“Era uma raiva que beirava uma histeria coletiva. Aquilo me deu medo”
“Eu via muita raiva ali, mas era uma coisa diferente de tudo que já havia visto na minha vida. Foi um choque, uma verdadeira tensão emocional”. O relato de um cinegrafista que registrou as manifestações do último fim de semana
André Lobão, Fórum
Ufa, confesso que sobrevivi! Sim meus amigos e amigas, confesso que neste 15 de março tive uma experiência de alteridade, ou seja: adentrei a um mundo diferente e confrontante às minhas ideias.
Há tempos, acho que nos anos 1990, estive presente num Fla x Flu na torcida do Flamengo. Quem me conhece sabe que torço fanaticamente pelo Fluminense. Por isso, estar no 15 de março foi um choque, uma verdadeira tensão emocional.
Ali em Copacabana, naquele sol de verão abafado tipicamente carioca, percebi e tive contato com um universo hostil ao meu pensar. Estava ali dando prosseguimento ao registro das manifestações programadas para os dias 13 e 15, respectivamente, a favor e contra o governo. Resolvi documentar em vídeo as visões antagônicas sobre o Brasil que vivemos hoje.
Na sexta-feira (13), encontrei uma mobilização que, além de defender o governo Dilma, criticava o neoconservadorismo que cresce assustadoramente com a ocupação das redes sociais e simpatia da mídia. Na rua, velhas figuras da militância petista e dos movimentos sociais como MST, CUT e sindicatos. E lá estava eu, registrando falas, depoimentos e imagens da manifestação.
Não sou petista e não tenho qualquer filiação partidária, mas senti falta da esquerda como um todo. Infelizmente o governo conseguiu desmobilizar o que havia se unido no segundo turno de 2014, ao adotar um receituário neoliberal para conduzir nossa economia. Mas de alguma forma você acaba por dividir nesses momentos ideias e bandeiras comuns de todo esquerdista que se preze, que é a reforma agrária, Petrobras, políticas sociais, de inclusão, educação pública, enfim.
O que me preocupava era uma possível letargia do movimento, repetindo o comportamento estranho da atual Presidenta Dilma que a cada dia me parece sem ânimo e punch para levar adiante seu governo.
Então, o domingo chegou, dia 15 de março, eu sozinho em Copacabana com minha Canon T4 e um monopé. Já na Avenida Atlântica, um amigo conservador com a bandeira do Brasil enrolada ao corpo me encontra: “Lobão, você aqui!”. Pois é, ali pintou o calafrio, mas ele foi meu amigo. Me abraçou e se embrenhou na multidão que se formava.
Câmera ligada, eu busco imagens, focando em cartazes, pessoas e tentando entrevistas. Foram quatro as vezes que tomei um não. Sob o sol escaldante empunhei meu monopé e fiquei no meio do protesto gravando tudo.
Cantos ofensivos, hostis e xingamentos, coisas que um frequentador do Maracanã ou de qualquer estádio do mundo está acostumado. Eu via muita raiva ali, mas era uma coisa diferente de tudo que já havia visto na minha vida. Era uma raiva que beirava uma histeria coletiva.
Aquilo, em determinado momento, me deu medo. Sim, eu tive medo, ainda mais quando uma senhora com seus mais de 70 e poucos anos me perguntou: “meu filho, você não me engana com essa cara, você é infiltrado?” E de bate-pronto, respondi: “sou cineasta minha senhora, sou cineasta…”. E vazei no meio da multidão.
Em meio a discursos contra o governo, corrupção e o momento político, críticas que considero válidas e justas, o que me chocou de fato foi um cortejo que pedia “intervenção militar”. Era um jipe ocupado por ex-militares e familiares que tocava no seu alto-falante o hino do exército. Ao perceber o veículo, eu, junto com outros cinegrafistas e fotógrafos, registramos uma catarse naquele grupo. Senhoras choravam, jovens entre homens e mulheres aplaudiam aquele momento. No alto do jipe, um jovem negro se fixava em posição de continência e um outro homem que se identificava como veterano de guerra com uma boina vermelha da infantaria paraquedista aos berros empunhava uma bandeira brasileira como estivesse em uma arquibancada. Neste momento, ao ver que eu focava aquele momento dantesco, uma outra senhora junto com um senhor começaram a gritar comigo, dizendo que eu era petista e que só queria mostrar aquele ponto do protesto. E aí, novamente, me camuflei naquela multidão. E mais uma vez bati em retirada.
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Mais adiante, consegui depoimentos espontâneos e raivosos. Depois de duas horas me dei por vencido e não tinha mais condições físicas para continuar. Fui embora assustado, e ao mesmo tempo estranhamente recompensado por ter vivido aquele momento em que me senti um infiltrado. Sim, um infiltrado. Não no jogo do Maracanã, mas era no Fla x Flu político que vivemos hoje. Eu fui no outro lado.