favorecidos e desfavorecidos. Onde basicamente seria impossível todos serem ricos e a pobreza ser erradicada.
O medo corrente de aproximadamente metade dos eleitores brasileiros, herdado de um tempo em que não existia sequer isso de socialismo ou capitalismo, sussurra via PiG e costumes “de bem”, que o socialismo malvado da gang dos PeTralhas iria tirar as riquezas das classes favorecidas e dar aos pobres, desrespeitando a legitimidade da propriedade particular e acomodando a sociedade rumo ao atraso e à pobreza generalizada.
É um engano, pois além de estarmos no décimo segundo ano de governo federal do PT e sem maiores turbulências para os ricos (pelo contrário), o socialismo busca a igualdade social, algo bem diferente de empobrecimento geral (vide o mapa da pobreza no mundo da ONU, pela primeira vez na história sem o Brasil nele). Caso o engano em relação aos objetivos do socialismo persista, basta ver como vivem os cidadãos dos países nórdicos e perceber o quão parecidas são as propostas principais de reformas que a Dilma vem tentando colocar em pauta no Brasil.
E também porque ter outros em situação de inferioridade forçada e velada, à nossa disposição sustentando um ambiente em que nossas regalias abundam impedindo a dignidade de outros, olha, isso não pode ser conceito de riqueza; já está claro que, com os avanços da ciência e as novas tecnologias, os recursos atuais disponíveis em nossos ecossistemas seriam mais que suficientes para o bem-estar material de todos os humanos do planeta. Já está claro também que não o poderão ser por tanto tempo assim, visto que população cresce e o planeta, que não cresce, vem sendo cada vez mais estragado.
Eu repudio o consumismo desenfreado, pois gera desperdício e, com os recursos naturais limitados que são, cada vez mais tenho a convicção que deveríamos usar a lógica da ecologia para buscarmos cada vez mais tecnologia com menos desperdício.
Ciência como religião. E isso nada tem a ver com socialismo, tampouco com capitalismo.
Eu sei, estou enveredando por um caminho que poderá ser rotulado por muitos como utopia (inclusive por progressistas), além dos conservadores que tiveram a paciência de ler até aqui provavelmente me rotularem de petralha, mas tudo bem, poderei me aprofundar sobre esse conceito de uma sociedade científico-ecológica em outro texto, por ora voltemos ao tópico da esquerda caviar.
Esquerda caviar é o rico de esquerda, o bem-educado de esquerda, aquele que é visto como incoerente.
O escárnio é tanto que às vezes a própria pessoa chamada de esquerda caviar acaba se enxergando negativamente como tal. Isso causa confusão, alguns resignam-se e tendem a se distanciar da política, outros conseguem transformar a vergonha em reafirmação de conduta.
Já o pobre que elege os mesmos neoliberais conservadores que os mantêm desfavorecidos, esse acaba não sendo visto como incoerente por ninguém, pois a esquerda (seja ela caviar ou não) enxerga que ele é iludido (veja como conquistas suadas tais quais a abolição da escravatura, a CLT, o voto das mulheres etc foram de certa forma “contornadas” pelo modus operandi do capitalismo, mantendo a desigualdade social), e a direita finge que não enxerga incoerência alguma, finge que é assim que tem que ser.
O oposto à esquerda caviar não seria uma direita mortadela, ou uma direita rapadura, afinal Gandhi nunca se definiu como um socialista e, escolher para si a pobreza material, apesar de maravilhosamente louvável, nada tem a ver com socialismo; a meu ver o oposto à esquerda caviar é mesmo o conservador astuto, pobre de espírito, simpatizante do que a Veja publica, isto é, aquele que contribui para que o pobre aceite a pobreza de si próprio e legitime a riqueza de outrem, e principalmente para que ele acredite que a única maneira de se tornar rico é deixando o “time” dos pobres para trás, para então ajudar o “time” dos ricos a perpetuar esse jogo, ou melhor dizendo, jugo.
*César Zanin é tradutor, professor, escritor, produtor e colaborador em Pragmatismo Político