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O que será do Uruguai após Mujica?

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José Alberto Mujica Cordano e Tabaré Ramón Vázquez Rosas (reprodução)

Thiago Domenici, Retrato do Brasil

O médico oncologista Tabaré Vázquez, 74 anos, voltará a comandar o Uruguai a partir de março do ano que vem em substituição ao atual presidente, José Mujica, 79 anos, ambos da mesma coligação de esquerda, Frente Ampla (FA). Vázquez venceu o segundo turno das eleições no último final de semana com 56,6% dos votos. Seu adversário, Luis Lacalle Pou, 41 anos, do conservador Partido Nacional (PN), obteve 43,4%. Com a vitória, os frenteamplistas garantem o terceiro mandado seguido da coligação, que iniciou seu ciclo de poder com o próprio Vázquez, em 2005. No Uruguai, o mandato dura cinco anos e não há reeleição.

Como nas duas primeiras legislaturas da FA (2005–2015), Vásquez desfrutará de maioria parlamentar – a coalizão de esquerda terá nos próximos cinco anos 50 dos 99 deputados e 15 dos 30 senadores. Durante sua campanha, Vázquez tranquilizou empresários e o mercado. Afirmou que, se ganhasse, continuaria com a atual política econômica, a mesma desenvolvida durante sua presidência, com o atual vice-presidente de Mujica, Danilo Astori, novamente como ministro da Economia. Vázquez é visto por muitos como um socialista light e “amigável com os mercados”.

Como proposta eleitoral, ele apresentou uma agenda de dez pontos. Entre eles, prometeu baixar os impostos e investir em educação e tecnologia. Entre suas prioridades está também o controle da inflação, que ao fim de 2013 estava em 8,6%. Além disso, prometeu reformas nas políticas educacionais e de segurança pública, os dois temas que mais preocupam os cidadãos uruguaios ultimamente. Durante o primeiro turno eleitoral, os uruguaios votaram em um plebiscito sobre a redução da maioridade penal. Ao longo da campanha, pesquisas chegaram a indicar que a opção pela manutenção dos 18 anos como idade inicial para a responsabilidade penal perderia por mais de 20 pontos percentuais, mas a proposta de diminuição para 16 anos acabou rejeitada por 53% dos votantes.

Apesar do grande sucesso internacional do atual presidente José “Pepe” Mujica, internamente Vázquez é o político mais popular do Uruguai e a principal figura da esquerda no país. Consta em sua biografia que estudou medicina por influência de um câncer sofrido pela mãe (que também vitimou seu pai, uma irmã e um irmão).

Nos anos 1960, durante o curso de medicina, decidiu abrir uma clínica gratuita para atender a população carente do bairro La Teja, em Montevidéu. Militante do Partido Socialista, aliava a pratica da medicina à direção do modesto Club Progresso de La Teja, que chegou a ganhar o campeonato nacional de futebol em 1989 e acabou disputando a Copa Libertadores da América duas vezes.

Em 1989, foi eleito prefeito de Montevidéu, no que constituiu a primeira grande vitória eleitoral da Frente Ampla. Em 1994, disputou a eleição presidencial, ficando em terceiro lugar. Em 1999, foi candidato novamente. No primeiro turno, foi o mais votado, mas, no segundo, foi derrotado. A eleição de 2004 confirmou o seu elevado carisma e o Uruguai elegeu seu primeiro presidente esquerdista.

O surgimento da Frente Ampla, em 1971, abrigando todo o espectro de orientação política e ideológica de esquerda, de comunistas a sociais-democratas, quebrou o ciclo do bipartidarismo do país. Até quatro décadas antes de Vázquez chegar ao poder, o país era governado ora pelo Partido Nacional (PN), também chamado de Blanco, ora pelo Colorado, ambos muito antigos, fundados em 1836. Neles predominaram desde sempre grupos centristas e de direita, sendo os colorados mais ligados à elite comercial urbana e os blancos, aos grandes fazendeiros.

No ano da criação da FA, o país já vivia um momento de violência política iniciado no final da década de 1960, com o enfrentamento entre grupos guerrilheiros urbanos e forças policiais e militares. Nesse período, parte da esquerda abandonou a institucionalidade política vigente e iniciou mobilizações clandestinas com vista à revolução socialista. Diversos movimentos armados surgiram, mas nenhum deles atingiu a dimensão e o impacto do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN–T), fortemente influenciado pelo êxito da Revolução Cubana e heterogêneo do ponto de vista de suas fontes e referências teóricas, que incluíam marxismo, leninismo, anarquismo, liberalismo e nacionalismo. Os tupamaros acreditavam que o exemplo cubano era prova concreta de que a consciência de classe nascia da luta e que a luta armada seria a única via revolucionária possível para a América Latina. Mas o contexto regional, com ditaduras militares no Brasil, no Chile, no Paraguai e na Argentina, influenciou também o país, e a luta armada foi solapada. Quando as Forças Armadas assumiram o comando do país, em 1973, já eram frequentes as violações de direitos humanos e a ocupação militar dos espaços políticos. A ditadura uruguaia durou 12 anos e foi marcada por perseguições e assassinatos de militantes de esquerda e férrea censura à manifestação do pensamento.

A história do país é das mais interessantes. Desde sua fundação oficial, com intermediação britânica, em agosto de 1828, de um século a outro, o Uruguai já passou de região de disputa fronteiriça entre dois impérios, o português e o espanhol, a Estado-tampão por fazer fronteira com Brasil e Argentina. E já foi chamado de “Suíça das Américas” no início do século passado, devido ao perfil de país desenvolvido, com altos índices de estabilidade social e política.

Em termos territoriais, é menor que o estado brasileiro do Rio Grande do Sul. Na América do Sul, é o segundo menor e tem pequena população – há dez anos, mantém-se na faixa de 3 milhões, sendo que quase a metade vive na capital. A expectativa de vida na casa dos 77 anos e o alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) fazem do Uruguai uma exceção no Cone Sul. No entanto, sua população está envelhecida – 19% têm mais de 60 anos, enquanto no Brasil são 11%. Soma-se a esse cenário a alta emigração de jovens, que saem do país em busca de empregos no exterior.

Como seus vizinhos, o país abriu sua economia e iniciou um processo de privatização das estatais no início dos anos 1990. Esse movimento tipicamente neoliberal, no entanto, foi menos intenso por lá. Algumas privatizações foram impedidas graças a plebiscitos e a mudanças na Constituição. Pode-se afirmar que o Uruguai foi o único país do mundo que derrotou as privatizações em consulta popular: num plebiscito ocorrido em fins de 1992, 72% dos uruguaios decidiram que os serviços essenciais continuariam sendo públicos.

Na mesma década, como uma estratégia para atrair empresas para seu território, o governo mudou a legislação para favorecer a implantação de instituições financeiras. Tal mudança atraiu um número grande de empresas desse setor, o que ajuda a explicar o fato de o país ter fama de ser um paraíso fiscal. Apesar disso, em 2011, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) anunciou que o país aplicou as medidas necessárias para deixar a chamada “lista cinza” de paraísos fiscais, que inclui nações com pouca transparência fiscal e pouco cooperativas na troca de informações. Esses centros não cooperativos são acusados de sediar evasores fiscais estrangeiros, que aplicam bilhões de dólares inacessíveis a suas autoridades locais. No caso uruguaio, a OCDE destacou que o país assinou sete acordos sobre troca de informação fiscal. As medidas adotadas pelo país foram aplicadas depois de um relatório entregue pelo Fórum Global de Transparência Fiscal e Troca de Informação, realizado em 2009, durante a Cúpula do G20 na França.

Vale destacar que o Uruguai é o país com o menor índice de percepção de corrupção da América Latina, segundo a ONG Transparência Internacional e o relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e o mais seguro para viver com a taxa de analfabetismo próxima de zero.

Durante os últimos sete anos, o crescimento econômico médio anual foi de 6,4%, um dos maiores da América do Sul. O país tem atualmente a menor taxa de desemprego de sua história, em torno de 6%.

Com PIB nominal de 56 bilhões de dólares e crescimento de 4,2% no ano passado, o país figura como a 76ª economia do mundo. O setor de serviços é o principal ramo de atividade e responde por 71% do PIB, seguido do industrial, com 21%, e do agropecuário, com 7,5%. A indústria uruguaia destaca-se nos ramos têxtil, alimentício e químico, mas depende fortemente da importação de combustíveis e de matéria-prima, posto que é escasso em relação a recursos minerais. Além disso, no setor de agropecuária, a exportação é o principal destino dos produtos, sobretudo para seus principais parceiros comerciais: Brasil, China e Argentina. A criação de bovinos e ovinos, além da exportação de carne, lã e couro, assim como derivados do leite, sustenta o setor. Na agricultura, os produtos mais produzidos são o trigo, o arroz e a soja.

O mais famoso escritor uruguaio, Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, disse certa vez que os uruguaios têm certa tendência a crer que o país existe, “embora o mundo não o perceba”. No Brasil, por exemplo, o Uruguai é conhecido por conta de Punta del Este, região turística com cassinos que têm grande visitação, ou então quando se trata de relembrar a derrota da seleção brasileira para o time celeste no Maracanã, em 1950. Para Galeano, os meios de comunicação, “aqueles que têm influência universal”, “jamais mencionam esta nação pequenina e perdida ao sul do mapa”.

Há certo exagero na fala do escritor, que é anterior ao sucesso internacional de Mujica, o presidente de estilo desleixado e alheio a qualquer solenidade que ganhou os holofotes do mundo, mas que, no próprio quintal, enfrenta críticas. Mujica é um ex-militante tupamaro que levou seis tiros e ficou 15 anos preso, 11 dos quais em uma solitária, onde chegou a beber a própria urina para não morrer de sede. Ainda em sua juventude, quando simpatizava com o anarquismo, iniciou sua militância no PN e acompanhou ativamente a criação de uma ala progressista dentro do partido tradicional. Nessa fase de sua vida, conciliava a atividade política com sua ocupação principal, a de floricultor.

Somente na década 1960 ingressou no MLN–T. Sua primeira eleição, a deputado, ocorreu somente quando tinha 59 anos, mas desde então nunca mais perdeu um pleito. Em 1999, ganhou uma cadeira no Senado e, durante o primeiro governo Vázquez, foi ministro da Agricultura e da Pesca. Em 2008, deixou o ministério e começou a tecer sua candidatura presidencial. Seu programa de governo tinha uma estratégia continuísta dentro do frenteamplismo progressista. O tom social-democrata exaltava as altas taxas de crescimento do PIB e das exportações do período Vázquez, os grandes investimentos públicos em educação, infraestrutura e tecnologia, a reforma tributária progressiva e a correção dos déficits sociais.

Mujica costuma dizer que seu modo de vida austero é um protesto contra a distorção dos valores da república por políticos. “Ninguém é mais do que ninguém e, por isso, os presidentes devem viver como a maioria que os elegeu e não como a minoria.” Quando eleito, por exemplo, não quis ocupar a residência oficial, o palácio de Suárez y Reyes. Continuou vivendo em sua chácara, no bairro Paso de la Arena, na saída oeste de Montevidéu, um local de sítios e de pequena atividade industrial, agrícola e granjeira. Na residência de 45 metros quadrados e teto de zinco, Mujica mora com a esposa, a senadora Lucía Topolansky, a quem conheceu na guerrilha, e com a cachorra Manuela, que ficou aleijada de uma das patas depois de ser atropelada pelo dono, que dirigia um pequeno trator agrícola. Topolansky esteve perto de ser vice de Tabaré nas eleições. No entanto, o posto ficou com Raúl Séndic, de 52 anos, filho do ex-líder tupamaro homônimo. Séndic, inclusiver, é considerado um nome provável para as eleições de 2019.

Mujica doa 90% de seu salário de presidente – equivalente a 25 mil reais mensais – ao plano de moradia do governo, chamado Juntos. O único bem que possui em seu nome é um Fusca azul de 1987, que recentemente recebeu oferta milionária de compra de um xeque árabe – o ex-tupamaro declinou da oferta. Em recente entrevista ao diário Folha de S.Paulo, perguntado sobre o balanço de seu governo, respondeu: “Balanço de governo? Não sou dono de armazém, não faço balanços, é preciso olhar para a frente”. A verdade é que Mujica deixa a presidência com uma aprovação de 64% do eleitorado uruguaio, além de ter sido eleito senador – o mais votado – para a próxima legislatura.

Seu mandato foi marcado, sobretudo, por políticas sociais agressivas e medidas progressistas como a legalização do aborto, da maconha e do casamento gay. Para ele, no entanto, suas grandes realizações foram as conquistas sociais, a diminuição da pobreza e a criação de empregos. Antes de 2005, 39% da população viviam abaixo da linha da pobreza – hoje, são apenas 11%. A indigência também caiu de 5% para 0,5% nos últimos dez anos. Na economia, o Uruguai ampliou significativamente sua participação internacional. Desde 2004, o país quintuplicou suas exportações e, desde 2009, esse número dobrou. No âmbito latino-americano, o Uruguai também ampliou sua participação na Unasul (União de Nações Sul-Americanas), no Mercosul e na Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe).

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As polêmicas mais recentes envolvendo Mujica tratam de sua decisão de receber refugiados sírios bancando 100% dos gastos com seu deslocamento e reassentamento. Em outubro passado, um grupo de 42 pessoas chegou ao país e, até fevereiro do ano que vem, chegarão mais 120 refugiados sírios. Mujica anunciou ainda a decisão de receber seis prisioneiros da prisão americana de Guantánamo. No entanto, embora a atitude tenha repercutido bem internacionalmente, segundo a BBC, a maioria dos uruguaios reprovou o movimento do presidente, assim como no caso da regulamentação da produção e do consumo da maconha. Dois em cada três uruguaios são contra, segundo todas as sondagens da opinião pública. Pesquisa revelada em dezembro de 2013, da consultoria Equipos Mori, mostra que somente 24% a aprovam.

Mujica reconheceu falhas de seu mandato. Afirmou à Telesur que seu sucessor poderá “fazer mais coisas” no âmbito da educação. Em 2012, o Uruguai ficou em 56º lugar entre 65 países avaliados no Pisa, prova internacional que avalia a qualidade da educação. Foi o pior resultado de sua história. A seu favor, Tabaré tem o sucesso do Plano Ceibal (Conectividade Educativa de Informática Básica para o Aprendizado Online), que deu computador pessoal a todos os mais de 300 mil alunos da rede pública e seus professores. Além disso, o governo encerrou o ano de 2013 enredado em um escândalo decorrente da falência da companhia aérea local Pluna, que resultou na prisão de três empresários e no pedido de processo do ministro da Economia, Fernando Lorenzo, e do presidente do Banco da República, Fernando Calloia, pelo suposto delito de abuso de poder.

Noves fora, com muito mais avanços do que retrocessos, a realidade é que o Uruguai tem uma tradição de mais de um século como um país de leis de vanguarda na América Latina. Décadas antes de toda a região, foi o primeiro a aprovar o divórcio (1907). Oito anos depois, implementou a jornada de trabalho de oito horas. Em 1932, tornou-se o segundo país das Américas a conceder o direito de voto às mulheres – o primeiro foram os EUA. Exatamente um século depois da aprovação do divórcio, o Uruguai se tornou, em 2007, o primeiro Estado latino-americano a conceder a união civil entre pessoas de mesmo sexo. Ainda em apoio à união homossexual, o parlamento abriu as portas para a adoção de crianças por casais gays em 2009. Em 2010, o governo decretou o fim da restrição à entrada de homossexuais nas Forças Armadas. Questões polêmicas na área médica também foram enfrentadas – e aprovadas – pelos uruguaios, como a permissão da eutanásia, em 2009, quando doentes terminais expressam sua vontade de interromper tratamentos médicos para o prolongamento da vida. Por essas e outras, o Uruguai ocupa o topo do ranking do índice de democracia da revista The Economist, que, no ano passado, teceu loas ao país em editorial, elegendo-o o “país do ano”. E a figura de Mujica, diz a publicação, encarna esse Uruguai progressista, justamente por seu estilo de “franqueza incomum para um político”. “Modesto, mas corajoso, liberal e amante da diversão (…)”, disse a publicação.

Após a confirmação da vitória de seu correligionário, Mujica afirmou, em entrevista concedida à Televisão Nacional do Uruguai, que favorecerá uma transição fluida ao futuro mandatário e que vai contribuir com o que for necessário. “Assim, não sirvo para velho aposentado retirado em um rincão acariciando lembranças. Enquanto meus ossos e o chassis responderem, vou fazer tudo o que puder porque ainda restam muitas injustiças. E vou seguir lutando por isso, porque o prêmio não está no final, mas no caminho”, afirmou.

Resta a Vázquez aproveitar o momento e surfar na onda criada por Mujica internacionalmente, além de sanar os problemas internos mais urgentes e tratar de outras questões polêmicas, como a Lei de Mídia. Em sua primeira fala pública da segunda fase da campanha, Vázquez anunciou que, se vitorioso, a Lei de Mídia será “improrrogável” e se comprometeu a regulamentá-la. No Uruguai, os grupos Romay, De Feo-Fontaina e Cardoso-Scheck controlam 95% do mercado de televisão aberta do país.

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