Por trás do discurso da "meritocracia", o nosso passado mal resolvido
O uso da “meritocracia” como verdade suprema acaba servindo a quem ignora que as pessoas não tiveram acesso aos mesmos direitos para começarem suas caminhadas individuais e que partem de lugares diferentes. Uns mais à frente, outros bem atrás
A palavra “meritocracia” funciona em um debate como um coringa num jogo de buraco: quando falta carta para bater, ela aparece para salvar uma sequência incompleta. Não fica lá a coisa mais bonita do mundo, mas resolve sua vida porque todo mundo aceita que aquela carta pode preencher um vazio.
“Discordo de cotas étnicas, sociais ou por cor de pele no vestibular porque defendo a meritocracia.”
“A preferência para pessoas com deficiência em seleções de contratação é, a meu ver, um erro porque não segue a meritocracia.”
“Se vivêssemos em uma sociedade em que a meritocracia valesse algo, não haveria porcentagem mínima obrigatória de mulheres candidatas em cada partido nas eleições.”
Ela acaba passando um senso de lógica, racionalidade e Justiça que ergue o interlocutor a um patamar mais elevado dos mortais. Em suma, algo do tipo “venha, querido, não se misture com essa gentalha”.
Eu não sou contra que competência e experiência individuais sejam parâmetros de avaliação. Uma coisa é o mérito em si. Outra, um sistema de poder criado em torno dele como justificativa para manutenção do status quo.
O problema é que o uso dessa palavra como verdade suprema acaba servindo a quem ignora que as pessoas não tiveram acesso aos mesmos direitos para começarem suas caminhadas individuais e que, portanto, partem de lugares diferentes. Uns mais à frente, outros bem atrás.
Achar que um estudante que comia bolachas de lama, brincava com ossinhos de zebu, andava 167 quilômetros por dia para chegar à escola e ainda trabalhava no matadouro do município para ajudar na renda da família parte com igualdade de condições com outro que frequenta uma escola com laboratórios que simulam gravidade zero e possui professores com pós-doutorado em Oxford e são remunerados à altura, que viaja para um lugar diferente todos os anos a fim de conhecer o mundo e não precisará trabalhar até o final da pós-graduação é um tanto quanto irracional.
Os dois podem chegar lá. Mas se o segundo caso cruza a linha de chegada mais vezes, o primeiro é um a cada milhão. Por isso, essas histórias são contadas e recontadas à exaustão: primeiro, nós gostamos de falar de milagres e, segundo, são histórias úteis para convencer os outros que se um consegue, todos podem.
O que não é verdade. Pois, dessa forma, jogamos a responsabilidade de erros históricos não compensados e de uma desigualdade crônica de condições nas próprias pessoas que terão que vencê-las.
Há muita gente contrária a conceder benefícios para tentar equalizar as condições de quem a sorte sorriu menos. Acreditam que a única forma de garantir Justiça é tratar desiguais como iguais e aguardar que as forças do universo façam o resto.
E esse discurso é tão bem contado que, não raro, são apoiados por pessoas que, apesar de largarem em desvantagem, venceram. “Tive uma infância muito pobre e venci mesmo assim. Se pude, todos podem.” Parabéns para você! Mas ao invés de pensar que todos têm que comer o pão que o diabo amassou como você, não seria melhor pensar que um mundo melhor seria aquele em que isso não fosse preciso? De vez em quando penso que, quando nos esforçamos, podemos ser bem mesquinhos.
Como não boto muita fé que o lema “Pátria Educadora” vá resultar em melhoria do sistema educacional público, o que ajudaria a igualar um pouco as condições, e como não é possível acabar com o direito a qualquer herança (o que, hipoteticamente levaria cada geração a começar do zero, mas destruiria a sociedade como a conhecemos), o jeito é continuar apoiando medidas compensatórias e que tratam diferentes de forma diferente.
E demonstrando muito amor e paciência com quem acha que, quem não vence, é vagabundo.