Marco Feliciano volta a citar Luther King de maneira descontextualizada para manipular seus seguidores. O pastor brasileiro, que chega a se comparar ao pastor e ativista estadunidense, finge esquecer as palavras mágicas que permeavam o discurso de Luther King: justiça, fraternidade, liberdade e igualdade
Christiano Souza Granja, Portal Geledés
Desnecessário relembrar os lamentáveis acontecimentos sobre a ascensão do deputado Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados em 2013. E lamentáveis porque “todos” sabem que aquele senhor não pauta sua conduta parlamentar pelas linhas que desenham a democracia neste país.
A despeito disso, àquela época Marco Feliciano insistiu na falácia da cristofobia (um neologismo estúpido para fazer chacota à concretude da homofobia no Brasil) e da perseguição religiosa, afirmando inclusive que a indignação por sua escolha deveu-se ao fato de ser pastor: “Disseram ser da Idade da Pedra ou dos tempos de caça às bruxas a escolha de um pastor para presidir a Comissão de Direitos Humanos”. E na sequência, soltou a seguinte pérola: “Lembro que o maior defensor dos direitos humanos de todos os tempos foi um pastor: Martin Luther King” [relembre aqui].
Agora em 2015, ressentindo-se com os elogios ao seu sucessor, Assis do Couto, Feliciano voltou a repetir a mesma bobagem e completou: “Ao falar dentro da sua igreja, Luther King citava a bíblia, e a gente cita o que é errado e o que é certo, o que é pecado e o que não é”.
O conferencista Feliciano, ou é um péssimo exegeta ou um incontido manipulador de discursos – e eu prefiro ficar com a segunda definição. De fato, o humanista e pastor protestante Luther King fez diversas referências à fé e a Deus naquele que ficou conhecido como o seu mais famoso pronunciamento, como “agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus”. Mas há muitas outras palavrinhas mágicas que permeiam o discurso de Luther King: justiça, fraternidade, liberdade e igualdade.
“[…] Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença – nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais.
Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. […]”
Para Luther King, o verdadeiro significado da crença daquela nação é de que os HOMENS SÃO IGUAIS, e por conta disso poderão viver sobre o manto da FRATERNIDADE, da LIBERDADE e da JUSTIÇA. Ora, onde King encontra repousado o pressuposto da igualdade entre as pessoas daquela nação? Na Constituição Americana. Em momento algum o pastor Luther King sobrepõe suas convicções religiosas à Carta Magna dos Estados Unidos da América.
A partir da afirmação de Hjelmslev, de que a linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos, percebe-se que o pelotiqueiro Marco Feliciano, ao contrario da sua fonte de inspiração, põe a Bíblia acima da Constituição, e isso é bastante claro nas suas declarações “[…] a Bíblia, nosso livro sagrado […], nossa Carta Magna, pois esse termo que significa livro maior de tão importante, que tal título também denomina nossa Constituição Política” (há supressões no período, mas que não alteram o sentido real da afirmação, que pode ser conferida em seu inteiro teor em http://goo.gl/IFrDL).
Para Feliciano, há uma sobreposição de autoridade entre os referidos livros, assim como uma clara noção de valor entre um e outro. E um deles é tão valoroso e mais importante, que o outro imita-lhe o apelido. Parece então que, ao contrário de Luther King, para Feliciano não é a Constituição a régua que mede a igualdade, a fraternidade, a liberdade e a justiça das pessoas, mas a Bíblia.
E o que significa tudo isso? Que não é o fato de ser pastor que desabonou Marco Feliciano ao exercício da presidência da CDHM, mas sim o fato de que os direitos humanos devem ser balizados por outros princípios que não aqueles que balizam a sua fé, notadamente os artigos I, II, VI, VII, XII, XVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ratificada pelo Estado brasileiro, e os incisos II e III do artigo 1º e o artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Marco Feliciano, o pelotiqueiro, travestido na pele de cordeiro, é traído pelo seu discurso – que não é de direitos humanos – e acuado, escora-se maldosamente na figura de um verdadeiro militante, usando enganosamente o argumento do seu ministério e da fé para legitimar o seu não-lugar na CDHM. Naturalmente, pensa que os militantes de direitos humanos são idiotas e que Luther King foi um homem de um discurso só. Não foi. E se soubesse disso, teria prestado atenção no finalzinho de Beyond Vietnam, um dos tão importantes discursos de King:
“Esta é uma época revolucionária. Por todo o planeta homens se revoltam contra antigos sistemas de exploração e opressão e, longe das feridas de um mundo debilitado, novos sistemas de justiça e igualdade estão nascendo. Os miseráveis da terra se levantam como nunca antes. Aqueles que viviam na escuridão viram uma luz grandiosa.”
A(s)cendemos a(a) luz, Marco Feliciano. E seu show já acabou!
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