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“Eu não sou Charlie. Sou Maomé. É impossível ser os dois”

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Em escolas francesas, jovens de origem muçulmana rejeitam homenagem à 'Charlie Hebdo'. Entre adolescentes da periferia houve boicote ao minuto de silêncio e críticas ao conteúdo da revista

“Eu não sou Charlie”: luto não é unanimidade entre adolescentes franceses de origem muçulmana (reprodução)

Amanda Lourenço, Opera Mundi/Paris

Quinta-feira, ao meio-dia, a França fez um minuto de silêncio em homenagem às vítimas do ataque terrorista que deixou 12 pessoas mortas no dia anterior. Os transportes públicos fizeram uma breve pausa e os museus ficaram silenciosos. Todos os prédios públicos participaram. Em algumas escolas, porém, foi mais complicado. “No meu colégio muitos alunos não queriam fazer um minuto de silêncio, fizemos porque fomos obrigados. Outros decidiram ler um livro durante esse tempo”, diz Sarah, estudante de 16 anos.

Sarah, que não quis ter identidade e imagem reveladas, disse ao portal Opera Mundi que aquele minuto de silêncio significava um “encorajamento à provocação”, fazendo referência à linha editorial do revista satírica Charlie Hebdo, principal alvo dos ataques. Muitos jovens admitiram que o atentado foi equivocado e que um verdadeiro muçulmano não deve matar ninguém, mas, ao mesmo tempo, ressalvam: “eles procuraram”.

Em escolas da periferia de Paris, com grande concentração de alunos de origem muçulmana, a rejeição à homenagem foi mais frequente do que as autoridades gostariam. Em uma turma, apenas um quinto dos alunos aceitou fazer o minuto de silêncio. Um pacote suspeito com a frase “Je ne suis pas Charlie” (Eu não sou Charlie) foi encontrado na sala dos professores de um dos colégios. Não havia nenhuma bomba dentro, apenas fios e detonador.

A mobilização nacional contra os ataques terroristas parece unir todas as instituições francesas e europeias, inclusive as muçulmanas, porém o luto não é uma unanimidade entre os adolescentes, especialmente os de origem árabe. “Eu não sou Charlie, eu sou Maomé”, afirmou Mina, uma jovem de 18 anos. “E é impossível ser os dois”, completa. Ela acha incoerente ser muçulmana e ao mesmo tempo defender uma revista que satirizava sua religião. Perguntada se a punição pelas caricaturas não foi rígida demais, Mina responde: “Você ainda não viu nada”.

Por trás de posturas tão determinadas, há muitas vezes certa ingenuidade. Uma professora escreveu nas redes sociais que o que mais a impressionava é que os estudantes não sabiam exatamente o que tinha acontecido. Alguns sequer tinham visto os polêmicos desenhos. Em uma página do Facebook que critica as charges da revista, é possível ver a confusão dos participantes, que perguntam se Charlie é uma das vítimas e por que só o nome dele é citado.

Neste contexto, Patrick Teulade, diretor regional de educação de Nancy-Metz, em declaração à imprensa francesa pediu cuidado na “interpretação de atos de provocação adolescente diante da figura de autoridade” afirmando que “pode ter ocorrido uma confusão dos jovens entre ato de submissão e ato de respeito”.

Le Pen n’est pas Charlie

Os adolescentes de origem muçulmana não são os únicos a rejeitar Charlie. O fundador do partido de extrema-direita FN (Frente Nacional), Jean-Marie Le Pen, pai de Marine Le Pen, atual presidente da legenda e candidata à presidência nas próximas eleições, também anunciou que não apoia a mobilização em torno da revista: “Desculpe-me, mas eu não sou Charlie. Sinto, sim, a morte de 12 compatriotas franceses, apesar de suas posições políticas. Eles eram inimigos do FN e pouco tempo atrás fizeraram uma petição pela dissolução do partido”.

A Frente Nacional não foi convidada para a marcha que acontecerá neste domingo, em Paris. A situação é singular, já que, ao mesmo tempo em que o contexto político do terrorismo favorece a popularidade da extrema-direita, as vítimas eram grandes críticos do FN e seria contraditório a presença de Marine Le Pen em tal ato de homenagem.

No Brasil há um movimento considerável contra-corrente que questiona a legitimidade das caricaturas publicadas por Charlie Hebdo e que também se apropriou da hashtag #JeNeSuisPasCharlie. Muitos críticos acham que a revista ultrapassou os limites do bom senso e que a liberdade de expressão não justifica desenhos que consideram ofensivos.

Já na França, palco dos acontecimentos, a conjuntura é outra. Pouco se fala em conteúdo ou qualidade, o debate é focado na liberdade. Por isso, até o momento não há nenhuma grande mobilização contra as homenagens além dos jovens de origem muçulmana.

VEJA TAMBÉM: O desenho premonitório do diretor do Charlie Hebdo

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