Governo suíço propõe reparação a 15 mil crianças arrendadas e vítimas de abusos. Até meados do século XX, crianças suíças eram enviadas a casas de particulares por razões econômicas ou morais
A rigidez moral deixou uma ferida aberta na vida da suíça Rosalie Müller. Aos 17 anos, ela engravidou do namorado, que era casado e pai de um filho. Em 1963, deu à luz um menino e trabalhou na cozinha de um abrigo para pagar as despesas do parto. Meses depois, o garoto foi encaminhado para adoção, sem a permissão dela. “Nunca tive qualquer notícia sobre o paradeiro de meu filho”, conta.
Já a infância de Walter Emmisberger foi entrecortada por maus tratos. Ele nasceu em uma prisão, em Tobel, na Suíça, em 1956, e foi levado a um abrigo de crianças, onde ficou por seis anos. Depois, foi entregue a uma família que o deixava preso em um porão escuro com frequência, até que decidiram entregá-lo a uma instituição religiosa.
Depois de ser abusado sexualmente pelo pastor, passou a frequentar uma clínica psiquiátrica. “Achavam que eu era um menino muito difícil para educar”, conta Emmisberger. A partir dos 11 anos, começou a ser tratado com uma série de medicamentos, nem todos identificados pelo nome. “Na escola, as professoras nunca desconfiaram que eu tremia e ficava apático por causa dos efeitos colaterais dos remédios.”
As histórias de Müller e Emmisberger convergem em um ponto: até meados do século XX, crianças e jovens suíços eram “acomodados” em casas de particulares ou em estabelecimentos fechados por razões econômicas ou morais. As medidas de restrição eram tomadas tanto por autoridades locais como por organizações privadas. As vítimas afetadas vinham de famílias pobres, eram órfãs ou nascidas fora do casamento. Além de serem enviadas a serviços oferecidos pelos cantões e municípios, havia encaminhamentos para instituições religiosas ou privadas. As crianças colocadas nessa situação em residências particulares (na maioria dos casos, em fazendas) eram consideradas parte da mão de obra e, poucas vezes, como membros da família.
Depois de anos de pressões de movimentos que pediam a reparação a essas crianças, o governo suíco decidiu nesta semana apresentar um projeto de lei que prevê a compensação financeira das vítimas no valor de 300 milhões de francos (cerca de R$ 917 milhões). Em julho de 2013, o Parlamento suíço já havia aprovado uma lei permitindo a investigação científica sobre jovens e adultos acomodados em penitenciárias ou outras instituições sociais fechadas. A lei, no entanto, não contemplava nenhuma indenização para as pessoas afetadas pelas medidas.
O movimento pró-reparação defende um fundo de 500 milhões de francos, cerca de R$ 1,3 bilhão, que deveria beneficiar as pessoas afetadas, independente da condição financeira. Um fundo de emergência de cerca de 8 milhões de francos suíços, o equivalente a R$ 20 milhões, já está à disposição de vítimas em situação crítica.
Até 1981, as autoridades administrativas podiam ordenar sem a necessidade de uma decisão judicial a acomodação de jovens ou adultos em estabelecimentos fechados (incluindo penitenciárias) por tempo indeterminado, com o objetivo de promover reeducação ou educação para o trabalho. Essas decisões eram motivadas por uma gravidez fora do casamento ou mudanças frequentes de emprego, por exemplo. Não havia possibilidade de recurso contra essas medidas.
Como resultado de um movimento de reavaliação deste momento histórico, no final de 2014 uma lista com cerca de 110 mil assinaturas foi entregue às autoridades do país pedindo indenização para cerca de 15 mil vítimas de trabalho forçado e maus tratos em consequência das práticas do serviço social na Suíça.
O texto ainda pede a compensação não só para vítimas das detenções administrativas, mas também para as vítimas de adoção e esterilização forçada e para as crianças arrendadas que foram vítimas de maus tratos e abuso sexual. As cem mil assinaturas são suficientes para forçar a organização um referendo no país.
Em novembro do ano passado, foi criada uma comissão independente de pesquisadores que deverá trabalhar em conjunto com um novo programa nacional de pesquisa para esclarecer os fatos. A ideia é descobrir os detalhes da vida dos suíços que sofreram com as práticas do serviço social e o sistema do qual fizeram parte entre 1800 e 1970.
“Queremos compreender como o sistema e a administração funcionavam, e as diferenças entre homens e mulheres”, diz a historiadora Loretta Seglias, membro da comissão e uma das autoras do livro Versorgt und Vergessen, da editora Rotpunkt. O livro apresenta entrevistas com 40 vítimas que trabalharam como crianças arrendadas.
Entre 2009 e 2014, a exposição “Crianças Arrendadas falam” (Verdingkinder reden) circulou por vários pontos do país com imagens e depoimentos de crianças e jovens que foram obrigados a deixar as famílias em situação econômica desfavorável para viver em fazendas ou instituições sociais. Nos novos lares, crianças executavam trabalho forçado e sofriam privação de liberdade. Em 2011, foi lançado o filme Verdingbub (“Rapaz arrendado”, em tradução livre), que expõe o cotidiano de um menino arrendado. A onda de eventos sobre o tema rendeu pedidos de desculpas oficiais do governo às vítimas, sensibilizou a opinião pública e esquentou o debate sobre o tema.
Já em 2013, a então ministra da Justiça (e hoje presidente da Suíça), Simonetta Sommaruga, havia criado um grupo para propor um pacote de medidas relacionadas ao tema. A “Mesa Redonda” é presidida pelo vice-secretário de Justiça, Luzius Mader e inclui vítimas, ONGs, autoridades locais e cantonais, representantes das igrejas, de instituições sociais e da Sociedade dos Agricultores.
Para Mader, o reconhecimento público dos danos causados às vítimas deve incluir alguma compensação financeira, garantia de acesso aos documentos administrativos, uma ampla pesquisa científica sobre todas as categorias de pessoas afetadas e a divulgação dos resultados.
Abusos comuns
Os abusos contra as vítimas eram comuns, já que os controles previstos não eram efetuados e as famílias e estabelecimentos ficavam em locais isolados, de modo que os maus tratos não chegavam ao conhecimento das autoridades e acabavam sem punição.
Até os anos 1970, sob a ameaça de perder benefícios sociais, mulheres tinham o direito de abortar apenas se concordassem em se submeter à esterilização. Crianças filhas de mães menores de idade ou solteiras, de prostitutas, de situação financeira desfavorável, casadas com dependentes de álcool ou de desempregadas eram encaminhadas para adoção. Ainda que uma autorização por escrito da mãe fosse necessária, muitas vezes era obtida sob pressão.
Outra categoria afetada pelas medidas sociais foi a das crianças ciganas yéniches, grupo seminômade que se movimenta na Europa. Entre 1926 e 1973, cerca de 600 foram retiradas de suas famílias, encaminhadas para adoção ou acomodadas em outras famílias, nas quais os casos de abusos e maus tratos eram comuns.
Associações de agricultores afirmam, no entanto, que nem sempre jovens sofriam maus tratos. Para Guido Fluri, organizador da iniciativa popular com as assinaturas, bastam, no entanto, as experiências negativas como a da aposentada Lisa Wengler. Ela era menina quando sofreu abusos sexuais pelo vizinho da família para a qual trabalhava. “Quando contei para a senhora que era responsável por mim, ela me disse que não iria brigar com o vizinho por causa de uma desclassificada como eu”, afirma Wengler.
“Os fazendeiros se aproveitaram do sistema”, diz Fluri, filho de uma garçonete esquizofrênica. Ele nasceu em 1966, em Olten, cantão de Solothurn, passou a infância em abrigos de menores, e, apesar da infância difícil, se tornou empresário do setor imobiliário e financiou a campanha para a coleta de assinaturas com recursos próprios.
Heloísa Broggiato, Opera Mundi
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