Em busca de método menos invasivo, hospitais franceses trocam anestesia geral por hipnose. Médicos deixam de lado substâncias pesadas e economizam com internação mais curta ao usar estado alterado de consciência para desviar foco da dor no paciente
Amanda Lourenço, Opera Mundi
“Hoje vamos fazer uma pequena viagem”, começa o médico Marc Galy no Hospital Saint-Joseph, em Paris. O passeio da vez é em um jardim, mas também poderia ser na praia ou em uma estação de esqui: o destino depende apenas da preferência do interlocutor. “Imagine que você está no seu jardim, no meio de suas plantas, um lugar confortável e familiar”, continua o médico. O paciente respira calmamente e responde quando solicitado. A cena não teria nada de especial se estivesse acontecendo na ala de psiquiatria do hospital, mas o doutor Galy é anestesista e seu paciente está prestes a ser submetido a uma cirurgia vascular.
Enquanto isso, a equipe médica, liderada pelo cirurgião Samy Anidjar, se prepara em silêncio para a operação. “Quando eu começo a conversar com o paciente todo mundo fica quieto”, explica Galy. Muitas vezes, só de saber que existe alguém por perto disponível para se concentrar nele, o paciente se sente mais protegido: “As pessoas gostam quando a gente dá atenção a elas”, relata o anestesista.
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A prática da hipnose vem ganhando espaço nos centros cirúrgicos da França como uma alternativa menos medicamentosa aos procedimentos anestésicos tradicionais e invasivos. Combinada com a anestesia local, a hipnose pode substituir o uso de substâncias pesadas e, muitas vezes, até mesmo a anestesia geral. Os benefícios são inúmeros: diminuição dos riscos de infecção, melhor cicatrização, pacientes mais calmos e internados por menos tempo. Há também a vantagem econômica, já que, para cada dia a menos de internação em um leito público, os cofres franceses economizam aproximadamente € 1.500 (cerca de R$ 4.800).
No hospital Saint-Joseph, grande parte das cirurgias é feita com hipnose. A equipe de Samy Anidjar já fez mais de 400 operações da carótida com este método — e os resultados têm sido sempre positivos. Especialistas dizem que há pessoas mais resistentes do que outras, mas entre 90% e 95% da população haveria bons candidatos. A contraindicação mais frequente fica com os pacientes com histórico de psicose.
Além disso, as crianças seriam mais suscetíveis ao método da hipnose por causa da facilidade que têm em soltar a imaginação. O hospital infantil Trousseau, também em Paris, inaugurou em outubro deste ano uma nova unidade de cirurgia ambulatorial que utiliza métodos inovadores na ala operatória, como um capacete 3D disponível para as crianças se distraírem, além da substituição da anestesia geral pela hipnose. Até o momento, a hipnose infantil era usada apenas para combater dores no pós-operatório, mas agora está sendo incluída como auxílio em cirurgias viscerais.
Como funciona
A hipnose é um estado alterado de consciência, no qual a atenção do indivíduo é focada em um objeto específico, conduzido pelo hipnotizador. O processo é bem diferente dos clichês que aparecem frequentemente nas salas de cinema. “A hipnose é simplesmente um corte com a realidade. A pessoa tem que se concentrar em alguma coisa e esquecer todas as outras”, explica Galy a Opera Mundi em uma sala de reunião do hospital Saint-Joseph. “Na verdade é um processo natural no ser humano. Estamos aqui conversando, você está prestando atenção no que eu estou dizendo, por isso aposto que não percebeu que entrou uma pessoa na sala para pegar algo e que um médico passou pela porta carregando um aparelho enorme”, exemplifica, com precisão, o anestesista.
Além de seu efeito anestésico, o estado hipnótico tem outras utilidades, como o tratamento de fobias e traumas. O especialista usa essa janela da consciência para acessar lugares que seriam mais difíceis com a mente totalmente acordada. Na anestesia, o objetivo é apenas o estado hipnótico por si só, que já é suficiente para desviar o foco da dor.
Desde o século XVIII há registros de práticas médicas semelhantes à hipnose, mas ao longo das décadas sempre oscilou entre um tratamento revolucionário e um método descreditado. Foi apenas nos anos 1980 que voltou com alguma credibilidade na França, graças aos psicanalistas Léon Chertok e François Roustang. A universidade de Liège, cidade localizada no centro do país, começou a experimentar a hipnose como anestésico na década de 1990 e hoje oferece um curso específico sobre a técnica que já formou mais de 420 profissionais de toda a Europa.
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