O ódio é proporcional ao feito de redução das desigualdades, mas também aos problemas da relação entre o Estado e o capitalismo nesses países.
Do sucesso aos riscos de derrota dos governos de esquerda. O que há de comum entre Brasil, Argentina, Venezuela, Bolívia e Equador? Entre as inúmeras coincidências, a primeira é que eles são governados por partidos de esquerda.
Segunda coincidência: seus governos têm demonstrado uma inédita longevidade, a maioria com mais de uma década.
Terceira coincidência: seus governos são duramente atacados e constantemente fustigados por oposições agressivas e tentativas golpistas. Em todas essas situações, a mídia tradicional releva-se o principal ou um dos principais partidos golpistas.
Quarta intrigante coincidência: esses países estão entre os que mais reduziram a desigualdade na América Latina, diminuindo a proporção e o contingente de pobres e miseráveis.
Na década de 1990, a América Latina permaneceu estagnada política, econômica e socialmente. Naquela década, os governos neoliberais que sucederam os ditadores, em muitos países do continente, mantiveram a desigualdade de renda nos níveis deixados pela década perdida, os anos 1980, período final das ditaduras, quando a situação social chegou ao fundo do poço.
A partir da década de 2000, uma leva de governos de esquerda chegou ao poder como resultado de um longo processo de acumulação de forças, iniciado primeiro na luta contra as ditaduras e, depois, impulsionado pelo desgaste de governos neoliberais corruptos, incompetentes e de péssimos resultados econômicos (baixo crescimento, desemprego elevado) e sociais (aumento da pobreza).
Os governos de esquerda que sucederam os neoliberais demonstraram fôlego razoável por pelo menos uma década.
Hugo Chávez, que tomou posse em 1999 e governou até 2013, reagiu e sobreviveu a um golpe ainda em 2002, mas atravessou sua primeira crise generalizada em 2009.
O preço do petróleo chegou a menos de US$ 50 e houve problemas sérios no abastecimento de água e de energia elétrica. A popularidade do governo despencou, setores do governo o abandonaram, acusações de corrupção vieram à tona, a oposição fortaleceu-se e radicalizou-se mais amplamente.
No Brasil, uma década separou a posse de Lula, em janeiro de 2003, das manifestações de junho de 2013. O presidente foi ameaçado com a crise política instalada em 2005, a partir das acusações sobre o financiamento de campanha do chamado mensalão. Superou a crise, reelegeu-se e fez sua sucessora, Dilma Rousseff.
Mas a revolta de 2013, embora não dirigida inicialmente de forma direta contra a presidenta e seu partido, acabou sendo paulatinamente reorientada, com um grande esforço da mídia, para que seu governo e seu partido se tornassem o alvo prioritário e passassem a ser ainda mais estigmatizados do que já tinham sido no passado.
Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007 até hoje) também viveram temporalidades críticas coincidentes ao período de uma década e um processo de destruição midiática muito parecido.
Veremos como Evo Morales (presidente desde 2006) e Rafael Correa (empossado em 2007) se sairão quando as maldições de uma década de governo começarem de fato a bater às portas de seus governos.
Projetos cristalizados são ameaçados
A longevidade de uma década, pelo menos, levou a que esses projetos de esquerda se cristalizassem como uma referência política própria, muito associada ao modelo de governança de seus presidentes e às políticas públicas empreendidas.
Com isso, passou-se a falar em chavismo, lulismo e kirchenismo. Idem para Evo Morales e Rafael Correa, cujas presidências passaram a ser vistas, e de fato são, como o início de um novo projeto político e de gestão de políticas públicas.
O que parece comum a todos esses governos e que merece uma reflexão aprofundada é em que medida eles apresentam, além de um novo padrão, cada qual a seu modo, um comportamento cíclico comum – ascensão, sobrevida, crise e ameaças constantes de derrota ou mesmo queda.
Em torno desses ciclos comuns, pode haver elementos explicativos importantes de serem apreendidos pela esquerda latinoamericana. Algo que pode ser relevante a seu aprendizado comum, um elemento decisivo à sua sobrevivência política e um passo crucial para a sua reinvenção.
De comum, esses foram governos de inversão de prioridades, com a elevação dos gastos em políticas públicas diretamente incidentes no combate à pobreza e redução da miséria.
A rápida melhoria nos indicadores de desigualdade mostrou como é relativamente barato para o Estado reduzir desigualdades sem mexer no padrão econômico dominante dessas sociedades. No entanto, mais cedo ou mais tarde, não mexer no padrão econômico dominante dessas sociedades se torna um grande problema.
De 2003 até a crise de 2008, a América Latina teve um bom período de crescimento econômico. Mais exuberante, porém, foi a tendência de diminuição da concentração de renda e, consequentemente, redução da desigualdade nos países governados pela esquerda.
Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), o índice de Gini na região caiu cerca de 5% em relação ao patamar de 2002. Argentina, Bolívia e Venezuela lideraram uma redução de 10% na desigualdade. Brasil e Equador chegaram a reduzir o Gini em cerca de 7%.
Depois dessa importante redução na desigualdade, ocorre agora um estancamento. Manter as políticas sociais já não garante avanços tão rápidos e significativos quanto no passado.
Para seguirem adiante, esses governos deveriam gastar mais e melhor com políticas sociais, reduzindo a prioridade dada aos setores mais ricos – que ocorre seja pelo pagamento de juros, seja pelas desonerações de impostos, seja pela estrutura tributária regressiva, seja pelas práticas de privilégio econômico, algumas delas eivadas de corrupção.
Os gastos sociais puderam até manter uma trajetória crescente, sem incomodar os ricos, quando os governos de esquerda puderam sustentar taxas de crescimento elevadas e inflação baixa, lembrando que a inflação é um dos grandes impostos que pesam contra os mais pobres.
Porém, qualquer desarranjo nesses fatores afeta a equação montada e leva os presidentes ao risco de desgaste, ameaçando inclusive a continuidade de seus mandatos.
Por isso, os que enfrentam crises mais agudas são ainda mais estigmatizados. Dilma, mais do que Lula; Cristina Kirchner, mais do que seu marido, Néstor; Nicolás Maduro, mais do que Chávez.
Ódio dos ricos e de parte da classe média cresceu: por quê?
Governos de esquerda, ao reduzir a desigualdade, mexem com interesses dos ricos e da classe média. Mesmo que não os ameacem, os incomodam.
No Brasil, em uma década (2001-2011, sobretudo a partir de 2003), enquanto a renda per capita dos 10% mais ricos subiu 16,6%, a renda dos mais pobres elevou-se em 91,2% – conforme dados da PNAD analisados pelo IPEA.
Os ricos ganham, mas enervam-se com o fato de que os pobres passem a ter ganhos de renda superiores aos seus devido ao fato de que, com a renda mais alta e desemprego em baixa, o custo da mão de obra se eleva.
Se a renda dessa faixa de pessoas mais pobres cresceu 550% mais rápido que a dos 10% mais ricos, o ódio dos mais ricos contra os governos que fizeram isso acontecer também cresceu nessa mesma proporção. Há 550% mais ódio contra os partidos de esquerda e seus governantes.
O ódio cresceu na medida em que esses projetos se cristalizaram, fomentados politicamente por um conjunto de políticas que conquistou a adesão justamente dos setores mais pobres.
A classe média tornou-se o maior contingente de inconformados. Como os governos de esquerda não mexem ou mexem muito pouco com os ricos, é principalmente sobre a classe média que recaem os custos maiores das políticas de benefícios sociais aos mais pobres.
A classe média foi penalizada com impostos mais altos que bancam uma grande proporção dos gastos dos governos. Embora os gastos maiores do Estado seja com os mais ricos, são os programas sociais para as camadas de mais baixa renda que mais irritam a classe média.
Essa classe média se sente passada para trás quando recorda que tinha custos bem mais baixos, por exemplo, com a mão de obra de serviços domésticos, e uma situação de servilhismo dos pobres em relação a ela. Mesmo que não fosse rica, a classe média vivia em uma condição social distinta em que parecia fazer parte do mundo dos ricos, mesmo que em menor escala.
O castelo de ilusões da classe média tradicional ruiu. Está ocupado por uma legião de pessoas que passam a ter bens de consumo e a frequentar espaços públicos em condições similares – ou quase.
O mercado de trabalho está habitado cada vez mais por pessoas que ameaçam a classe média tradicional por estarem brigando, quase que em pé de igualdade, pelo mesmo ambiente rarefeito.
A revolta da classe média é que isso tornou-se possível com o patrocínio de seu dinheiro, usado pelos governos de esquerda em benefício dos mais pobres. Por isso, a radicalização direitista de uma parte dessa classe se volta contra esses governos, e não contra partidos de direita.
Para esse setor da classe média, a ameaça que sofre não vem dos ricos, e sim dos pobres. Eles lhes causam asco, indignação e um sentimento de ódio pela perda da noção de superioridade, na medida em que os pobres que ascenderam já nem acreditam mais nisso.
Essa parcela da classe média, ainda minoritária, mas crescente, aprecia o elitismo radical embalado pelo liberalismo autoritário.
A corrupção “de esquerda”: uma aliança política que precisa ser rompida
A corrupção não é apenas comportamento individual. É e sempre foi parte do processo de competição econômica e política em um sistema capitalista.
Desde os barões ladrões da “era dourada” (“Gilded Age”), nos Estados Unidos, século XIX, ao Brasil das privatizações e das empreiteiras, a corrupção é parte do jogo de cartelização capitalista.
Os interesses do capital necessitam de recursos públicos e, ainda mais importante, precisam interferir na regulação estatal, mudando ou mantendo as regras do jogo em seu benefício.
A maneira como isso afeta governos de esquerda precisa ser analisada do ponto de vista político.
Alguns processos corruptivos, seja na América Latina, seja os que estiveram associados ao domínio do Congresso Nacional Africano (o CNA de Nelson Mandela, na África do Sul) têm em comum o fato de representarem uma tática que alguns governos de esquerda usaram para romper o cerco em relação a setores mais ricos – associando-se a alguns deles mais intimamente.
Ao manter relações privilegiadas com esses setores, buscaram não só torná-los sócios majoritários de um projeto político, mas também, no longo prazo, fortalecê-los no interior da classe capitalista.
A ação é, portanto, ao mesmo tempo pragmática e programática. Os setores escolhidos são, em geral, centrais para os eixos tradicionais de desenvolvimento do país. São também grupos econômicos que eram sócios igualmente tradicionais de partidos de direita.
Mas a aproximação de governos de esquerda e tais grupos tende a reforçar a configuração cartelizada ou mesmo monopolista em muitos desses setores.
Como mexer com esse jogo de interesses envolve entrar por meandros nem sempre abertos e institucionalizados, envereda-se por meio de práticas à margem ou contra a lei. Em uma palavra: quem se aventura por esse caminho cai na corrupção.
Além de patrocinar o superenriquecimento de alguns setores, os partidos, sejam de esquerda ou direita, buscam reforçar-se política e financeiramente na disputa de poder.
O jogo é o mesmo, seja ele feito pela direita ou pela esquerda. A diferença é que os cartéis midiáticos e os órgãos judiciais dão tratamento diferenciado aos casos que envolvem governos de esquerda.
O desvendamento dos casos de corrupção em governos de esquerda unificam, sob uma mesma bandeira, os que querem derrotar esses governos e punir exemplarmente todos os que traíram sua classe, pois aliaram-se àqueles que deveriam ser combatidos sem trégua.
A corrupção fornece o elã para que ricos e parte da classe média tradicional disputem os votos dos pobres com um ódio feito sob medida para estigmatizar, cirurgicamente, apenas os governos de esquerda e seus aliados de ocasião, e não as práticas corruptivas em si.
As denúncias de corrupção feitas pela grande mídia, ela própria um setor capitalista cartelizado e com interesses claros nas disputas políticas e econômicas em curso, vêm claramente desacompanhadas de uma denúncia sobre a permanência da corrupção ao longo do tempo.
Jamais se demonstra a conclusão óbvia de que a corrupção é parceira, de longa data, das práticas capitalistas mais usuais, em sua relação com a política e com o Estado. Salvo em países onde a democracia é forte o bastante para torná-la impossível de não estar exposta.
Os pobres reagem ceticamente em relação a esses apelos com a percepção de que, na verdade, são todos iguais, e a diferença está apenas nos resultados que cada governo oferece. A natureza corrupta do jogo de interesses no poder os iguala. As políticas e seus resultados é que os diferenciam.
Aliás, os mais pobres são os únicos que costumam ter uma posição mais realista e menos hipócrita, embora conformista, sobre o jogo sujo da corrupção entre políticos e grandes capitalistas.
O fato é que os governos de esquerda, quando repetem tais práticas, desmoralizam-se politicamente. Não apenas pelos escâdalos, mas quando demonstram que vieram para mudar algumas coisas, mas se mostram incapazes de alterar o essencial nas relações entre Estado e capitalismo.
Continuam com algum crédito e fôlego para se livrar de tentativas golpistas apenas enquanto suas políticas demonstram capacidade de entregar resultados palpáveis, efetivos.
Por sua vez, em momentos de estagnação, elevam-se as chances de adesão aos apelos do golpismo e aumentam as pressões para que os judiciários e legislativos promovam golpes de espada e cortem cabeças.
Conclusão: um modelo que precisa ser mudado
Os governos de esquerda produziram inúmeros e importantes avanços, mas encontram-se fortemente ameaçados.
Depois de uma década, as acusações de que “o modelo esgotou-se” tornam-se comuns.
A pobreza diminuiu significativamente, em grande medida, graças aos programas de transferência de renda, que hoje cobrem 17% da população da América Latina e Caribe (dados da Cepal).
Ao mesmo tempo, os percentuais e os contingentes de pobres ainda são absurdamente altos – quase 170 milhões de pessoas pobres e mais de 70 milhões na pobreza extrema.
Os governos de esquerda precisam fazer os países voltarem a crescer, mas se limitarem a isso seu horizonte estarão afundados na mediocridade e indiferenciados dos partidos de direita.
Deveriam concentrar suas escolhas de crescimento não em setores tradicionais e em poucos grupos econômicos privilegiados, mas em novos setores econômicos dinâmicos, inovadores, e em arranjos produtivos que fortaleçam a economia familiar, as pequenas e médias empresas.
Dariam uma boa sinalização de mudança a uma parcela da classe média que normalmente detesta a esquerda – e com grande parcela de razão, quando são esquecidos por ela.
Os governos de esquerda deveriam dedicar parte importante de seu trabalho de regulação a descartelizar setores que aboliram a competição, deixaram pequenas e médias empresas à míngua e se tornaram grandes demais para falir.
Isso vale para os grupos de mídia, mas também deveria valer para empreiteiras, para os fornecedores do serviço público, os grupos de telefonia, os planos de saúde e tantos outros.
Novos e significativos avanços demandariam uma expansão das políticas de bem-estar social e investimentos muito maiores em educação, saúde, previdência e assistência do que são possíveis diante do atual modelo da maioria desses países, baseado em gastos altíssimos com o sistema financeiro, uma intocável concentração das atividades econômicas e em profunda injustiça tributária.
A necessária e utópica mudança de modelo passaria por romper os laços promíscuos com setores econômicos dominantes, raiz das práticas de corrupção que põem em xeque todo o patrimônio de lutas sociais que deram origem a muitos dos partidos, dos movimentos e das pessoas que hoje governam esses países.
Com a ascensão de setores pobres ao patamar de classe média, uma nova geração de eleitores desgarrou-se da esquerda e já vota contra ela, contrariando justamente quem foi responsável por sua ascensão.
Mobilidade social resulta também em mobilidade política, o que impactará decisivamente a eleição dos futuros presidentes. Os mais pobres ainda são muitos, mas cada vez dividem seu peso em eleições com setores de uma classe média não tradicional.
A esquerda só terá alguma chance eleitoral se reforçar o sentido social de seu projeto. Para tanto, precisa cumprir o papel de formar uma aliança dos setores mais pobres com a classe média em um modelo em que ambos avaliem que ainda vale a pena estarem juntos e governados por partidos progressistas.
Do contrário, a América Latina poderá, dentro em breve, ser novamente governada por partidos elitistas, excludentes, corruptos e que só serão novamente derrotados depois de imporem ao continente toda uma nova década de atraso, com a economia ainda mais concentrada e a pobreza retrocedendo a patamares alarmantes.
Nessa hora, porém, as alternativas podem já não ser mais tão promissoras se a esquerda, linchada, estiver com todas as suas cabeças cortadas e penduradas em praça pública.
Antonio Lassance, Carta Maior
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