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A luta de um pai para provar a inocência e honra do filho assassinado

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“Eu vou provar que vocês mataram um inocente.” Há dois anos, Daniel Eustáquio lutava para provar que seu filho e o amigo dele haviam sido executados por quatro policiais militares. Nesta semana, ele conseguiu. Um júri condenou os PMs a 24 anos de prisão

Daniel Eustáquio de Oliveira (divulgação)

Fausto Salvadori Filho, Ponte

“Eu vou provar que vocês mataram um inocente.” Foi o que o eletricista Daniel Eustáquio de Oliveira, hoje com 52 anos, disse para um grupo de policiais que encontrou na saída do Hospital Municipal de Osasco, na Grande SP, na manhã de 1º de julho de 2012. Daniel havia acabado de ver o corpo de seu filho, César Dias de Oliveira, morto a tiros pela PM junto com um amigo, Ricardo Tavares da Silva. Os dois tinham 20 anos.

Na última terça-feira (27/1), Daniel cumpriu a promessa. O sargento Marcelo Oliveira de Jesus, 43 anos e os soldados Cringer Ferreira Prota, 39, Denis da Costa Martinez, 38, e Raphael Arruda Bom, 31, foram condenados a 24 anos de reclusão pelas mortes de César e Ricardo, na 5ª Vara do Júri da Capital.

“Foram dois anos, seis meses e 27 dias de espera. Agora o Brasil todo sabe quem era meu filho e quem são os verdadeiros bandidos”, comemorou Daniel, na saída do Fórum Criminal da Barra Funda. No antebraço direito, carregava uma tatuagem com o rosto de César, em cima da inscrição Meu Herói. Daniel olhou para cima, em direção aos relâmpagos que faiscavam no céu escuro, e disse: “Um abraço, filho”.

Para limpar o nome dos meninos e conseguir a condenação dos policiais, o pai lutou do começo ao fim. Primeiro, tirou uma licença de 45 dias do seu emprego como funcionário público da prefeitura de Vargem Grande Paulista para investigar o crime por conta própria. Conseguiu encontrar uma mulher que havia visto as mortes da sua janela e convenceu a testemunha a falar com os policiais do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa). A batalha de Daniel prosseguiu até o dia do julgamento, quando conseguiu localizar e levar ao fórum uma testemunha-chave que estava desaparecida após sair do Programa de Proteção à Testemunha.

“O culpado é ele”, disse um parente de um dos policiais, logo após a juíza Lizandra Maria Lapenna Peçanha ler a sentença, ao final de 21 horas de julgamento. Ele apontava para Daniel.

Alguns familiares dos PMs também culparam os jornalistas pela condenação, enquanto a maioria apenas chorava. O choro mais alto vinha de uma menina, filha de um dos policiais, que completou 13 anos naquele dia.

Era algo de triste de ver, até para os familiares das vítimas. “Meu coração está aliviado por um lado, mas carregado por ver como os parentes dos policiais estão sofrendo”, comentou Daniel. “Esses PMs acabaram com as nossas vidas e das famílias deles também.”

Teatro

Os quatro policiais pertenciam ao 14º Batalhão, de Osasco, na Grande São Paulo. Na madrugada de 1º de julho, segundo a denúncia do promotor de justiça José Carlos Cosenzo, os policiais encontraram um homem com cinco pedras de crack e ameaçaram prendê-lo caso ele não mostrasse onde havia comprado a droga. Junto com esse homem, os PMs invadiram uma “biqueira” numa favela da Vila Dalva, zona oeste da capital, e trocaram tiros com os traficantes. Após sair da favela, viram uma moto passar com dois jovens, na avenida Pablo Casals, e atiraram em ambos.

Daniel e sua esposa, Graça, na saída do Forum Criminal da Barra Funda. | Foto: Fausto Salvadori Filho

Em seguida, os policiais teriam montado um “teatro” – apelido que a PM dá para farsas usadas para disfarçar casos de execução como “resistências seguida de morte”. Colocaram três armas na cena do crime e levaram as vítimas para o Hospital Municipal de Osasco. Além de terem ignorado o Hospital Universitário, bem mais próximo, os policiais “levaram 29 minutos para fazer um percurso que poderiam ter feito em oito”, segundo o promotor Cosenzo. César chegou morto ao pronto-socorro e Ricardo morreu no mesmo dia. Em 30 de julho do mesmo ano, os quatro policiais foram presos e levados ao presídio Romão Gomes, onde permanecem.

No julgamento, as informações sobre a execução e o “teatro” foram confirmadas por duas testemunhas protegidas, ouvidas a portas fechadas. Uma delas era o homem detido com crack em Osasco e a outra era uma moradora da Vila Dalva, que viu o crime do alto da sua sacada. Na versão deles, disponível em depoimentos anteriores, os policiais deixaram as vítimas sangrarem durante vários minutos na rua e que um dos meninos ainda gritou “Socorro, não me mata, socorro pelo amor de Deus, não me mata!”.

Os réus foram acusados de homicídio duplamente qualificado, por terem usado recurso que impossibilitou a defesa das vítimas e por motivo torpe, e de mais dois crimes: fraude processual, por conta do “teatro” montado na cena das mortes, e prevaricação, por terem deixado de prender o homem flagrado com crack. Os jurados recusaram a qualificadora de motivo torpe, mas consideraram os PMs culpados nos outros quesitos.

Para cada um dos crimes, a juíza aplicou a menor pena possível, por se tratar de réus primários. Além dos 24 anos de reclusão pelos dois homicídios, cada policial pegou mais nove meses e 30 dias de detenção pelos crimes de prevaricação e fraude processual. Descontado o tempo que já passaram na prisão, restam 21 anos, seis meses e um dia. Eles terão direito ao regime semi-aberto após cumprir nove anos da pena. A defesa disse que vai recorrer.

Um quinto policial que também participou da ação, o tenente Rafael Salviano Silveira, será julgado em outro júri, por ter colaborado nas investigações. Inicialmente preso junto com os demais, hoje responde ao processo em liberdade.

“Noia” e “malucão”

“Essas acusações não são verdadeiras”, disse cada um dos réus diante da juíza. Eles permaneceram algemados durante todo o julgamento, na maior parte do tempo olhando sem expressão para a frente. Todos contaram a mesma versão. Segundo os PMs, tanto César, que dirigia a moto, como Ricardo, na garupa, estavam armados e atiraram contra os PMs.

Interrogados pelo promotor, os réus mudaram a versão, apresentada inicialmente na delegacia, de que as vítimas teriam caído da moto em movimento – informação desmentida pela ausência de arranhões na motocicleta e de outros ferimentos (além dos tiros) nas vítimas. “Não foi bem uma queda, eles soltaram a moto”, reconheceu Cringer. Disseram que levaram os meninos ao hospital de Osasco por não conhecerem outro mais próximo.

Para o advogado de defesa, Celso Machado Vendramini, os policiais mencionaram o tempo de dedicação à corporação e as medalhas recebidas. Também falaram dos filhos, e foi aí que alguns se emocionaram.

Como em outros casos de pessoas mortas pela PM, o perfil das vítimas fez diferença no julgamento – como se o fato de ter havido ou não uma execução importasse menos do que uma pergunta nunca dita em voz alta, mas insinuada em vários momentos: “essas vítimas mereciam morrer?”.

Nisso, a história de César e Ricardo ajudou a acusação. César era operário numa indústria têxtil e Ricardo, repositor de supermercado. Nenhum tinha passagem pela polícia. Amigos e parentes os descreviam como jovens tranquilos, fãs de passatempos como videogames e desenhos. “O César era um molecão nerd”, disse Gabriel Cardoso, primo de César e último da família a vê-lo antes de ser morto. “Eles eram dois garotos. Não tinha nenhum indicativo de que estariam armados ali, naquela hora”, descreveu o delegado Antonio Carlos de Aguiar Desgualdo, do DHPP, que indiciou os policiais por homicídio.

O defensor tentou lançar algumas suspeitas sobre as vítimas. “Não tem que dar satisfação para família de vítima nenhuma. Bandido é bandido e acabou. Se o pai não quer aceitar, é problema dele”, disse para os jurados.

Na maior parte do tempo, contudo, Vendramini, que já foi policial militar e é conhecido por inocentar policiais em casos rumorosos de homicídio, preferiu desancar as testemunhas. Como a mulher havia dito que saíra na sacada para fumar um baseado, foi chamada de “viciada em drogas” e “noia”, assim como o homem pego com crack. A respeito dele, o advogado leu trechos de boletins de ocorrência que o acusavam de violência doméstica. “É um noia, um malucão viciado em entorpecentes. O que ele diz que merece credibilidade?”, perguntou. Perto do final de sua fala, acrescentou: “Tenho certeza de que esse noia está agindo a mando do PCC contra os policiais”.

E Vendramini foi além. O advogado, que hoje sonha em ser apresentador de tevê, misturou a defesa com piadas e reclamações sobre a qualidade da pizza servida aos jurados e até cantou o jingle de quando foi candidato a deputado. A performance arrancou sorrisos de alguns jurados. Mas, dessa vez, não conseguiu convencê-los.

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