Racismo? Onde?
Pedro se arrumava para o trabalho e Clara ainda tentava dormir, mesmo com todo o barulho que ele fazia, entre por sapato, tomar o café e correr pelo quarto procurando uma gravata (...)
Pedro se arrumava para o trabalho e Clara ainda tentava dormir, mesmo com todo o barulho que ele fazia, entre por sapato, tomar o café e correr pelo quarto procurando uma gravata. Ops, precisamos fazer a apresentação.
Clara e Pedro: um jovem casal que divide um apê na grande São Paulo – ambos brancos de classe média alta. Clara Lima ainda está na universidade cursando Ciências Sociais e Pedro Gonzales trabalhava no escritório de Arquitetura do seu pai. A rotina deles era até que bem agitada, adoravam noites e mais noites de boemia na Augusta, festas underground e, ultimamente, estavam indo bastante em manifestações. Sentiam-se mais engajados, precisavam lutar.
“A violência só aumenta”, o jornal da manhã trazia essa manchete. Pedro, enquanto lia em voz alta, escutava Clara reclamando lá do quarto. Ele adorava incomodar a namorada, por isso sempre respondia as insatisfações com: “Hoje é dia de branco, amor”.
O que chegava a ser irônico: um trabalhava na empresa da família e sempre chegava depois das 10h, a outra nunca tinha feito nem a própria cama. Mas voltando a nossa estória…
Pedro saiu e Clara ficou esperando a empregada chegar enquanto ela tomava o café da manhã. Pelo menos duas vezes por semana uma senhora, dona Joana, ia limpar o apartamento do casal. Clara costumava dizer até que ela era quase da família, mesmo que o quase na frase deixe explícito que não ela não era; e por isso nem merece entrar pela porta principal, só pela Porta de Serviços, como a jovem dona de casa sempre exigiu. Dona Joana era uma senhora negra de uns 57 anos, que tinha uma neta bolsista no mesmo curso de Clara, o nome dela é Stela. Clara não curte muito essa moça, ela tem ciúmes de Pedro e acredita que aquela moreninha dá em cima de tudo quanto é homem (além de ser uma pretinha metida a inteligente). Só de pensar na garota, Clara perdia a fome.
Clara lia suas revistas e Joana limpava tudo. Era um dia comum, tirando o fato de que hoje a jovem iria almoçar com sua mãe, então não teria como fiscalizar a faxina de Joana. Por isso, apenas gritou: “Não desperdice os produtos de limpeza, a coisa está preta”. Enquanto entrava no elevador e a empregada fechava a porta, Clara pensava “como é difícil confiar em pobre, sempre podia sumir algo”. Além do mais, tinha certeza de que Joana sempre saía mais cedo do trabalho quando ela não estava lá para vigiar. Afinal, o ditado popular já dizia: “Preto parado é suspeito, correndo é ladrão“.
Pedro tinha chegado ao prédio do escritório, contudo o porteiro não estava na portaria, o que o deixou bem bravo. Estava cansado de todo aquele descaso, serviço de preto. Nesse momento ele riu, lembrou que o Tião da portaria era negro, quase tição, então começou a gritar no interfone: “Tião Tição, abre esse portão!”.
Já em sua sala, Pedro foi informado pela secretária que seu pai havia olhado um projeto que era sua responsabilidade e encontrou alguns erros. Pedro ficou enfurecido, o moço tinha pedido para estagiária fazer seu trabalho e ela fez errado. Impressionante que a moreninha jambo fosse tão incompetente, “preto é uma merda, quando não caga na entrada, borra na saída”, ele pensou.
Nisso lembrou-se de um cara da sua turma, João, aquele sim era um cara legal, era negro, mas tinha a alma branca, não era desses que ficavam reclamando de tudo, só falando de racismo. Além disso, era amigo de balada, pegador. Pedro sempre achou que o amigo tinha privilégios porque, afinal, fama de pauzudo ajuda muito na hora de pegar mulher. Enquanto o moço lembrava dos velhos tempos, a estagiária chegou em sua sala. Pedro deu uma bronca nela, mas, claro, com jeitinho. Era da cor do pecado a mulata gostosa, mulher para fuder devia ser quente. Se fazia de difícil, mas Pedro sabia que ela queria. “Essas mulheres são todas iguais“, ele pensava enquanto a moça prestava atenção nos erros e tentava corrigi-los, desesperada.
Clara almoçou, mas, infelizmente, não o tanto que queria. Afinal, a filha da empregada estava na cozinha, tinha uns dois anos a menina. A mãe não conseguiu deixar na creche, levou para o trabalho e ela não parava de chorar. Era uma mulatinha manhosa, a mãe era branca. Uma vez a mãe de Clara até disse: “Ê, tristeza, essa mulher tem a barriga suja”. “Branca com filha escura só podia ser desgraça, macumba, magia negra“, refletia Clara, que tinha até pena.
Depois do almoço, Clara foi à faculdade. Enquanto andava, percebeu uns homens olhando para ela, ficou brava e gritou: “Não sou tuas nêga”. Que raiva ela tinha dessas cantadas de pedreiro. Chegou à facul atrasada e furiosa. Deu de cara com Stela, a netinha da sua empregada, que estava apresentando um seminário sobre racismo. Clara estava achando tudo um saco, o único intuito da vida de Stela era esse “mimimi”.
Por isso resolveu fazer uma pergunta, só para provocar a neguinha metida a intelectual: “Stela, você não acha que só pensa em denegrir os brancos? E o racismo com brancos? Acho que você é racista!?”.
Stela a ignorou. No entanto, Clara, inconformada, gritou: “Ô, cabelo duro, é com você mesmo. Responde, morenina fedida!”.
Nisso, Stela apenas a acusou de racismo, o que a deixou mais raivosa. Clara estava cansada daqueles criolos todos na universidade. “Depois das cotas tudo piorou.”
Enfim, essa história acabou na delegacia. Enganam-se as pessoas que acham que o mundo é justo. Clara fez uma denúncia em relação à Stela por calúnia e difamação. Ela não aceitava ser chamada de racista, ela não era racista, tinha até amigos negros e um parente distante era negro, como assim racista? Ela até tinha chorado em “12 anos de Escravidão“! Era tudo, menos racista!
Pedro estava enfurecido com a situação, ia perder o jogo do Grêmio, seu time do coração e achava que Clara tinha uma inveja branca de Stela. Mas depois do que aconteceu só sentia raiva. “Preta metida, nega maluca”, pensou. E disse à namorada, tentando acalmá-la: “Mereciam ser fichados esse neguinhos que entram na universidade e ficam se achando. Tudo culpa dessa merda de cotas, só entra gente burra e que não se esforça, sem mérito, querem tudo fácil”.
Sábio era seu avô que dizia: “Preto só faz negrice, para ser um macaco só falta o rabo“.
Riu, porque no fundo sabia que a bandida ia pagar por isso. O lado ruim era que suas chances de comer a moreninha exótica tinham diminuído. Então, acendeu um cigarro enquanto observava a sua mulher gritando que queria demitir a empregada, que queria justiça e que o Brasil era uma merda.
Stephanie Ribeiro, Festival Marginal
NOTA: Esse texto é uma ironia, eu nunca escreveria algo assim como sendo positivo. O intuito é denunciar. Eu sou mulher negra, pobre e cotista. Já escutei e passei por algumas situações que estão relatadas. Eu sou fruto de mais de 300 anos de escravidão, eu carrego comigo cicatrizes do meu povo para sempre e eu uso as palavras para me indignar e chibatar a realidade racista na face de muita gente que diz: “Não, não sou racista”. Mas vai ler esse texto e se identificar com muito dos usos de expressões, palavras e atitudes racistas aqui citados.
Eu só tenho uma certeza: esse texto é coisa de mulher preta para gente branca.