O sofrimento no pós-Ebola
O peso enfrentado pelos sobreviventes do Ebola: pacientes que venceram a doença agora precisam lutar contra a discriminação no dia a dia
Você pode sobreviver ao ebola, mas nunca o vence. Se você se recuperar da doença, é provável que tenha perdido quase tudo o mais. O sobrevivente Douda Fullah viu cinco membros de sua família morrerem em um pavilhão para doentes de ebola. Primeiro foi seu pai, um técnico de laboratório, seguido por sua madrasta, sua avó, um irmão de 2 anos e uma irmã de 13. Sua dor e sua necessidade imediata de comida e dinheiro já foram capturadas em um vídeo de apelo transmitido no noticiário das TVs americana e britânica.
Mas durante uma reunião em Freetown fica claro que no caso de Douda o ebola tem um duplo legado, uma dor inimaginável e o peso de ocupar o lugar de seu pai não apenas na família, mas na comunidade. “Tenho até 15 pessoas que dependem de mim… é realmente difícil”, disse ele. “Tenho irmãs e irmãos mais jovens e primos que vivem na mesma casa. Meu pai, especialmente, costumava cuidar deles… e até dos meus tios na aldeia, meu avô, ele costumava cuidar deles. Agora que se foi, todos olham para mim.”
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E a dura ironia de ser um sobrevivente do ebola é que, em vez de ser tratado como vítima que precisa de cuidado e apoio nesse momento de devastação familiar, ele foi repelido pelos vizinhos e amigos dos pais, que acreditam que ainda é portador do vírus.
“Amigos de minha mãe e meu pai, não me lembro de algum deles ter vindo a minha casa desde o ebola”, diz Douda.
E seus vizinhos? “Eles não chegam muito perto de mim… os vizinhos ficam a três metros de distância… é realmente um estigma. Apenas imagine… você perdeu seus parentes, especialmente seus pais, e eles não se aproximam de você. Eles ainda têm medo.”
Como um profissional médico educado, seu pai era uma figura respeitada na aldeia, onde o analfabetismo e a pobreza são comuns. Os que contavam com seu pai para remédios ou dinheiro para alimento hoje procuram Douda.
“Agora que ele se foi, eles tentam ao máximo por sua própria conta ajudar a si mesmos; é difícil para eles, como na maioria das áreas da aldeia é realmente duro. Eles vêm e dizem: ‘Douda, você é minha única esperança, você tem de ser forte…’ Mesmo que essa pessoa não lhe diga diretamente ‘Eu preciso de dinheiro’, você sabe que é o que ela quer. Eu finjo que não sei o que está acontecendo. Mas sei que isso me dói realmente”, diz ele.
Segundo todos os critérios, o pai de Douda era de classe média, embora não fosse rico. Possuía seu próprio laboratório em Kenema e viajava com a ambulância até o hospital do governo quando o ebola atacou pela primeira vez. Durante uma reunião familiar, seu pai os avisou sobre os perigos do ebola, e lhes falou sobre a importância de não tocar nos outros e de lavar-se com cloro. Douda lhe suplicou para que não continuasse nesse trabalho.
“Ele disse: ‘Se eu fugir agora, o que você acha que as pessoas diriam de mim? Eu seria um covarde… se eu morrer assim, assim será'”, lembra-se Douda.
Mas em vez de ser honrado na morte por salvar vidas, seu pai foi considerado um assassino, com rumores de que os profissionais de saúde estavam injetando o vírus mortífero nas pessoas no hospital. “Foi realmente um estigma, eles ainda pensam que temos o vírus. Algumas pessoas me isolam em público”, disse ele.
Douda está sendo apoiado pela organização britânica Street Child, que visa ajudar órfãos do ebola. Ele agradece pelas doações do exterior, já que seu caso foi o primeiro a chamar a atenção internacional. “Acho que ajuda muito.”
Mas enquanto ele busca em seu telefone celular, mostrando-me fotos de sua mãe e seu pai, fica claro que ele, assim como outros, precisa de mais enquanto sofrerá dificuldades por uma geração. “Estou pensando em vender isto para conseguir dinheiro”, diz ele. Nas próximas semanas ele enfrentará a expulsão de sua casa. Seu aluguel de US$ 380 por ano está atrasado e, embora tenha feito metade do curso de técnico de laboratório, Douda não tem emprego.
Sua mãe biológica ainda está viva, mas em um país onde a ajuda é basicamente medida em termos de dinheiro ela não pode contribuir. Ela é um apoio para ele? “Não, ela é deficiente”, diz ele.
Douda começa a chorar quando pergunto o que acontecerá se não puder pagar o aluguel. “Bem, acho que vamos todos acabar na rua… é mais um peso para mim, porque eu ficaria estressado, preocupado em alimentar os menores, se uma coisa dessa acontecer realmente será muito ruim para mim.”
O estigma e a falta de apoio às vítimas do ebola ampliam a crise além de uma emergência médica. Em Kenema, mais de cem sobreviventes formaram um grupo para oferecer apoio mútuo. O desejo dos sobreviventes de ajudar os outros atingidos pelo vírus não é raro. Will Pooley, o enfermeiro britânico que tratou Douda e contraiu o vírus, está de volta em um pavilhão do ebola em Freetown, assim como uma ex-paciente do hospital, Belkizu Alfred Koromo. Uma estudante de enfermaria de 20 anos, ela e seu irmão foram internados no hospital Connaught no mês passado. Eles sobreviveram, mas perderam 17 membros da família, incluindo a mãe e o pai.
“Realmente não é fácil para nós”, diz. Agora morando com sua tia, ela diz que participar da luta contra o ebola foi a coisa mais natural a fazer. “Eu pensei que não deveria ficar em casa sem fazer nada. Preciso vir e salvar alguns de meus conterrâneos”, disse.
Seu irmão, um estudante de economia, também vai trabalhar em um pavilhão de ebola, em uma unidade de isolamento que será aberta em breve no hospital infantil de Freetown. Embora não seja um profissional de saúde qualificado, sua presença será valiosa, segundo Marta Lado, uma médica espanhola consultora em doenças infecciosas encarregada do pavilhão de isolamento em Connaught. “Alguns de nossos pacientes são bebês e você não pode segurá-los nos braços a manhã toda, por isso pessoas que têm menos risco do que os profissionais de saúde são uma grande ajuda para elas. Ela e seu irmão podem entrar e ficar com as crianças.”
No hospital Hastings, Alu Kamara, 36, espera para receber alta. Ele também vai aderir à luta. Um professor, ele contraiu a doença de seu irmão que foi mal diagnosticado com febre tifoide e morreu. “Eu me sinto incrivelmente feliz”, diz, espiando sobre a divisória temporária fora do pavilhão.
Perguntado sobre como vai comemorar sua escapada da morte, ele mostra o celular e diz que vai aderir à luta. “Vou para lá sensibilizar as pessoas, ajudar as pessoas a parar de contrair a doença.”
Lisa O’Carroll, em Freetown. Tradução: CartaCapital