Na investigação e punição de influentes personalidades da cúpula política e econômica do país: a Operação Lava Jato, testemunhamos um processo que pode elucidar a solidez da cooperação e independência entre os poderes
Ayrton Ribeiro de Souza*
Uma das teses centrais do filósofo francês Montesquieu (1689-1755) é sua defesa da divisão dos poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judiciário, em que um não se sobrepusesse ao outro e convivessem de forma independente e harmônica. Tal conceito garantiria o limite e contrabalanço do poder estatal, evitando abusos por qualquer das partes em favor do bem comum. A Constituição brasileira de 1988 estabelece esta divisão como princípio fundamental no artigo 2º e reforça no artigo 37 que a administração pública “obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. No entanto, a plena observância deste objetivo na realidade brasileira sempre foi bastante contestável, sendo até então atropelado por uma velada lei-do-mais-forte entre Planalto, Congresso e Supremo Tribunal Federal.
Os recentes esforços de combate à corrupção oferecem um interessante teste da aplicabilidade deste conceito, especialmente por envolver agentes públicos e privados que corriqueiramente sobrepujavam procuradores, parlamentares ou juízes para garantir que as punições de seus crimes não se concretizassem. Após 26 anos de amadurecimento das instituições federais, no entanto, testemunhamos um processo que (espera-se) pode elucidar a solidez da cooperação e independência entre os poderes, na investigação e punição de influentes personalidades da cúpula política e econômica do país: a Operação Lava-Jato.
O escândalo da Petrobrás envolvendo o repasse de propinas milionárias a diversos partidos e o superfaturamento de obras públicas estarrece os cidadãos que assistem atônitos como um dos maiores casos de corrupção (R$10 bilhões foram transacionados, comparados a R$55 milhões do Mensalão) se destrincha entre as diferentes instituições responsáveis da República. Obstáculos que poderiam ser impostos pelo poder econômico dos investigados não impediram o Ministério Público Federal e a Polícia Federal de exercer seu papel investigativo e de execução das leis. O primeiro braço da União responsável pelo combate a crimes que envolvem o próprio poder público levou à prisão temporária e preventiva 23 executivos das maiores construtoras do país, estando 11 deles ainda detidos, além de realizar buscas e apreensões amparadas por mandados judiciais nas sedes de todas as empreiteiras suspeitas.
No que tange ao Poder Legislativo, deputados e senadores estabeleceram paralelamente a CPMI da Petrobrás, uma medida redundante do ponto de vista investigativo que representou uma segunda frente de convocações de depoimentos e a acareação de Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró (ex-diretores de Abastecimento e da área Internacional da Petrobrás, respectivamente). Essa duplicidade de tarefas entre os Poderes foi dirimida na redação do relatório final da CPI, que “corrobora e ratifica os procedimentos de indiciamentos e denúncias adotados na esfera judicial” e recomenda o aprofundamento das investigações da Operação Lava-Jato pelos órgãos judiciais que já a vêm conduzindo.
Completando um mês das detenções dos implicados na Lava-Jato, o MPF do Paraná indiciou formalmente ante à Justiça os 11 executivos presos mais o lobista Fernando “Baiano” pelos crimes de corrupção ativa, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, fraude em licitação e formação de cartel. Isso significa o seguinte: os procuradores do MPF do Paraná, cujo trabalho é reconhecido e endossado pelos demais setores do Estado, transmitem sem interferências o caso ao Poder Judiciário, a quem cabe o julgamento e possível punição dos acusados.
Fecharia-se assim o ciclo de colaboração e aplicação da “convivência independente e harmoniosa” entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário que pregava Montesquieu e a Constituição?
Trata-se de uma operação ainda não concluída e nos sobram precedentes de crimes parecidos em que penas em regimes abertos ou semi-abertos passam a sensação geral de impunidade, tal como no caso do Mensalão (2005) e Operação Sanguessuga (2006). Outro precedente preocupante é o desfecho fracassado da Operação Castelo de Areia (2009) em que os acusados de corrupção (entre eles a construtora Camargo Corrêa) foram absolvidos pelo STJ que anulou a investigação do Tribunal Regional Federal de São Paulo após a utilização de escutas telefônicas para a obtenção de provas.
A Operação Lava-Jato pode ter um destino diferente. Desta vez, o juiz Sérgio Moro conduz a investigação com zelo e o cuidado de não oferecer argumentos que o desqualifiquem, a exemplo do que ocorreu na Castelo de Areia. Para este fim, o instrumento da delação premiada tem se mostrado não só útil como pouco questionável pelos advogados criminalistas, que encontram poucas brechas para acordo e não contam mais com o talento de Márcio Thomaz Bastos. Some-se a isto um contexto extremamente positivo e republicano dado pelo tom de respeito e transparência adotados pelos Ministério Público, Polícia Federal, Procuradoria-Geral, Controladoria-Geral da União, CADE, Tribunal Regional do Paraná, STF e Congresso Nacional, com a importante anuência da Presidência da República.
Ainda não é possível determinar o alcance do processo iniciado, mas os frutos de tamanha mobilização já se podem sentir no amadurecimento da divisão de poderes e de nossas instituições republicanas. Montesquieu, que disse “Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se as que lá existem são executadas, pois boas leis há por toda parte”, se visitasse o Brasil de hoje possivelmente não se impressionaria com a qualidade de nossa Constituição Cidadã, mas certamente ficaria admirado com um eventual sucesso da Operação Lava-Jato.
*Ayrton Ribeiro de Souza é mestre em Ciências Políticas pela Universidad de Cádiz (Espanha), bacharel em Relações Internacionais (UNESP) e colaborou para Pragmatismo Político
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