Muro de Berlim e pesadelos de vergonha
Mário Dd Santos*, Pragmatismo Político
Em 1984 eu viajara para Berlim, visitando Klaus, um amigo alemão. Existindo dois aeroportos – o Tempelhof e o Tegel – o avião que me levava deixou no primeiro. Como ambos se situavam na cidade de Berlim, não pensava ser muito importante escolher um em particular. Ao desembarcar e apresentando meu passaporte, nos guichês da fronteira, a polícia me fez atravessar uma grossa porta esverdeada e percorrer uma galeria de cerca de 15 metros. Eu tinha afinal desembarcado na República Democrática da Alemanha! A cidade era mesmo Berlim.
Porém a Berlim do meu destino, àquela que correspondia à República Federal da Alemanha, distava quase 20 metros, depois da metálica porta verde. Em alguns segundos e poucos metros, saía de uma cidade, para entrar noutra, que tinha o mesmo nome, também se chamava Berlim. Aqui, as mesmas faces rosadas de funcionários diligentes com semblantes neutros, como os do lado gêmeo carimbaram no meu passaporte, a página do visto de turismo na “Bundesrepublik Deutschland”, a República Federal da Alemanha e finalmente alcançava o meu destino.
Assim, conhecia pela primeira vez a cidade de Berlim ao mesmo tempo que absorvi a estranha e curiosíssima sensação causada pelo então Muro de Berlim. Pude depois sentir também a sensação hilariante, concedida pelo mesmo muro, quando subia uma das muitas plataformas existentes ao lado do muro, onde estavam os berlinenses ocidentais, (livres alemães da RFA, mas presos dentro do muro) e se deliciavam a observar o interior do outro lado, onde os berlinenses orientais, apenas podiam ver o muro, passando a uma distância de mais de 400 metros, numa estrada paralela à divisória de betão e guarnecida ao longo da mesma por vários postos de vigia. Desde fotos, gritos, adeus e alguns gestos trocistas, não muito amistosos, feitos em direção dos soldados vigias, tudo serviu para mostrar a bizarra diferença entre os dois lados.
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Voltei mais algumas vezes à Berlim. Numa delas, já não precisei subir a plataforma para espreitar os berlinenses da DDR (Deutsche Demokratisch Republik), porque o muro tinha sido derrubado. A cidade que eu conhecia tornara-se estranhamente gigante. Os passeios de carro ou mesmo de bicicleta que me ajudaram a conhecer aquele Berlim fechado, que antes terminavam sempre num ponto do muro, passaram a ser mais longos e com um particular interessante. Percorrendo alguns quilômetros em direção à zona oriental, se sentia como se estivesse numa roda do tempo. Em pouco mais de meia hora, ficava no ar a sensação de se estar vivendo em anos passados, na década de setenta. Os prédios cinzentos e os carros tatra, skoda, (viaturas soviética e checoslovaca) ao lado da mascote nacional, o trampa, – um carro pequenino muito simples e o mais usado na época da RDA. O cenário era como o set de um filme, em ambiente antigo. Tudo se evidenciava para marcar a gritante diferença das duas Berlins.
Começava então uma fase nova. As Alemanhas se reunificavam e os alemães do leste, privados do conforto e modernidade dos irmãos ocidentais, não poderiam continuar a enfezar essa pátria renovada, vivendo a condição de coitados. Como nação unida, significava povo unido e igual. Deste modo os mais desenvolvidos, deram a mão para erguer os menos. Num esforço titânico, abnegado e com o espírito irreversível de irmandade, não obstante os 40 anos de divisão, a família germânica se refazia da desonra, de irmãos rivais de uma época.
Passaram 30 anos, daquela inesquecível lembrança de duas cidades siamesas ligadas pela cintura de cimento. Eis que este ano, no dia 6 de Novembro em Berlim, muita gente percorreu a antiga faixa de 15 quilômetros (que marca onde o muro estava) iluminada por sete mil balões 3,6 metros do chão, a altura da barreira construída em 1961. Era a comemoração da queda do “muro da vergonha”, como ficou também conhecido.
Ângela Merkel, a presidente da Alemanha Federal de hoje que, crescera e estudara na Alemanha Oriental, reafirmou nessa ocasião que “a queda do muro foi resultado da intensa pressão popular, que será eternamente lembrada como um triunfo do espírito humano”; e reforçou também que, “foi uma vitória da liberdade e é uma mensagem de fé para as gerações de hoje e do futuro, de que é possível derrubar muros, os muros dos ditadores, da violência e das ideologias.”
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Ao mesmo tempo em que profundamente pensava nestas palavras, no muro da vergonha e na evocação dos alemães na reparação de um feito indigno, saltou rapidamente à mente a fresca convulsão patriótica que o Brasil esteve vivendo nos últimos tempos, depois do rescaldo das eleições. Conclui com acentuado desapontamento, que a exteriorização abrupta duma reação ideologicamente temperamental e particularmente os desejos de dividir o país, são como espasmos de conflitos sócio-políticos que deixa à mostra os apetites das posturas retrógradas, de que os alemães viveram e salientam hoje, o fim dessa angústia. Ou seja: as propaladas pretensões de se erguer no Brasil um muro para dividir a nação que existem resultada dos seus contornos físicos, os recursos as diversidades étnicas e toda a sorte de misturas e hibridismos, que lhe conferiram o nome Brasil – só servem para resgatar os vírus de desunião e divisionismo adormecidos na história da criação do país. Donde nem mesmo, nobres “Farroupilhas” e “Contestados”, poderiam justificar uma vergonha que os alemães baniram e qualquer civilização, que se pretende humana, justa e tolerante aceita.
Evidenciar atitudes que destapam lembranças que o mundo civilizado, se envergonha de tê-lo vivido, mostra uma tacanhez tão discordante com parâmetros duma sociedade elitizada e moderna. Faz pensar que se os mentores e apologistas do desejo do Muro no Brasil, provenham dessa classe – cujos desabafos sociais e políticos em relação à governança que tem dirigido o país e cuja continuidade se renovou, acirrando mais ainda a ira dos desagradados – ela contém potencialmente uma impulsão visceralmente profunda e oposta para a unidade nacional. Tão profunda que a imbecilidade do temperamentalismo exteriorizado, neutralizou até a necessidade da postura cínica, mas elegante e nobre para o quadro social, que as classes superiores se esforçam por exibir. É como se tivessem cansado do fingimento civilizatório e recorresse à pureza do instinto duma cultura de domínio, de arrogância, de desrespeito e de desumanização do outro, cidadão irmão, filho do mesmo Brasil. A mesma cultura que impeliu à escravidão do negro, e à exploração de toda a massa popular que permitisse a distinção dos ricos abastados numa elite, histórica e caprichosamente resistentes a qualquer projeto social-econômico que humanizasse os que estão de fora. Mostra no fim de tudo, que em mentes e em sujeitos dessa natureza, a questão tem muito pouco ou quase nada de político e ideológico. Trata-se isso sim de um rebuscar instintivo, dos vírus antropológicos dos desumanismos arraigados nas gerações antecedentes.
Mário Dd Santos é jornalista português e colaborou para Pragmatismo Político