Categories: Racismo não

Eu nunca vi um corpo como o meu na TV

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Jessyca Liris, Meninas Black Power

Eu nunca vi um corpo como o meu na TV. Mal via pessoas como eu. Estudava em escola particular com um monte de meninas brancas, e na aula de natação, uma delas gritou: “sai daí, Jessyca, com essa bunda cheia de estria! Ninguém quer ver não“. Nem sabia o que era isso, e daí veio todo o medo. Quando digo que nunca vi alguém como eu, quero dizer: mulher preta, de cabelo crespo, não-magra, com curvas sem simetria, com celulite e estrias.

Eu cresci achando que estava sempre errada, com medo de me mostrar, com pavor de que alguém visse esse tanto de defeito que a sociedade me grita a todo momento. Eu ia à praia de bata de manga comprida (só usava biquíni em casa); “meu corpo é feio“, pensava, e isso martelava na minha cabeça. “As pessoas vão ficar me olhando, apontando pra minha bunda feia e pra minha falta de peito” martelava minha cabeça o tempo todo… Já não bastava ter a bunda toda cheia de estrias, celulites e mole, tinha ainda os seios pequenos. “Toda errada“, martelava e martelava.

Um momento novo se iniciou, e comecei a ter relações sexuais, e só enquanto houvesse uma luz apagada, eu estava ali, e assim ia. Fui levando e sempre de luz apagada, mas tive a sorte de ter, por um tempo, um namorado que me ajudou a desconstruir toda essa ideia negativa e eu passei a rejeitar menos o meu corpo. Ele elogiava excessivamente a minha bunda porém ria dos meus seios, o que me fez querer, por alguns anos, fazer uma cirurgia pra poder aumentá-los e me sentir menos pior. Mais algum tempo se passou, o relacionamento terminou e a necessidade de ter relações sexuais crescia, e agora?

Alguns relacionamentos frustrados e eu já não queria mais namorar. “Mas como vou mostrar esse corpo estranho pra alguém sem que haja algum sentimento? Ninguém que não me goste ao menos um pouco vai querer esse corpo estranho.” Isso martelava na minha cabeça. Fiquei por anos transando mal e achando meu corpo estranho. Nunca me sentia à vontade por achar que os caras estavam contando quantos buracos eu tenho na bunda (isso porque nem vou falar da minha vagina, que dobra o complexo) e os meus seios que sempre são alvo de comentários, por serem pequenos, quase zero. Foi assim até que assumi o meu cabelo crespo, aumentando minha autoestima, a minha confiança. Passei a ir a praia de biquíni com as amigas, mas nada de foto e com short também, afinal, “ninguém precisa ficar vendo essa bunda estranha“.

Assumi o cabelo, ia a praia de biquíni, comecei a andar com outras pessoas e logo a transar com outras pessoas. Repetia pra mim “teu corpo não é estranho e o racismo não vai te engolir“, como um mantra, e comecei a entender meu complexo em relação ao meu corpo. Comecei a entender que a culpa é do racismo e do machismo que me fazem desejar ter o único corpo preto que aparecia na televisão: o da Globeleza, que nada tinha igual ao meu corpo, a não ser a cor meio amarronzada.

Fazer parte do movimento negro, de um coletivo de mulheres pretas, ouvi-las e lê-las, me fez compreender o ódio ao meu “corpo preto estranho” e atualmente não é muito diferente. Hoje me olhar no espelho ainda é estranho, ainda dói, ainda aparecem um monte de possíveis reparos e incontáveis perguntas do tipo “pra que e por que um corpo tão estranho?”.

Mesmo sem um desfecho brilhante vi a necessidade de escrever, tentando dizer que (difícil por em palavras)… que eu sei que não sou a única. Senti necessidade de dizer que não criem esse complexo como o meu, e que nosso corpo preto é mais do que parece. Senti necessidade de dizer que nosso corpo com essas formas contam histórias.

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