É preciso superar a ideia de se posicionar simplesmente no afirmar (Eu sou Charlie) e negar (Eu não sou Charlie), pois o que está em jogo não são simples percepções ideológicas, mas o futuro da humanidade
Jonathas Carvalho*, Pragmatismo Político
Na história da humanidade é muito comum a prática de negar ou afirmar um determinado fato de maneira preliminar relegando a um plano inferior um olhar mais amplo e minucioso sobre a realidade. O ato de negar ou afirmar está atrelado às forças que as crenças exercem em nossas vidas como meio de justificar nossa existência e conduta. No entanto, a realidade social exige interpretações que estão para muito além de nossas crenças porque exigem um olhar histórico e intercultural. A tragédia do jornal Charlie Hebdo é um dos acontecimentos em que qualquer interpretação apressada e ligeira, pode ser temerária. Negar ou afirmar qualquer coisa favorável ou contrária a qualquer um dos lados pode ser sinal de reducionismo interpretativo. A complexidade do fato demanda um olhar pluricontextualista (observação das diversas possibilidades e responsabilidades do fato) a fim de que as inferências sejam mais consistentes e contextualizadas com a realidade e não apenas com nossas crenças.
Analisar a tragédia de Charlie Hebdo com amplitude não implica preliminarmente em afirmar (Eu sou Charlie) ou negar (Eu não sou Charlie), mas em reconhecer as diferenças e pluralidades de crenças e condutas culturais. Em primeira instância, os argumentos de que “foi um atentado terrorista” ou “é mais uma etapa da luta entre ocidente e oriente” ou ainda “é a continuidade de uma guerra histórica que tem como foco central o Islã” carregam em si uma verdade que não conforta e muito menos permite compreender a dimensão estratégica do atentado.
A interpretação da realidade perpassa pelo conhecimento de causalidade e consequencialidade, mas quando centramos a análise apenas nas consequências, esquecemos de abordar todo o processo em que um determinado fato se situa concebendo afirmações rasteiras.
O atentado de Charlie Hebdo, quando mencionado sob o ponto de vista da diferença, permite uma primeira constatação: a intolerância não pode mais ser tolerada. Quando falamos em intolerância, referimo-nos a incapacidade de aceitarmos o outro simplesmente porque dispõe de crenças, opiniões e ações diferentes. Se instituições como governos, mídia, justiça e sociedade civil não têm a capacidade de respeitar às diferenças, o retrato da intolerância não será apenas marca discursiva no cotidiano, mas se fará presente de forma cruenta em nossas vidas.
O filósofo lituano Emmanuel Lévinas utiliza afirmação clássica de Fiodor Dostoievski, da obra ‘Os Irmãos Karamazovi’ de que “somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros.” Esta afirmação tem o poder lógico de reconhecer como a falta de respeito às diferenças pode resultar em tragédias quando o outro é visto apenas do negativo. Mas o argumento não deve ser centrado na pergunta “Quem é o mais culpado?”, mas sim nas perguntas “Somos todos responsáveis, de algum modo, pela tragédia de Charlie Hebdo?” e “Como é possível evitar que tragédias desse porte ocorram?”
Com relação à primeira pergunta (quem é o mais culpado?) os argumentos do tipo “são condenáveis todas as práticas de terrorismo”, “Os profissionais de Charlie Hebdo são culpados por provocar/incitar a guerra”, “ambos são culpados por terem como marca registrada o espírito da intolerância”. Do ponto de vista causal ambos são, de fato, culpados porque não desenvolvem uma maneira saudável de convivência. Do ponto de vista consequencial ambos são culpados porque Charlie Hebdo, mediante crítica ácida e desrespeitosa, vê o outro como sinônimo de ridicularização e os responsáveis pelo ataque também são culpados porque resolvem os conflitos de forma arbitrária e anárquica como se a vida fosse menos importante do que a crença.
Porém, a ideia de culpa, seja do ponto de vista causal ou consequencial não alivia qualquer interpretação, já que ambos são culpados por suas próprias condutas baseadas na raiz do radicalismo. Está sensivelmente claro que qualquer ação extremada na esquerda ou na direita, na religião ou no ateísmo, na luta por territórios e poder político-econômico tem como fim a execração e banalidade da vida humana do outro.
Por isso, temos a segunda constatação de que se não reconhecemos que somos todos culpados pela tragédia de Charlie Hebdo (e continuamos sendo por esta e outras possíveis tragédias vindouras), qualquer afirmação ou negação parece precipitada ou incoerente. Eis que temos a dimensão do controverso em Charlie Hebdo e representantes da fé islâmica. A história do jornal francês, de grande relevância satírica na França desde a década de 1970 busca contrapor de forma radical e apelativa a imagem dos dogmas religiosos não somente islâmicos, mas também cristãos (católicos, evangélicos), entre outros. Mas foi a partir dos anos 2000 em que o jornal francês estabelece uma crítica eminentemente apelativa no aparato religioso ficando mundialmente conhecido. Fica a pergunta: por quais motivos católicos, evangélicos e representantes de outras religiões não demonstraram revolta ao ponto de promover um ataque bélico enquanto representantes do Islã buscam a estratégia mais radical?
No Islã há um preceito que rege a crença de seus adeptos de que Maomé não pode ser retratado/representado, pois qualquer retratação soa como ofensa ao povo mulçumano. Logo, vale destacar que cada cultura e crença tem uma forma de reagir a determinados tipos de ofensa e que, mesmo sendo condenável o ataque terrorista, é premente repensar o papel da mídia em nível global, uma vez que liberdade de expressão não significa “promover ofensa deliberada à cultura e crença alheia” como se fosse um objetivo midiático, especialmente pelo fato de que como meio informativo qualquer grupo midiático deve promover o controverso a fim de estimular uma visão mais sólida da realidade.
Quando um grupo midiático norteia apenas um viés da realidade está fadado ao fracasso da intolerância e ao estímulo da guerra (ideológica, religiosa, territorial e/ou bélica) e Charlie Hebdo é um representante expressivo de que a falta de isenção, a conduta tendenciosa apenas impacta de forma negativa a relevância informacional da mídia, pois a intolerância religiosa do Islã não justifica a intolerância antirreligiosa de Charlie Hebdo havendo formas mais sadias de se fazer a crítica. E a intolerância antirreligiosa de Charlie Hebdo não justifica a intolerância dos adeptos do Islã porque não é moralmente justo pagar com a vida um ato de crítica ácida e desdenhosa.
Desse modo, dizer “Je suis Charlie” ou “Je ne suis pas Charlie”, parece reconfortante, mas não contribui muito para o entendimento da realidade. A tragédia de Charlie Hebdo exige a compreensão do papel de cada instituição na superação de um conflito que já dizimou a vida de milhões de pessoas.
Com relação ao governo (francês e de qualquer outra nação) urge o debate acerca do caráter regulatório da mídia. Governo e sociedade civil precisam reconhecer que a mídia é um relevante meio informacional e como tal não tem a prerrogativa onisciente de atuar em desrespeito a cultura alheia, mas, ao contrário, devem compreender a informação como construção social que deve despertar a pluralidade de percepções e não apenas que parece ser conveniente ao grupo midiático. Em tese, a afirmação de que qualquer papel regulatório da mídia é uma forma se censura tem veracidade.
Há dois tipos de censura: a repressiva (inibe perspectivas efetivas da liberdade de expressão e liberdade de imprensa) e a repreensiva (constitui uma regulação econômica e conteudística moderada apenas para casos extremos de ação tendenciosa da mídia). Neste caso, ficam as perguntas: será que uma regulação repreensiva da conduta midiática de Charlie Hebdo não poderia ter evitado a tragédia? Será que a mídia, ao agir de forma tendenciosa, sem observar os diversos aspectos e limites ideológicos e informacionais da realidade não confunde autonomia com desrespeito ou arbitrariedade? Por isso, se for com o intuito de preservar vidas e permitir grupos midiáticos mais humanos no âmbito informacional e menos tendenciosos no âmbito ideológico e econômico acredito na premência de um marco regulatória da mídia, especialmente econômica, mas também de conteúdo quando em casos extremos como o de Charlie Hebdo.
A prova da necessidade de regulação da mídia e de um papel governamental mais ativo é que boa parte da imprensa francesa e internacional tem deturpado o massacre de 07/01/2015 incutindo uma cultura de intensificação da guerra em detrimento de consagração da paz, assim como componentes políticos, principalmente da extrema direita, buscam afunilar a segregação racial e social na França exigindo pena de morte e coerção mais efetiva nos processos de imigração como se esta fosse a grande responsável pelo radicalismo islâmico criando um apartheid ainda mais intenso com os aproximadamente 10% de imigrantes muçulmanos.
Quanto ao papel dos órgãos de justiça franceses, embora a Constituição da França não considere o judiciário como um Poder de Estado, é pertinente que o Conselho Constitucional francês exerça uma ação preventiva no sentido de reconhecer, por exemplo, que a crítica apelativa e rasteira a cultura/religião do outro, além de ofensiva, não é justificável sendo necessária uma retratação ou pedido de desculpas do grupo midiático, visando minimizar a força dos atos tendenciosos cometidos.
Por fim e não menos importante, a sociedade civil exerce papel determinante no sentido de unir um fenômeno global constituído por diversos movimentos sociais referentes à formalização de uma cultura de paz. Este deve ser um movimento global de que a paz é o melhor caminho para convivência e superação de conflitos. Se a sociedade civil pede mais guerra endossa o discurso de grandes grupos midiáticos, governistas e empresariais que veem na guerra a alternativa para manutenção do poder. Se a sociedade civil luta por um mundo de paz pressiona os órgãos dominantes a reverem o significado de dominação. Contudo, o fato de pedir paz, não significa aceitação do ataque terrorista que, como já frisado, é condenável e tem sua raiz no mais torpe sentimento de que a crença vale mais que a vida, sendo preciso à tomada de ações político-institucionais coletiva e coordenada entre as nações, incluindo países ocidentais e orientais, como a Arábia Saudita, que possui papel considerável para minimizar este tipo de conflito. Mas combater guerra com guerra é o sinal de que o ser humano é incapaz de ver no outro, qualidades que os aproximem e diferenças que possam ser respeitadas.
Portanto, posso dizer que “Je ne suis pas Charlie”, com o discurso simultâneo de condenar qualquer ataque terrorista. Mas, acima de tudo, é preciso superar a ideia de se posicionar simplesmente no afirmar (Eu sou Charlie) e negar (Eu não sou Charlie), pois o que está em jogo não são simples percepções ideológicas, mas o futuro da humanidade. Neste ponto, posso afirmar, para além do “Je suis Charlie” e “Je ne suis pas Charlie” que “Je suis en faveur d’une culture de tolerance” (Eu sou a favor de uma cultura de tolerância), visto que qualquer afirmação, diante de uma tragédia, só tem sentido plural e coletivo quando pautada no respeito às diferenças, bem como na superação do ódio/intolerância do fundamentalismo e ateísmo exacerbados.
*Jonathas Carvalho é professor da Universidade Federal do Cariri (UFCA), doutor em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e colaborou para Pragmatismo Político
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