A utilização da veiculação “mercadológica” da política é parte da conquista democrática obtida com o fim da ditadura militar. Ocorre que um fenômeno curioso tem acontecido: o marketing político, extravasando o campo da forma, se infiltra no conteúdo e passa a ditar modo e substância
André Gomes*, Pragmatismo Político
A corrida eleitoral chegou ao fim, e no RS se confirmou a vitória de José Ivo Sartori, candidato do PMDB, com ampla maioria de votos no segundo turno.
Esse desfecho foi resultado de uma série de fatores, e nem poderia ser diferente. Diversas são as forças e motivações políticas que embasam e orientam o voto. Muito se tem falado, em especial nessas eleições, no anti-petismo como força motriz da oposição, na lógica de que, para alguns, seria preferível qualquer coisa a um(a) candidato(a) do PT, seja qual for a situação.
Só que o antipetismo, por si, não explica determinados fenômenos. Aqui no RS, por exemplo, a presidenta Dilma, no 1º turno, fez 2.751.098 votos, totalizando 43,21%. Já Tarso Genro alcançou 2.005.743 votos, com 32,57% (ambos em votos válidos). Fosse o antipetismo uma força tão grande e, acima disso, tão coesa e coerente com seus próprios critérios, o desempenho teria sido nivelado por baixo, ou seja, o PT teria obtido uma rejeição uniforme, ou com uma diferença menor.
Essa diferença perceptível no desempenho dos candidatos do PT em nível federal e estadual também se deve a outro fator importante, que cada vez desempenha um papel mais forte nas eleições: o marketing político.
A utilização da veiculação “mercadológica” da política, na verdade, é parte da conquista democrática obtida com o fim da ditadura militar. O regime, pretendendo frear a crescente popularidade do MDB, criou em 1976 a chamada Lei Falcão, segundo a qual os partidos, nas propagandas eleitorais poderiam apenas mencionar a legenda, o currículo e o número do registro dos candidatos na Justiça Eleitoral, bem como suas fotografias pela televisão. Além disso, podiam anunciar o horário local de comícios. Era evidente a limitação excessiva à forma de manifestação de ideias.
É evidente que a possibilidade de utilização da livre expressão é fundamental para uma disputa isenta e equilibrada. E o uso do marketing político, a princípio, se trata de uma forma de apresentar idéias a partir do método e das técnicas da comunicação social voltadas à lógica da oferta e venda de produtos, o que, apesar de eventuais críticas ou discordâncias embasadas no que deveria ser a “essência da troca de idéias política”, é, sim, condizente com um ambiente de disputa democrática e aberta.
Ocorre que um fenômeno curioso tem acontecido. Me refiro ao caso do RS, que é o que acompanho de perto. O marketing político, extravasando o campo da forma – que em tese seria sua função essencial – se infiltra no conteúdo. O marketing passa a ditar modo e substância. Não de maneira a criar a o conteúdo, mas sim de se imiscuir a ele, ou de substituí-lo. O foco deixa de ser a forma de apresentação da ideia política, da proposta de governo ou atuação parlamentar, mas a suplantação desse tipo de ideia por outra, diversa da pauta política.
É o que se viu com Sartori. Certamente o candidato do PMDB surfou na onda do antipetismo. Muitos votaram nele como teriam votado até no Jardel se fosse contra o PT. Só que a proporção do antipetismo não chega a ser assim tão grande. Não foi contra o Olívio (mesmo não tendo sido eleito), e não foi contra a Dilma. Parte disso se explica justamente pela venda do produto que se criou com a imagem do candidato.
O produto em questão é a ideia abstrata do gringo simpático. O sujeito bem intencionado que não tem nada contra ninguém, e só quer puxar as mangas e trabalhar. Em um slogan, o “Sartorão da massa”.
Não é um produto novo. O mesmo fenômeno ocorreu, ainda que de maneira mais branda, com Rigotto em 2002. A dicotomia “PT contra Britto”, que já se estendia desde as eleições municipais de Porto Alegre em 1988, acabou direcionando muitos votos para o candidato novo, contra quem não se podia dizer nada.
Inclusive, no vídeo da propagando eleitoral da campanha do Rigotto, é notável a semelhança da postura adotada entre ele, há 12 anos, e o Sartori hoje (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9s_azrr0W90). Ambos fazem críticas vagas, utilizam argumentos de sentimento e moral, e recorrem a referências corriqueiras para gerar identificação com o eleitor (disse o Rigotto, sobre Tarso e Britto: “e eles ali, como dois guris brigando por uma bola. Só que não é uma bola! É a nossa vida!”). Mas a falta de conteúdo programático chama atenção. Chega a ser comovente o esforço que o Pedro Simon faz, na propaganda, para encontrar algo a dizer em favor do Rigotto.
Essa estratégia de venda de uma imagem indistinta, somada a uma forte coordenação publicitária que aliena o discurso programático alcança um poder imenso. A estratégia de campanha de Tarso no 2º turno foi, essencialmente, pôr em evidência esse caráter genérico e pouco propositivo de Sartori, pontando a carência de conteúdo (nem me refiro a conteúdo em termos de conhecimento, como muitos chegam a fazer, mas sim em termos de proposição).
Em resposta, ao invés de se adaptar, fortalecer o posicionamento, tornar o debate propositivo, a estratégia da campanha de Sartori foi a de fazer mais do mesmo. E deu certo. Pudera, a máxima de que “em time que está ganhando não se mexe” não pertence apenas ao futebol, e quem tinha o ônus de desconstruir o adversário era Tarso. O trabalho de Sartori era apenas o de manter sua imagem de isenção, carisma e vontade de trabalhar.
Muito disso se deu em razão do trabalho incansável e altamente eficaz do marqueteiro Marcos Martinelli. Ele praticamente construiu cada aspecto da imagem do Sartori. Ele coordenou cada passo da campanha. Ele estava presente nos debates levantando cartazes com tópicos de fala para o Sartori desenvolver nas perguntas e respostas. Sartori foi um produto muito bem arquitetado pelos publicitários contratados. E o RS comprou.
Se o governo de Sartori será eficaz, coordenado, aberto, etc. não há como saber. Alguns diriam que não há sequer como especular, ante a ausência de pautas do candidato. A conclusão a que se chega é menos voltada ao futuro, e mais concernente ao presente, no sentido de que hoje, se percebe uma tendência já reiterada de influência cada vez maior da função de propaganda eleitoral no conteúdo daquilo que ela deveria divulgar.
Independente de qual seja a inclinação de cada pessoa no espectro político, me parece que uma das lições mais importantes que essa eleição nos deixa é o dever de reflexão sobre o papel do marketing no processo eleitoral. Qual deve ser a sua extensão e o seu limite? Logicamente que se trata de uma conquista da democracia, mas talvez o seu modo de uso possa ser repensado.
*André Gomes é advogado e colabora para Pragmatismo Político
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