Para alguém que não valoriza muito a vida, a pena de morte não será eficaz como querem fazer crer. Quem tem menos ou nada a perder, se preocupa menos com medo da morte
César Zanin*
Brasil e Indonésia
Dois brasileiros foram condenados à pena de morte por fuzilamento na Indonésia, por tráfico de drogas. Um deles, Marco Archer Cardoso Moreira, foi executado em 17/01/2015. O governo brasileiro fez dois pedidos de clemência ao governo indonésio, tentando alterar a punição para evitar e pena capital, por questões humanitárias, mas não foi atendido. O outro condenado, Rodrigo Muxfeldt Gularte, também deverá ser fuzilado, em fevereiro de 2015.
A Indonésia tem uma das leis antidrogas mais rígidas do mundo, incluindo a pena de morte para o crime de tráfico. Quem for pego com mais de cinco gramas de droga pode ser condenado à morte, inclusive estrangeiros. E na Indonésia a maioria apoia a pena de morte, mas é pertinente salientar que com o passado recente desse país, sangrento e corrupto, era mesmo de se esperar. Para quem quiser saber mais sobre como o povo indonésio lida com a morte, indico os filmes de Joshua Oppenheimer.
A pena de morte para crimes civis foi aplicada pela última vez no Brasil em 1876 e não é utilizada oficialmente desde a proclamação da república. Até os últimos anos do império, o júri continuou a condenar pessoas à morte, ainda que a partir de 1876 o imperador Dom Pedro II comutasse todas as sentenças de punição capital. O jornalista Carlos Marchi, autor do livro “A Fera de Macabu“, sobre como foi aplicada a pena de morte por enforcamento ao fazendeiro carioca Manoel da Motta Coqueiro (que era inocente), observa que a finalidade principal da pena de morte no Brasil era reprimir e amedrontar os escravos – não à toa a punição foi retirada do Código Penal com a proclamação da República, pouco mais de um ano depois da abolição da escravidão em 1888.
O inciso 47 do artigo quinto da Constituição de 1988 diz que “não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada“. Ou seja, a pena de morte no Brasil foi abolida para todos os crimes não-militares. O artigo 60 faz dessa abolição da pena de morte uma cláusula pétrea, ou seja, qualquer mudança no texto dependeria da convocação de uma Assembleia Constituinte que elaborasse uma nova Carta, algo tido como bastante improvável.
Segundo uma pesquisa do Datafolha de 2013, 50% dos brasileiros acham que não cabe à Justiça determinar a morte de uma pessoa, mesmo que ela tenha cometido um crime grave. Outros 46% se disseram favoráveis à punição. Em 2008 essa pesquisa do Datafolha indicou um empate técnico (46% – 47%) e em 2002 a maioria queria a pena de morte no Brasil (45% contra e 51% a favor).
Essa tendência de declínio do apoio popular à pena de morte vinha sendo sentida não somente no Brasil, mas também em outros países. Segundo um levantamento do Pew Research Center, o número de americanos que reprovam a pena de morte para condenados por homicídio passou de 31% em 2011 para 37%, em 2013, e segundo o Centro de Informações da Pena de Morte dos Estados Unidos, 2014 teve o menor número de execuções dos últimos 20 anos.
Mas desde os desdobramentos das manifestações de junho de 2013, com a descrença nos políticos e decorrente queda nas pesquisas de aprovação da presidenta Dilma (curiosamente isso não se aplicou ao governador Alckmin, que foi reeleito no primeiro turno com votação recorde e sem ter divulgado plano de governo), passando por todo o período conturbado da Copa do Mundo e culminando na campanha eleitoral de 2014, que escancarou de vez uma situação de conflito de ideias e confronto político numa sociedade cada vez mais dividida e agressiva, tudo pode virar motivo para mais lenha nas fogueiras… O caso do fuzilamento do brasileiro na Indonésia conseguiu unificar esses dois temas: a pena de morte e a chamada guerra às drogas. Foi um prato cheio para uma série de debates nada construtivos.
Na grande mídia brasileira o apoio à pena de morte e à guerra às drogas vem tomando espaço nos telejornais e na programação em geral. Nas redes sociais também tem muita gente se manifestando a favor da pena de morte e da guerra às drogas. Figuras públicas publicam coisas como “viva a polícia que mandou mais 4 bandidos para o saco”, e milhares de pessoas nos brindam com comentários defendendo, incentivando e/ou comemorando a morte dos bandidos, na grande maioria das vezes numa escrita que ignora a gramática da língua portuguesa.
“Bandido bom é bandido morto”
Quem nunca ouviu algo assim da boca de alguém defendendo a pena de morte? Tenho visto esse tipo de coisa todos os dias nas redes sociais. Daí inclusive meu interesse em escrever isto aqui.
Pois então, eu pergunto, o que é um bandido? E o dicionário me responde o que eu já suspeitava: Bandido é alguém mau caráter e de pouca honestidade que vive de atividades ilícitas.
Diversos canais religiosos aqui no Brasil, como por exemplo gospelprime.com.br, marcofeliciano.com.br, gospelmais.com.br, comunhao.com.br, vcsabiacatolico.com.br, portalconservador.com, livreseradicais.com, levitasnews.com.br, entre outros, divulgaram matérias dizendo que a Arábia Saudita decretou a pena de morte para quem for pego com a bíblia cristã.
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No Irã a apostasia e o adultério são punidos com a pena de morte. Em 2011 um homem chamado Abdolreza Gharabat foi condenado e executado por enforcamento porque estaria evangelizando jovens no sudoeste do país. Eu não consigo lembrar de qualquer mobilização a respeito aqui no Brasil (a favor ou contra).
Nesse caso, caro leitor, se você for um cristão brasileiro e for pego com a bíblia na Arábia Saudita, saiba, você também será um bandido e será condenado pena de morte. O crime é outro, mas é um crime, afinal a lei do país é aquela. O mesmo em relação ao cônjuge safadinho que pular a cerca no Irã.
Poderá ser dito que nesse caso é a lei desses lugares que é estúpida pois usa a pena de morte de forma equivocada. Acontece que para a maioria dos indonésios, sauditas e iranianos, a lei deles é justa.
Será que se fosse um brasileiro condenado à pena de morte por carregar a bíblia na Arábia Saudita ou um brasileiro condenado à pena de morte por adultério no Irã, haveria todo esse apoio à pena de morte e essa comemoração à morte do bandido em questão?
Quando penso nas execuções perpetradas pela Polícia Militar nas periferias das cidades brasileiras, fico ainda mais triste, afinal nesses casos não há julgamento nem condenação nem direito à defesa no judiciário, o que acontece é que o PM decide ali mesmo e coloca em prática essa pena de morte informal.
Entre 1980 e 2006 foram 11627 casos de execução sumária no Brasil, segundo o Banco de Dados da Imprensa – NEV/USP – CEPID. Ou seja, média de mais de uma execução por dia no nosso país desde 1980. Pior, 2654 desses casos aconteceram no RJ e 8422 foram em SP. Sim, em SP a cada 12 dias pelo menos 10 pessoas são executadas pela polícia.
Para se ter uma ideia da barbárie brasileira, em 2013 houve 778 execuções oficiais no mundo, 96 a mais do que em 2012 (dados da Anistia Internacional). Essas execuções, que respeitam a lei desses países e percorrem os caminhos do judiciário etc, totalizam um número muito, mas muito menor do que as execuções sumárias ilícitas por parte da polícia que acontecem aqui em nosso país!
E isso é apenas a ponta do iceberg. A violência policial amplifica a violência do crime. É uma espiral de violência sem fim.
Defender a pena de morte para combater o crime?
Quem defende a pena de morte costuma argumentar usando o medo. O medo que essa pessoa sente de um dia passar por uma situação de perigo de morte nas mãos de um bandido, o medo que ela sente de um dia perder alguém querido assassinado por um bandido. E também o medo que essa pessoa acha que todo mundo compartilha, por isso escuto tantas vezes frases do tipo “eu queria ver você ser contra a pena de morte defendendo bandido na mira de uma arma sendo assaltado”. Obviamente eu cagaria de medo na mira de uma arma, sendo assaltado, como qualquer ser humano saudável, de acordo com meu modo de ser. Mas infelizmente cada um dá um valor diferente à vida, nem todos sentem os mesmos medos. Para alguém que não valoriza muito a vida, a pena de morte não será eficaz como querem fazer crer. Quem tem menos ou nada a perder, se preocupa menos com medo da morte. E assim como amor tende a gerar amor, violência tende a gerar mais violência.
Quem defende a pena de morte afirma que se trata de uma medida para impedir crimes. Não impede, isso está comprovado. E nem me refiro ao assassinato do bandido perpetrado pelo Estado. Nos países onde há a pena de morte os crimes continuam a ocorrer e em muitos deles inclusive aumenta, basta ver as estatísticas.
Um estudo publicado pelo Jornal de Lei Criminal e Criminologia da Universidade de Northwestern, em Chicago, mapeou as opiniões de 67 pesquisadores americanos que se especializaram nesse tema. Para 88,2% deles, executar detentos não tem qualquer impacto nos níveis de criminalidade.
Segundo Joe Domanick, diretor do Centro de Mídia, Crime e Justiça da Universidade da Cidade de Nova York, “as pessoas que cometem os crimes mais violentos, que em geral são crimes de paixão ou acertos entre gangues, claramente não se preocupam com a pena de morte ao cometê-los“.
Nos 36 estados americanos que adotam a pena, o índice de assassinatos por 100 mil habitantes é maior que o registrado nos outros 14 estados que não condenam à morte.
Na França, especialistas em segurança pública garantem que a violência não explodiu depois que a guilhotina foi aposentada em 1977. No Irã, o exemplo inverso: a pena de morte foi reintroduzida em 1979 com a revolução islâmica, mas não significou nenhuma redução das taxas de criminalidade.
A pena de morte impede que aquele mesmo bandido volte a cometer crimes, mas incentiva um comportamento mais violento em todas as situações, pois qualquer bandido saberá que uma vez capturado ele será morto pelo Estado. Defender a pena de morte não vai evitar o risco que qualquer pessoa passa diariamente de ser assaltado o assassinado.
Outra forma de argumentação dos defensores da pena de morte é algo como “se você defende bandido você faz parte da bandidagem”. Toda vez que alguém vem com uma dessas para mim, eu respondo pedindo para essa pessoa me apontar um crime meu, na maioria das vezes a argumentação deles continua com algo como “todos cometemos pequenos delitos diariamente, isso nada tem a ver com os crimes passíveis à pena de morte”, e na sequência já aponto a essa pessoa que ela sim está infringindo algum dos artigos do código penal que tratam dos crimes contra a honra (nº 138, 139 e/ou 140), pois ninguém pode sair dizendo que eu cometo crimes diariamente ou coisas do tipo sem ter prova.
Não defendo bandido. A questão é simples, não precisamos endurecer as leis, precisamos fazer com que as leis existentes sejam aprimoradas e principalmente cumpridas. E mesmo assim, quando as leis não forem cumpridas, e isso realmente ocorre frequentemente, devemos lutar para que quem descumpriu a lei responda por isso. Voltarei a esse ponto logo mais, antes de abordar a guerra à drogas.
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Parte dos defensores da pena de morte canaliza sua própria mágoa, acumulada durante a vida, e converte isso num tipo de ódio ao bandido, aquela história do “se eu que tive tantos problemas na vida sou um cidadão de bem, por que devo sustentar criminoso na cadeia? Eu mereço viver sem que eles continuem vivos para acabar com a vida dos outros”. Essa argumentação parte do pressuposto que o erro dos outros é sempre maior e pior que o nosso. Que nossos erros são benévolos e que os erros dos outros são perversos. Para essas pessoas eu pergunto: Por que será que você carrega tanta mágoa? E por que será que os criminosos se tornaram criminosos?
Ninguém nasce bandido ou samaritano, temos sim características genéticas bem precisas, mas que se referem à nossa espécie e não sobre questões como essa – se seremos ou não bandido quando adultos; vamos sendo preenchidos e/ou moldados à medida e que crescemos, de acordo com as influências a nosso dispor. Há também quem genuinamente sinta prazer com um bandido sendo morto. E esse é um caso mais difícil. Trata-se de desvio psicossocial, coisa grave. Que pode ter sido causada por falta de amor quando criança e diversos outros fatores.
Obviamente pode-se dizer que sentir prazer com a morte de um bandido é preferível a assassinar alguém, mas é impossível negar que sentir prazer com a morte de quem quer que seja demonstra o mesmo princípio de um assassino. Aliás, vou além, tenho plena convicção de que nem todo assassino condenado à pena de morte tenha matado por prazer. Sentir prazer com a morte de bandidos não é crime. Sentir prazer com a dor alheia não é crime. Eu sei que não. Mas na minha opinião a demonstração desse tipo de sentimento deveria se tornar crime sim. Assim como o racismo e a homofobia.
As leis são mera convenção, representam a evolução de uma sociedade. No Brasil escravizar já foi algo perfeitamente legal e o voto para a mulher já foi proibido. Creio que hoje a grande maioria concorda que as leis melhoraram para corrigir esses absurdos. Somos em 7 bilhões de pessoas neste planeta e se formos impor a pena de morte a todos que cometeram crimes e nos causam medo, que tipo de vida terá quem conseguir sobrar?
Infelizmente seria uma vida pautada na violência e no medo, usando a morte como arma institucionalizada do Estado contra os dejetos sociais. Assassinato é um crime, não há dúvidas em relação a isso. Se um bandido merece que o Estado o mate, o que merece esse Estado? Nada justifica a morte. Ah, alguém quer que eu me aprofunde na questão das condenações de inocentes?
Ao invés de matar por que não recuperar?
Uma característica dessa pena de morte informal brasileira pode ser facilmente percebida: Só acontece com bandido “peixe-pequeno”, pois bandidos de colarinho branco, ricos, empresários sonegadores de milhões políticos corruptos, entre outros, continuam ricos e soltos.
Como já vimos acima, os criminosos de colarinho branco também são bandidos, mas curiosamente esse tipo de bandido não corre o risco de ser executado sumariamente por algum PM. Aí que mora a parte mais podre dessa estrutura toda em que estamos encravados hoje no Brasil. Exatamente como era quando havia a pena de morte no Brasil institucional antes da proclamação da república. Pois a pena de morte informal brasileira serve apenas para descartar os dejetos sociais, isto é, o bandido “peixe-pequeno” que não se enquadra (mais) no sistema sujo em vigor, para causar burburinho em meio aos defensores do “bandido bom é bandido morto”, e enquanto isso o bandido “peixe-grande” continua atuando livremente com o apoio tácito de grande parte da população.
E tome chacinas, rebeliões reprimidas com massacre, propinas, tráfico de influência; nas favelas, nas delegacias, nos fóruns, nas penitenciárias… E aqui voltamos: Por conta desse modo de pensar e agir que o sistema é corrupto.
Assim como o bandido que rouba a mão armada e assassina, toda e qualquer pessoa que cometer um crime deve sim ser punido, oras. Tem gente que sem precisar apontar uma arma na cara de ninguém comete crimes que geram indiretamente a morte de muitas pessoas. Os agentes da lei que são corruptos ou cometem atos ilícitos (como execução sumária ou violência policial, propina ou tráfico de influência, entre outros), devem ser punidos também. Sem isso não teremos justiça, teremos um sistema repleto de corrupção, segregação, medo, ódio e violência.
Se ao invés de matarmos esses dejetos sociais, que por uma razão ou outra hoje realmente não contribuem para uma sociedade melhor e seguem cometendo crimes, os punirmos perante a lei e também partirmos para uma política de recuperação, de reeducação, os resultados serão muito melhores, não apenas para eles, mas para todos, tenho convicção disso. Mas para que uma política de recuperação do criminoso seja bem-sucedida, será preciso identificar, punir e recuperar também os agentes da lei que são corruptos. Além, é claro, da desmilitarização das PMs, da reformulação dos valores da polícia e de investimentos em treinamento e melhores condições para os policiais e demais agentes da lei.
E mesmo assim, uma política de recuperação de criminosos é apenas a ponta do iceberg, pois a evolução de nossa sociedade depende da educação das futuras gerações, aí sim é que reside o desafio maior e mais recompensador para nossa sociedade como um todo. Uma educação pautada no respeito mútuo, na valorização da diversidade, no aprendizado transformador, e sim, acreditem, no amor.
Guerra às drogas
A guerra contra as drogas é o termo usualmente aplicado à política de repressão e intervenção militar feita pelos governos ao redor do mundo, visando acabar com a produção, o tráfico e o consumo de drogas ilícitas; o termo foi usado pelo presidente Richard Nixon em 1971 numa grande ofensiva – em ação até hoje – inspirada numa convenção da ONU de combate às drogas em 1962.
Antes de 1860 toda e qualquer droga era livremente produzida e distribuída nos EUA sem qualquer tipo de identificação ou controle.
Em 1906 foi aprovada nos EUA a Lei de Pureza de Alimentos e Drogas, que exigia que drogas como heroína, cocaína, álcool e maconha tivessem rótulos especificando composição e dosagem (as drogas continuaram a ser livremente disponíveis, desde que apresentando rótulos).
Em 1914 a Lei Antidrogas Harrison regulamenta a heroína e a cocaína (pela primeira vez tornando mais difícil o uso recreativo).
Em 1919 o álcool foi banido nos EUA, causando a clandestinidade dos produtores (que continuaram a produzir, porém com menor controle de qualidade), uma queda na economia formal e o fortalecimento da máfia (que antes da proibição limitava suas atividades a prostituição, jogo e roubo, passando então a operar com força máxima ao álcool).
A partir de 1928 a Convenção Internacional do Ópio proibiu o uso recreativo da heroína e da cocaína (além de pela primeira vez acenar para uma proibição da maconha).
Em 1933 o álcool voltou a ser liberado nos EUA. O Ato Fiscal da Maconha de 1937 serviu de base para a proibição total da maconha nos EUA a partir de 1952.
Em 1976 entrou em vigor no Brasil a conhecida Lei de Tóxicos (nº 6.368). O fundamento da Lei era reprimir o consumo de drogas porque, na mentalidade do legislador, o uso de drogas está associado ao estímulo a comportamentos propensos à criminalidade. Esse fundamento se concretizou, isto é, o consumo foi realmente reprimido, mas essa repressão causou mais problemas do que a própria droga seria capaz de causar; além de ainda existir muita gente consumindo agora temos o tráfico de drogas cada vez mais poderoso e sanguinário; umnovo universo criminoso foi criado a partir dessa guerra às drogas.
A previsão de todo legislador e governante que adotou a guerra às drogas como política para lidar com quem se dedica à produção e ao consumo de drogas ilícitas era que a as autoridades iriam impedir a produção, a distribuição e o uso das drogas rapidamente e permanentemente, isto é, que a tal guerra às drogas seria vencida e que a sociedade deixaria para trás todo tipo de droga classificada como ilícita, salvando assim o usuário dos malefícios das drogas e evitando comportamentos criminosos por parte dos “drogados”.
Mas aconteceu de outra forma: Não foi o comportamento da pessoa que usa a droga que causou desordem e crimes; a pessoa que experimenta e gosta de uma droga ilícita, mesmo sabendo que a droga é ilícita, continua usando a droga e com isso precisa encontrar quem produza e forneça essa droga. Foi a partir disso que o papel do traficante de drogas foi se fortalecendo, cada vez mais, pois a procura pela droga gera uma demanda, que o traficante supre.
Essa situação permitiu a criação de um enorme mercado de trabalho informal e acaba por movimentar dinheiro, e no caso estamos falando de muito dinheiro, sustentando a indústria do tráfico e todos os crimes derivados dessas atividades que todo traficante aceita como inevitável para a manutenção desse sistema (por exemplo, assassinatos, assaltos, pagamento de propina a policiais, agentes da lei e políticos, lavagem de dinheiro, entre muitos outros).
Cada vez que um candidato a algum cargo de governo, que prometeu combater as drogas visando aumentar a segurança da população, é eleito e coloca em prática essa política de guerra às drogas em ação, a maioria da população acaba não enxergando a situação em perspectiva e percebe apenas as consequências (a violência).
Em matéria de segurança pública, o fato é que há várias décadas todo governante no Brasil (seja federal ou estadual) se limita a lutar uma mesma guerra e de uma mesma forma.
A cada eleição vemos as mesmas promessas, “vamos ampliar o combate às drogas para a segurança da população”, mas ao invés de acharmos que o próximo governante vai finalmente conseguir resolver essa questão de uma vez por todas, afinal “bandido bom é bandido morto”, precisamos urgentemente aceitar que a tal guerra às drogas nunca foi vencida em todos esses anos e que, mesmo com todos os bandidos que a polícia continua matando (quase sempre em execuções sumárias, ilícitas), sempre aparecem outros bandidos e o resultado final disso tudo nunca foi a segurança da população, afinal as drogas continuam sendo produzidas e consumidas e o tráfico continua a atuar.
Em janeiro de 2012 o governo brasileiro comprometeu-se em liberar 4 bilhões de reais até 2014 para o programa de combate às drogas.
A lei Antidrogas (nº 11.343/06) foi promulgada com a pretensão de diminuir o número de presos, ao determinar tratamentos ou penas alternativas aos usuários. Porém, nesses últimos 5 anos, a venda de drogas tornou-se o delito mais comum e a quantidade de detentos por tráfico teve um incremento de 166%, enquanto a população carcerária de modo geral cresceu bem menos, 36%. Esses dados demonstram que a repressão policial tem se mostrado produtiva, porém o incremento no consumo de drogas em todo o país faz com que aumente também a ação dos traficantes.
Outro aspecto triste da guerra às drogas é a imensa quantidade de pessoas que, depois de já terem cumprido suas penas por tráfico ou consumo de drogas, são segregadas e relegadas a uma condição permanente de inferioridade na hora de procurar trabalho e moradia, inclusive contribuindo para que muitos voltem a traficar ou consumir.
O tráfico só cresce em meio a violência e corrupção
O tráfico atua não somente nas favelas, como muita gente acha. O tráfico atua também nas prisões, nas ruas, nas fronteiras e em todas as esferas da sociedade. Para continuar existindo, o tráfico alicia crianças para o transporte e venda das drogas, alicia policiais para que os flagrantes não aconteçam, alicia agentes da lei para que os processos não resultem na punição justa, alicia agentes penitenciários para fugas ou privilégios proporcionando o tráfico dali mesmo, e claro, alicia políticos. Sim, o tráfico conta com o apoio de gente de todas as esferas do poder.
Como o tráfico consegue tudo isso? Oras, dinheiro. O tráfico mata mas tem dinheiro vivo.
Mas para que o tráfico não perca seu poder, mantendo suas atividades (comprando armas, subornando policiais, agentes da lei e políticos etc), precisa continuar lutando para ganhar a tal guerra. E o tráfico percebeu faz tempo que a guerra às drogas não será vencida pelos governos com essa política de repressão. Afinal a violência e a corrupção são o habitat natural do tráfico.
O tráfico precisa que as drogas continuem ilícitas. Se as drogas forem legalizadas o tráfico terá que abandonar o seu modo de existir. Aliás, se as drogas forem legalizadas o monopólio que faz do tráfico essa força invencível deixará de existir.
O tráfico só sabe funcionar ao redor da violência e da corrupção, afinal traficante não fornece nota fiscal, traficante não registra em carteira, traficante não paga impostos nem INSS, traficante não obedece normas de segurança nem controle de qualidade reconhecidos, traficante não precisa gastar com publicidade etc.
Trocando em miúdos podemos dizer que a guerra às drogas, além de não ser capaz de acabar com as drogas, se tornou a causa dos mesmos problemas que ela supostamente deveria resolver: violência e corrupção.
A violência que supostamente viria dos “drogados”, acabou vindo da guerra entre os poderes em questão (tráfico e governos); e a corrupção que a droga supostamente provocaria nos “drogados” colaborando para denegrir a sociedade, acabou vindo da promiscuidade entre traficantes e agentes da lei e políticos.
Um exemplo gritante dessa promiscuidade é o caso absurdo da apreensão de quase meia tonelada de cocaína dentro de um helicóptero que tinha acabado de pousar numa fazenda perto da cidade de Afonso Cláudio no Espírito Santo em novembro de 2013.
O helicóptero é de propriedade da empresa Limeira Agropecuária, da família do senador Zezé Perrella do PDT (seu filho, o deputado Gustavo Perrella do partido Solidariedade, é sócio da empresa e dono do helicóptero). A PM prendeu quatro pessoas no ato, dentre eles o piloto Rogério Antunes, que era funcionário de confiança dos Perrella e ocupava um cargo de nomeação na Assembleia Legislativa de Minas Gerais por indicação de Gustavo Perrella. Devido à grande quantidade de droga apreendida o caso foi passado para a Polícia Federal. A PF divulgou que o helicóptero pegou a droga no Paraguai e fez escala no estado de SP (ou seja, tráfico internacional).
Absurdo, não? Que nada, continue lendo que tem mais!
A empresa de Perrella, proprietária do helicóptero, já estava sendo investigada pelo Ministério Público por ter recebido mais de 2 milhões de reais num esquema de corrupção em MG. A fazenda onde pousou o helicóptero com a cocaína já vinha sendo monitorada pela PM por suspeita de lavagem de dinheiro (a denúncia era de que a fazenda tinha sido negociada por um valor 3 vezes acima do mercado).
Leia também: Manifestantes realizam ‘farinhaço’ em protesto contra ‘helicóptero do pó’
Passado apenas um dia da operação que resultou na apreensão da droga, a PF descartou o envolvimento dos Perrella no episódio e as investigações não deram resultado algum (não se sabe com quem o piloto pegou a droga e a quem era destinada). O piloto afirmou que o deputado Perrella sabia que o helicóptero iria pousar em Afonso Cláudio. Em abril de 2014 o piloto e os outros três que tinham sido presos foram libertados pela Justiça. A grande mídia simplesmente esqueceu do caso, nenhum telejornal noticia mais e todos estão soltos. Enfim, 0 caso parece ter virado pó.
Ah, o novo secretario de segurança pública de SP, Alexandre Moraes, empossado pelo governador Geraldo Alckmin do PSDB, foi advogado do Primeiro Comando da Capital (PCC) – a maior organização criminosa do tráfico de drogas de SP. Sim, Moraes defendeu o PCC em 123 processos judiciais e agora comanda a PM.
Que droga você usa?
As drogas lícitas (legais) mais comuns hoje no Brasil são o álcool e o cigarro. As drogas ilícitas (ilegais) mais comuns hoje no Brasil são a maconha e a cocaína.
O LENAD (Levantamento Nacional de Álcool e Drogas), um relatório com nome dúbio (afinal álcool é uma droga), realizado pelo Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (INPAD) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) aponta o seguinte em relação ao álcool no Brasil: 64% dos homens e 39% das mulheres adultas relatam consumir álcool regularmente (pelo menos uma vez por semana). Podemos deduzir que pelo menos metade da população brasileira consome álcool regularmente. São mais de 100 milhões de pessoas.
Elaborado pelo Escritório da ONU sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), o Relatório Mundial sobre Drogas aponta que uma média de 243 milhões de pessoas usaram drogas ilícitas no mundo em 2012.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as drogas ilícitas respondem por 0,8% dos problemas de saúde em todo o mundo, enquanto o cigarro e o álcool, juntos, são responsáveis por 8,1% desses problemas.
Uma pesquisa do Comitê Científico Independente para Drogas da Grã-Bretanha, de 2012, classificou numa escala de 0 a 100 nível de periculosidade das drogas mais comuns. Confira as oito mais perigosas:
1 – Álcool: 72 pontos (de um total possível de 100).
2 – Heroína: 55 pontos.
3 – Crack: 54 pontos.
4 – Metanfetaminas: 33 pontos.
5 – Cocaína: 27 pontos.
6 – Tabaco: 26 pontos.
7 – Anfetaminas: 23 pontos.
8 – Maconha: 20 pontos.
Sim, o álcool pode ser quase três vezes mais perigoso do que a cocaína e quase quatro vezes mais perigoso do que a maconha. Ainda assim qualquer um pode consumir álcool sem ser incomodado em qualquer bar, dos mais simples aos mais luxuosos, enquanto que ao consumir maconha, qualquer pessoa sem amigos importantes pode parar na cadeia ou mesmo morrer assassinada por algum PM ou traficante numa viela qualquer.
As pesquisas sobre os efeitos benéficos de algumas drogas ilícitas estão aparecendo faz tempo por aí, basta ver. Se ainda há dúvidas sobre os males que essas drogas possam causar, ok, que sejam feitas mais pesquisas e que os usuários sejam acompanhados, mas sem criminalizar.
Recentemente a maconha foi liberada para o uso medicinal no Brasil. Uma vitória da lucidez. Afinal, não existe overdose de maconha, maconha não mata. Cigarro sim, pode matar. Álcool sim, pode matar. E também preconceito, medo e ódio, sim, podem matar.
O debate sobre a criminalização das drogas precisa ser encarado de forma racional. Segundo a London School of Economics, o custo da guerra ás drogas já ultrapassou 1 trilhão de dólares!
A mesma ONU que em 1962 inspirou Nixon a iniciar a guerra às drogas hoje assume que a guerra às drogas fracassou. Em junho de 2011 a Comissão Global de Política de Drogas declarou:
“A guerra global contra as drogas falhou, com consequências devastadoras para indivíduos e sociedades pelo mundo. Cinquenta anos após o início da Convenção de Narcóticos da ONU, e quarenta anos depois do presidente Nixon ter lançado a guerra contra as drogas, reformas fundamentais em controle global de drogas nacional e internacionalmente são urgentemente necessárias“.
Na longa lista de integrantes dessa comissão estão o ex-secretário de estado dos EUA, George P. Shultz, o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, o ex-presidente FHC e ex-presidentes dos seguintes países: Suíça, Colômbia, Chile, Portugal, Polônia, Grécia e México.
Em audiência pública no Senado em Brasília ano passado, o secretário nacional de Drogas do Uruguai, Julio Heriberto Calzada, defendeu a regulamentação da maconha sob o argumento de que, após a liberação, o seu país reduziu a zero as mortes ligadas ao uso e comércio da droga.
Não somente o Uruguai, mas também países desenvolvidos como a Holanda, Portugal e agora, quem diria, também os EUA, já conseguiram demonstrar ao mundo que a liberação da maconha não causou desastre algum, muito pelo contrário.
Desde a pré-história, por séculos e séculos, as drogas foram usadas livremente sem causar os estragos causados pela chamada guerra às drogas.
Eu não gosto de guerra, mas mesmo quem gosta de guerra precisa aceitar que a guerra contra as drogas fracassou e que ela está causando o pior em nossa sociedade (muito mais do que qualquer droga seria capaz).
Assumo que no decorrer da minha vida acabei adquirindo um ou dois vícios, mas nenhum deles se relaciona diretamente com drogas (sejam lícitas ou ilícitas). Consegui abandonar um vício horrível: roer unhas. Ainda não consegui abandonar um vício horrível: coçar a cabeça. Até meus trinta e cinco anos de idade eu também era da turma do ódio aos “drogados”. Não sinto vontade alguma de experimentar certas drogas, como por exemplo o cigarro e a cocaína. Mas hoje consigo enxergar que o problema não é a droga, o problema é o que se faz com ela.
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A pena de morte e a guerra às drogas comprovadamente não conseguem resolver os problemas que seus defensores temem. Nossa espécie ainda tem muito a aprender, não me considero um detentor da verdade e sei que há momentos em que qualquer um pode se enfurecer por indignação, mas sinto que para evoluirmos, como indivíduos e como sociedade, precisamos cultivar o amor e o respeito. Até mesmo nos momentos mais difíceis, pelo menos o respeito sim, sempre. O que conseguiremos cultivando o amor e o respeito: Simples, evolução; a humanidade salva.
*César Zanin é tradutor, professor, escritor, produtor e colaborador em Pragmatismo Político
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