Cassiano Ricardo Haag*, Pragmatismo Político
Assim que saiu a divulgação dos resultados do ENEM, a mídia tratou de gritar aos quatros cantos que, dentre os 6,2 milhões de candidatos que realizaram a prova, em torno de 529 mil obtiveram nota zero. Evidentemente, como sempre, o resultado, por muitos, foi atribuído à suposta má qualidade da escola pública brasileira, assim como ao suposto despreparo dos professores. Como professor de Língua Portuguesa, estudei o processo de avaliação do ENEM – diferentemente dos jornalistas que cobrem o assunto – e vou tentar trazer um pouco de lucidez a essa questão.
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1. Tirar nota zero não é sinônimo de não saber escrever. Nota zero é decorrência de, por algum motivo, o candidato descumprir a proposta. Eis os motivos para nota zero no caso do ENEM:
a) Fuga ao tema: esse foi o principal motivo do meio milhão de zeros. O tema era “A PUBLICIDADE INFANTIL EM QUESTÃO NO BRASIL”, portanto, não adiantaria fazer um excelente texto sobre o trabalho infantil, sobre a pedofilia ou sobre a violência contra a criança. Por mais bem escrito que estivesse, seria nota zero.
b) Escrever outro gênero textual que não fosse uma redação dissertativo-argumentativa: se o candidato fosse um poeta, por exemplo, e escrevesse um poema belíssimo sobre o assunto, uma verdadeira obra de arte, mesmo assim, receberia nota zero, pois só podem ser avaliadas redações dissertativo-argumentativas, ou seja, um texto que apresente e defenda um ponto de vista sobre o tema proposto, por meio de argumentos, com uma estrutura formada por proposição, argumentação e conclusão. É muito comum o candidato escrever um texto eminentemente narrativo, o que o elimina do processo, independentemente da qualidade da narração.
c) Texto insuficiente: o ENEM ainda aceita textos curtos, a partir de 8 linhas (acredito que, no futuro, isso mude!). Ainda assim, alguns candidatos escrevem menos que isso e são eliminados, independentemente da qualidade da escrita. Isso se deve – ao contrário do que alguns podem pensar – não meramente à incompetência do candidato, mas ao nervosismo ou ao mau planejamento do tempo (é uma péssima ideia deixar a redação para o final!), embora também à pouca qualificação do candidato em alguns casos.
d) Cópia do texto motivador: alguns candidatos, por má intenção (ou ingenuidade mesmo), utilizam cópias dos textos motivadores na redação, o que os desclassifica do processo, mesmo que as partes não copiadas estejam bem escritas. Quando isso ocorre, não é possível medir se o candidato sabe ou não escrever, bem ou mal, pois o texto apresentado não é dele. O erro não foi de conhecimento, mas de conduta.
e) Fere direitos humanos: o ENEM não aceita candidatos que escrevam contra os direitos humanos, mesmo que quase toda a redação seja de excelente nível, totalmente bem escrita. Por exemplo, se, em determinado momento, o candidato escreve que, por algum motivo, alguém deva ser punido com algum tipo de tortura ou pena de morte, a redação será zerada.
f) Parte desconectada: em razão das ocorrências com a redação que falava da receita de miojo, do hino de sei lá que time, etc., ocorridas no ano passado, houve esse acréscimo nas situações que levam à nota zero no ENEM. Essa regra é razoavelmente nova, pois quase nenhum vestibular considerava isso, já que todos os processos de seleção partem do princípio da boa-fé do candidato. Esse princípio precisou ser rompido não pela desqualificação do ENEM, mas pela má-fé de alguns pouquíssimos candidatos. Muitas vezes, o estudante sai do assunto por “se perder” no texto, sem necessariamente ter desejado ridicularizar a prova. Por isso, não era necessário excluí-lo do processo. Agora é. Neste ano, novamente, houve muitos casos de engraçadinhos. Foram excluídos 3.362. Como sempre estamos sujeitos a erro humano (ou mesmo, na ingenuidade, o avaliador deliberadamente desconsidera a parte desconectada, pois acha que não tenha sido por mal), este ano, vi que um moleque, que queria muito aparecer, escapou do zero injustamente. Podem ainda aparecer outros casos. No entanto, a grande maioria foi punida, sem dúvidas.
g) Outros motivos: sempre por vontade do candidato em ser desclassificado, por exemplo, fazer um desenho no lugar de uma redação.
Portanto, como dito acima, nota zero NÃO está relacionada à qualidade do ensino. Quando o sujeito tira nota zero, não é possível saber se ele aprendeu ou não algo na escola. Muitas vezes, dá para imaginar que ele não aprendeu nada na vida, pois tenta desqualificar um processo sério apenas para aparecer na mídia.
2. Por outro lado, podemos medir a qualidade dos candidatos a partir das notas obtidas. Neste ano, 4.438.176 obtiveram notas até 600 pontos na redação do ENEM, enquanto 1.226.014 alcançaram entre 601 e 1000 pontos. Esses são números a serem considerados para ver que o brasileiro precisa se qualificar muito ainda no que se refere à produção escrita. Todavia, é absurdo (com todo o respeito a quem pensa assim) atribuir essa nota à escola pública. Primeiro, porque esses números não separam ainda quem fez escola pública, quem fez escola privada, quem estava há anos sem estudar ou mesmo quem ainda não concluiu o Ensino Médio. Segundo, porque não se está levando em conta quem realmente se importou de estudar para a prova daqueles que sequer tenham buscado qualquer informação a respeito da redação do ENEM. Por exemplo, o ENEM considera como uma das cinco competências avaliadas a elaboração de uma proposta de intervenção para o problema levantado no tema, o que não costuma ser exigido em outros vestibulares tradicionais. Se o candidato não sabe disso, mesmo que a redação esteja boa, já inicia perdendo 200 pontos de sua nota, ou seja, passa a concorrer a apenas 800 pontos, dos quais serão feitos outros descontos necessários. Portanto, facilmente, estará abaixo de 600 pontos no final da avaliação.
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3. Por fim, a mídia está desviando o real motivo de a maioria dos candidatos que receberam a nota zero: o tema. O problema é que o tema deste ano mexeu em um dos calcanhares de Aquiles dos poderosos da mídia: a reflexão sobre a publicidade infantil no Brasil. O tema é pouco discutido na sociedade, pois quem promove os espaços midiáticos de debate tem sistematicamente silenciado sobre esse assunto. O ENEM acertou na escolha do tema, mas, mesmo assim, a mídia não coloca isso em discussão e prefere acusar nosso sistema de ensino. Por que será? Bem, isso eu prefiro deixar para os comentários de quem teve paciência de ler até aqui.
*Cassiano Ricardo Haag é professor de Língua Portuguesa, doutorando em Linguística Aplicada pela UNISINOS e colaborou para Pragmatismo Político.
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