Decisão da Justiça autorizou deportação de Cesare Battisti nesta semana, contrariando a decisão do governo brasileiro que reconhece a perseguição política pela Itália. Entenda porque o escritor e ativista foi considerado um refugiado político pelo Brasil
Cinco anos depois de o escritor e ativista Cesare Battisti ter obtido status de refugiado político após decisão do presidente Lula, a juíza federal de Brasília Adverci Rates Mendes de Abreu determinou nesta semana que ele seja deportado para a Itália.
Para entender o caso Battisti, é preciso compreender o período histórico em que ele atuou politicamente e o porquê das suas condenações.
Segundo advogada Marcela Moreira Lopez, diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a decisão deve ser revista. “O fato é que temos uma decisão de instância superior sobre o tema, e ela [a juíza] está se imiscuindo em uma decisão do presidente e do Supremo“.
O caso do asilo político de Battisti gerou muita polêmica em 2010. Setores conservadores do Brasil e Itália, com auxílio dos meios de comunicação, não demoraram para taxá-lo de terrorista e assassino, sem ao menos conhecer sua história.
A Itália dos anos 1970, época em que Battisti atuou politicamente, tinha grande efervescência política. Movimentos sociais, como o estudantil e o operário, reivindicavam direitos cíveis – entre os quais a legalização do divórcio e do aborto.
Segundo o Doutor em História Social e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Giuseppe Cocco, “a Itália nesta época não era ‘de chumbo’, pelo contrário, os anos 70 foram uma época de conquistas sociais revolucionárias. Esses anos foram ‘chumbados’ porque o Estado organizou uma série de atentados para criar um clima de terror e reprimir os grupos de esquerda. Cocco explica que a luta armada, por parte da esquerda, respondia a essas provocações; foi uma década libertária dentro da qual ocorreram lutas armadas contra o fascismo”.
O professor lembra que essas lutas armadas ocorreram por conta do “compromisso histórico” firmado entre o Partido Comunista Italiano (PCI) e a Democracia Cristã (partido de direita com maioria no governo). De acordo com ele, isso fez com que o PCI deixasse de lado o seu caráter inovador e adotasse uma posição extremamente contrária aos movimentos sociais, que encararam esse compromisso como uma traição do partido.
Para o jornalista e organizador do Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti, Celso Lungaretti, “a traição do PCI colocou os movimentos numa situação de desespero e excessos, levando-os a atitudes como o sequestro e assassinato [em 1978] do primeiro-ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas [o principal grupo armado de extrema esquerda]”.
O assassinato de Moro, por sua vez, levou a uma forte repressão dos movimentos sociais, e, com a desculpa de “combater o terrorismo”, são criadas leis de exceção, que retiravam direitos da população e permitiam que se prendessem pessoas preventivamente por até dez anos e oito meses com base apenas em hipóteses e sem a necessidade de provas concretas; além de permitir tortura e legitimar a delação premiada.
Battisti conta sua história no livro “Minha fuga sem fim”. Ele conta que entrou para o grupo de resistência Proletários Armados pelo o Comunismo (PAC) em 1976, permanecendo nele até o final de 1978.
O PAC, fundado pelo militante Pietro Mutti, nunca teve uma organização centralizada, de forma que qualquer pessoa ou grupo pudesse cometer atentados e atribuir a autoria dos delitos a este grupo. Após o sequestro e assassinato de Moro, o grupo decide abandonar a luta armada, adotando a máxima: “Sim à defesa armada, não aos atentados que acarretassem morte humana”.
Entretanto, a maneira estrutural do PAC fez com que essa filosofia não fosse realmente seguida, e atentados continuaram a ser realizados carregando o nome do grupo.
Battisti tenta convencer Mutti a dissolver o PAC. Sem sucesso, ele resolve, então, se desligar do grupo, vivendo clandestinamente na Itália.
“Juntamente com parte dos militantes da primeira hora, naquele momento decidi virar a página e renunciar definitivamente à luta armada. Não queríamos apenas deixar o grupo, queríamos também lhe dar um fim. Começaram, então, os problemas com meu antigo companheiro Pietro Mutti”, relatou Battisti.
Ele é preso em 1979 e levado para uma penitenciária de segurança máxima, sob a acusação de “subversão contra a ordem do estado”. Após dois anos, seu processo foi revisto e ele transferido para uma prisão comum, onde conseguiu escapar graças à ajuda de Mutti.
Sobre o tempo na cadeia, ele conta que “a cada dia prisioneiros desapareciam sem razão, para retornar após meses, embrutecidos e mudos, ou não retornavam. Tomei consciência de que as leis não seriam nunca normais para nós. Por causa disso, e apenas por isso, tomei a decisão de fugir”. E Battisti foge, então, para o México em 1982, mesmo ano em que Mutti foi preso pela polícia italiana.
Mutti, preso, denuncia diversos militantes e mesmo pessoas que não tinham ligação alguma com a luta armada, fazendo uso de uma das leis de emergência criadas: a “Lei dos Arrependidos”, que beneficiava presos políticos com redução de suas penas caso denunciassem pessoas que fizessem parte de grupos de resistência. Mutti foi um dos principais “arrependidos” do período, tendo sua prisão perpétua reduzida a nove anos.
Entre as diversas denúncias feitas por ele, estão os quatro homicídios de que Battisti é acusado: em 6 de Junho de 1978, o assassinato de Antonio Santoro, em Undine; em 19 de Fevereiro de 1979, o duplo assassinato de Pierluigi Torregiani e Lino Sabbadin, em Milão e Mestre (cidades à aproximadamente 500 quilômetros de distância uma da outra), respectivamente; e em 19 de Abril de 1979, o assassinato de Andrea Campagna, em Milão.
Somente após essas acusações, que não se baseiam em nenhuma prova concreta, Battisti é condenado à prisão perpétua e é visto, pelo Estado Italiano, como assassino.
Em 1990, Battisti vai à França, onde a Doutrina Mitterrand, criada pelo presidente François Mitterand, assegurava proteção política aos militantes que largaram as armas. Ele vive em Paris, trabalhando como zelador do prédio em que mora e também como escritor de livros policiais, que denunciavam a Itália repressora.
A Itália pede que Battisti seja extraditado, e após catorze anos vivendo na França, ele é preso. Para tornar o processo de extradição legal, o presidente francês na época, Jacques Chirac, revê a Doutrina Mitterrand. Battisti é solto após três semanas, pois, em um primeiro momento, tanto a mídia francesa quanto a opinião pública estavam do seu lado e consideravam sua prisão como “uma afronta ao Estado de Direito Francês”.
Logo depois de ser solto, no entanto, a mídia francesa muda completamente sua opinião em relação ao caso. Battisti se torna um “monstro” que deveria pagar pelo que fez. O tribunal francês decide então por sua extradição, e ele foge para o Brasil. Se Battisti fosse extraditado, ele seria preso apenas pelas acusações de Mutti.
Ele não teve direito a um julgamento justo, no qual pudesse se defender de maneira legítima, mostrando sua versão dos fatos.
Como afirma o filósofo francês Bernard-Henri Lévy, no prefácio da autobiografia de Battisti, “defendo tão-somente um processo imparcial, desapaixonado, conforme aos princípios do direito europeu e do bom senso – defendo, e este é o sentido deste prefácio, que se assegure a Cesare Battisti o direito de confrontar, pessoalmente, o seu passado e o seu destino”.
Briga diplomática
Além da polêmica interna, o caso Battisti abalou relações diplomáticas entre Brasil e Itália, uma vez que a decisão brasileira não foi respeitada pelas autoridades italianas, que ameaçaram até cancelar um jogo amistoso entre as seleções de futebol dos dois países.
O deputado italiano Ettore Pirovano, do partido de direita Liga Norte, declarou ironicamente que “não me parece que o Brasil seja conhecido por seus juristas, mas sim por suas dançarinas. Portanto, antes de pretender nos dar lições de Direito, o ministro da Justiça faria bem se pensasse nisso não uma, mas mil vezes”.
Lungaretti, do Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti, diz não se surpreender com essa posição da Itália. “Sempre teve essa visão arrogante do mundo. Reconhecem as grandes potências, mas o resto é periferia. Tanto que há realmente essa visão preconceituosa sobre o Terceiro Mundo”, afirma.
A pergunta que Battisti faz a todo o momento em seu livro é “por que eu”? Não se sabe ao certo os motivos que a Itália tem para exigir sua extradição a ponto de abalar as relações com o Brasil. Para Lungaretti, “a Itália não fez as pazes com seu passado, e Battisti representa esse passado. Ele é um homem perseguido por suas ideias”.
E, mesmo após receber asilo político do governo brasileiro, esta perseguição continua.
José Coutinho Júnior, Brasil de Fato
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook