O que é “combate à violência” no Brasil?
Rafael Mantovani*, Pragmatismo Político
Em diversos lugares – e infelizmente o Brasil é um deles –, um dos principais valores defendidos como essenciais para a sobrevivência da sociedade é a necessidade de punição. Punir muito, punir mais, punir sempre. Mais importante do que conseguir contornar uma situação conflituosa, é colocá-la sob a mira penal: estabelecer para cada aspecto da vida um microtribunal e fazer o criminoso expiar. Qual é a eficácia disso? Antes de tentar responder, é necessário começar pelo começo.
Quando começou a gestão moderna da prisão? Em linhas gerais, pode-se dizer que ao final do século XVIII e início do século XIX, o modelo do suplício cedia lugar a uma forma de punir que tinha duas técnicas diferenciadas: a da masmorra e a da quarentena. O suplício era o tipo de punição em que aquele que cometia o ato repudiado era destroçado publicamente pelo poder do rei. Ofender às leis era equivalente à ofender à própria figura do monarca. A retaliação era sobre o corpo, dilacerando-o, queimando-o, desfigurando-o. Tratava-se de uma racionalidade específica que buscava imprimir no corpo do condenado a supremacia do poder real.
Com a mudança do Antigo Regime para a modernidade, mudou-se de registro: melhor do que destroçar o corpo do condenado era torná-lo útil para a sociedade. A punição não mais seria um espetáculo da força soberana sobre o criminoso, mas sim algo à parte do convívio social: a punição não aconteceria mais à luz do dia. Assumia, portanto, o caráter oculto da masmorra. Por outro lado, não seria mais tampouco a revanche do rei contra aquele que o ofendesse, seria a partir de então uma tentativa de organização das forças psíquicas e corporais para a reassimilação do criminoso na sociedade: tratava-se de uma técnica racional pautada no exame, para definir sistematicamente as formas de reaproveitamento dos que ofenderam a moral pública. Para isso, a tecnologia utilizada passou a ser a disciplina, ou seja, cada corpo em determinado espaço e momento, que se associa a outros corpos em outros espaços e momentos para a obtenção do efeito desejado. Tratava-se da lógica da quarentena, que disciplinava cada corpo em determinado lugar para observação e para tentar-se controlar a proliferação da peste.
Em 1808, Jean-Baptiste Treilhard dizia que a prisão deveria ser a punição capaz de regenerar os condenados, local em que lamentariam o passado e passariam a sentir o amor pelo dever. Mas os fracassos da prisão surgiram quase que concomitantemente à sua criação e, segundo Foucault, percebia-se que ela era “perigosa quando não inútil”. Organizações para a melhoria das prisões, providências que se diziam urgentes e grupos filantrópicos começavam a sua empreitada na “reforma” daquilo que era ainda uma novidade: a penitenciária. Já em 1820 se dizia que não havia a diminuição dos crimes com a prisão, mas sim, ao contrário disso, o seu aumento e aperfeiçoamento. Nesse sentido, o chavão “prisão: escola do crime” repetido ad nauseam não só é verdadeiro, como é conhecido há cerca de dois séculos, quase ao mesmo tempo em que nascia a prisão moderna. Por quê?
A prisão fecha sobre si o mundo chamado delinquente. Desde o assassino ao pequeno ladrão, são todos colocados sob o mesmo ambiente e, de certa forma, homogeneizados em um sentido: são presidiários. Passar pela instituição penal significa, socialmente, ter cristalizado o erro cometido. Assim, a vida de um indivíduo que foi punido por um pequeno furto passa a se guiar pela estigmatização da punição sofrida. A partir de então, as decisões precisam levar em conta a benevolência ou renúncia de uma sociedade que, ao invés de olhar o indivíduo como alguém que cometeu um erro como qualquer outra pessoa, o vê antes de tudo como um ex-presidiário. Dessa forma, as suas escolhas tendem a procurar os iguais, ou seja, outros chamados delinquentes, o que cria uma espécie de solidariedade do mundo da ilegalidade.
Convém, entretanto, entender o que é a delinquência. Trata-se de uma criação muito bem datada e que é fomentada no interior das prisões. Se, no Antigo Regime, as pequenas irregularidades eram toleradas, a partir da modernidade todas elas deveriam ser punidas independentemente da sua gravidade ou insignificância, estigmatizando-se todos como delinquentes e fechando-os sob um mesmo espaço vigilante. O sistema carcerário funcionou e funciona, assim, como aglomerado de homens que têm em comum algum conhecimento específico sobre como infringir, sabotar, violar e que foram, são e serão marcados exatamente por esse fato: que um dia infringiram, sabotaram ou violaram. Marcá-los e individualizá-los devido a isso é cristalizar esse fato (o crime cometido) e fazer com que os passos seguintes sejam em grande medida determinados por isso. O refinamento do conhecimento dito criminoso não poderia ter solo mais fértil do que as prisões. Portanto, se alguém acredita no fantasma do crime organizado, o seu gerente é o próprio Estado e a prisão é o seu comitê central.
Se a prisão é isso, por que ela existe até os dias de hoje? Em outras palavras: se a função da prisão é regenerar o condenado e sabe-se desde a sua criação que ela é um fracasso, por que continuamos repetindo que ela é necessária ainda no século XXI?
Ora, se a função a que a instituição se arroga nunca foi cumprida, talvez isso seja sinal de que a sua verdadeira função seja outra, não dita. Provavelmente porque não pode ser dita, mas que ela desempenha na penumbra e com sucesso. Como diria Foucault a Roger-Pol Droit em 1975, a prisão é “um instrumento de recrutamento para o exército dos delinquentes. É para isso que ela serve. Fala-se há dois séculos: ‘A prisão fracassa, pois ela fabrica delinquentes’. Eu diria, antes, ela é bem-sucedida, pois é isso que se lhe requer”. Isso quer dizer que a prisão defende ser a sua função social regenerar o condenado, entranto, a sua real função social é, ao contrário, criar delinquentes? Apesar da contradição, é necessário escutar o que disseram alguns dos primeiros analistas da prisão.
O século XIX foi um momento de grandes embates sociais nos quais a revolução parecia estar quase batendo à porta em diversos momentos. Os embates, obviamente, nem sempre eram passivos, mas nem por isso condenáveis. Ao menos os seus motivos. Diante da pauperização e da diferença cada vez mais abismal de classes, havia revolta. A função da prisão foi, em grande medida, uma forma de marcar e tornar visíveis as pequenas ilegalidades, os pequenos furtos, as pequenas violências incômodas e torná-las uma espécie de amostra de toda a ilegalidade que poderia se consumar em um movimento insurgente. Localizando essas irregularidades, criou-se a ideia de delinquência e a possibilidade de que se punisse a classe mais baixa, tornando-a, assim, politicamente inofensiva. E mesmo os que apostaram na prisão sabiam que ela seria o instrumento de uma classe que criaria regras que deveriam ser respeitadas por outras classes, conforme já diziam, por exemplo, Pellegrino Rossi, em 1829, no seu Traité de droit pénal e Charles Lucas, em 1838, no seu De la réforme des prisions. A realidade disso é testemunhável até os dias de hoje: basta observar quem é que faz parte da população carcerária. Na sua esmagadora maioria, pobres. Dessa forma, as possibilidades de insurreição são controladas pelo aprisionamento e controle das pequenas “malfeitorias” que, em realidade, as maiores vítimas são da própria classe pobre, pois estão mais vulneráveis do que as classes altas.
Pode parecer contraditório concluir que a prisão seria uma forma de controle de insurreições, sendo que há estatísticas de acréscimo dos índices de criminalidade e a aparente “perda de controle do crime”. No entanto, o aumento dessa criminalidade (criminalidade específica, totalmente inofensiva para a ordem e que não tem nenhuma relação com revolução), é na realidade o gatilho para a legitimação da certeza de necessidade de prisão, de mais punição, de mais controle policial, de necessidade de mais agentes penitenciários, de maiores e melhores construções para receber a população carcerária, necessidade de mais “políticas públicas” para a reinserção do detento no meio social. Ou seja, o aumento da criminalidade ou profissionalização do crime não traz como consequência uma perda de controle por parte do Estado. Ao contrário disso, o resultado é a maior possibilidade e legitimidade de controle, mais vigilância e exercício da soberania, determinando a regra e a sanção. Pois o resultado da prisão é um lucro político e econômico. Político porque, sobre essa massa delinquente, é necessário que haja meios e instrumentos para “tentar controlá-la” e aquele que disser que vai fazê-lo ganha prestígio. Econômico porque a própria existência da prisão é financeiramente importante, uma vez que gera e requer agentes, construções, sistemas de troca de mercadorias, equipamentos de vigilância, policiamento constante, comércio de armamento pesado etc.
Se isso tudo parece muito teórico, vejamos a realidade brasileira. Essa tentativa de diluir inimigos políticos na prisão – que Foucault descreve que começa a ocorrer no século XIX na Europa –, ocorreu da forma mais notável nos anos 1970 no Brasil. E a origem da primeira organização de presos, o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, não é senão o resultado da mistura de presos políticos da ditadura militar com presos comuns. Em 1979, na prisão Cândido Mendes em Angra dos Reis, o CV tomou forma e, com isso, estabeleceu-se a solidariedade dos presos entre si e a luta contra as agressões que sofriam. O Comando Vermelho tinha como lema “Paz, justiça e liberdade”. Já em São Paulo, em 1993, um ano após o massacre do Carandiru, no anexo de Taubaté, foi criado o Primeiro Comando da Capital. No seu estatuto de 16 itens, o segundo fala sobre a mesma luta pela liberdade, justiça e paz. Solidariedade “criminosa” sendo criada, portanto, dentro e por causa da prisão.
Naquele ano de 1993, os presos brasileiros somavam 126.152. Em 2013, passaram dos 581 mil. De 1995 a 2010, a população carcerária brasileira só não cresceu mais do que a da Indonésia, e o Brasil já é o quarto maior encarcerador do mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. A situação carcerária no Brasil é socialmente insustentável, mas o número de votos ganhos sobe de acordo com a intensidade com que se defende o aumento do encarceramento. Por isso o desinteresse político em pensar em uma solução contra essa fórmula que parece que entrará em colapso em breve. Vota-se em quem promete aumentar as prisões, ou seja, na proposta que agrava a situação. Quando se fala, no Brasil, de combate ao crime, fala-se em geral de diminuição da maioridade penal, aumento do tempo das sentenças etc. Além do silencioso (mas nem sempre) e generalizado apoio à violência policial.
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Utilizando-se da expressão da professora Vera Malaguti Batista, poderia ser perguntado: por que existe essa “adesão subjetiva à barbárie” quando se fala de punição? Por que o Brasil passou da resistência à truculência policial dos anos 1960 e 1970 à naturalização e, agora, da naturalização ao apoio a essa truculência? Fazendo uso da metodologia de Malaguti, podemos perguntar: qual é a demanda por ordem que gera essa catástrofe penal que presenciamos? É certo que o Brasil não é único país que parece se orgulhar em dizer “somos carcereiros mesmo e adoramos”. Loïc Wacquant já falava que essa segunda onda de encarceramento em massa (a primeira é de fins do século XVIII) é uma espécie de “nova gestão da pobreza” nos Estados Unidos. Mas há algo de peculiar no Brasil?
A centralização de um país tão vasto na corte do Rio de Janeiro após a independência, segundo diversos historiadores, foi possível, dentre outras coisas, devido a um sentimento: o medo. E, nessa época, o medo se direcionava à possibilidade de haitinização, ou seja, o medo de que ocorresse no Brasil o mesmo que ocorreu no Haiti em 1794: uma revolta de escravos e mestiços. Andrei Koerner nos explica como a violência e visibilidade da possibilidade de violência são constitutivas da sociabilidade brasileira. Essa sociedade, que se estruturava sobre a escravidão, tendo o escravo como figura necessária e, ao mesmo tempo, temida, criou uma disciplina escravocrata que Koerner chamou de “panóptico tropical-escravista”, ou seja, uma forma de se relacionar com as classes subalternas em que se acreditava que a segurança e a ordem só podiam ser mantidas se os símbolos de violência estivessem bem expostos aos que as ameaçavam. Por isso a truculência dos senhores de engenho: primeiramente para fazer escravos trabalharem; em segundo lugar, para que não lhes ocorresse atentar contra o opressor, o próprio senhor. Daí a importância da exposição constante dos símbolos de violência legítima e dos seus agentes. Daí a importância hoje da Polícia Militar, sequência lógica das Guardas Nacionais criadas em 1831, para defender o país do movimento restaurador a Portugal e também das sedições internas que poderiam ser causadas por escravos. Daí a importância dada à “punição exemplar” desde o início da sociedade brasileira para que ela funcionasse: tinha que ser exemplar para que nenhum escravo fosse malemolente nas suas obrigações e não lhe ocorresse atentar contra o seu senhor, pois as consequências seriam terríveis para ele.
Não se pretende aqui fazer a história dos militares no Brasil, entretanto, é importante ter em conta a sua presença e importância política, seja no comando do país, ou à sombra do poder, funcionando como legitimador de “políticas públicas de controle”, ou encarnando essa estranha e sombria corporação chamada Polícia Militar. O Brasil é um caso interessante neste aspecto, afinal, coloca sobre o próprio território e sobre a própria população uma polícia que é militarizada. Malaguti diria que isso é uma espécie de autocolonialismo. Talvez o seja de fato: militares são treinados para matar inimigo. Inimigo esse, conforme se explicou, criado e fomentado pelo próprio sistema carcerário que promete extingui-lo.
Contudo, ainda foi não explicado: por que existe a adesão subjetiva à barbárie por meio de uma criminologia rasteira de senso comum?
Se o fenômeno é uma manifestação de conservadorismo, a análise também pode ser conservadora, portanto, evoquemos Durkheim, pois se Foucault nos explica o lucro econômico e o lucro político, Durkheim nos explica o lucro simbólico. O autor, massacrado por muitos, escreveu uma coisa interessante a esse respeito. Durkheim encontrava no crime duas possíveis funções sociais: ou questiona saudavelmente a ordem (podendo ser o precursor de uma nova moral) ou – é essa última que nos interessa mais – intensifica o sentimento de coesão social dos indivíduos pelo horror ao crime cometido, pois reaviva sentimentos coletivos que o crime ofendeu.
A datenização do cotidiano, ou seja, defender a sociedade contra o crime e a defesa da punição, de mais punição, de punições mais duras, é uma forma de se sentir parte de determinado agrupamento social. A militarização do cotidiano divide a nação em duas partes antagônicas e inimigas: a forma penal de gerir a sociedade tem como resultado uma política belicosa, ao estilo schmittiano, em que se é amigo ou inimigo. De um lado estão os amigos do bem, de outro lado estão os amigos do crime. Parecido com a imagem do século XIX: a sociedade se dividia primordialmente entre nobres – “gente de prol” ou “homens bons” (exatamente, eram chamados de homens bons) –, e os escravizados, sobre os quais a violência era legítima. Hoje, gritar contra o inimigo, exigir uma reação enérgica policial contra a dita crescente violência é uma espécie de calmante da alma: está-se junto, o Brasil une as mãos contra o inimigo comum, esse mal que brota de dentro de si mesmo, e o indignado se aproxima da nobreza, dos homens bons.
Terminada a ditadura militar, pede-se cada vez mais a intervenção policial militar na vida cotidiana: o grito de socorro em uníssono é um dos grandes elementos agregadores de uma parcela considerável da sociedade brasileira. O mal dissimulado e muitas vezes explícito apoio à militarização do cotidiano é uma forma de, em algum nível, afastar o elemento moralmente desagregador da sociedade brasileira: a igualdade. É a manifestação de que devem ser mantidas estruturas que garantam a vida e um processo judicial eficaz somente a alguns. A outros, não.
E o resultado disso é que a vida e a política parecem hoje ter de passar pela questão penal. E os noticiários imaginam que fazem um bom jornalismo na medida em que noticiam basicamente crimes, punições, CPIs, mandados de busca e apreensão, quadrilhas, condenações etc., enquanto, ao mesmo tempo, ignoram deliberadamente os arquivamentos dos chamados autos de resistência, ou seja, quando a polícia mata. Isso não é ingenuidade, é um apoio tácito à matança. E tal apoio se metamorfoseia em um perverso tranquilizador social. Quanto mais se sentir ofendido na sua moral, maior a possibilidade de se sentir parte de um agrupamento nobre que exigirá a expiação do culpado. E, contraditoriamente, quanto maior a insegurança pela violência, maior a tranquilidade simbólica de se sentir parte do grupo a que a polícia não tem o direito de matar impunemente. Afinal, mesmo indo contra qualquer ideia de civilidade, ainda hoje se tortura e se acorrenta ladrão de bicicleta em poste, jornalistas apoiam a atitude e… continuam no jornalismo. E é claro que continuam: são o produto e, de certa forma, produtores da sociedade brasileira na sua vertente mais obscura, a que aplaude a cruzada que pretende estabelecer a legalidade da barbárie. O combate à violência da maneira como está posto é simplesmente a maneira mais violenta de manter de pé a segunda sociedade mais desigual do mundo, em que uns têm direito a tudo e outros não têm direito nem à existência.
Em um país que parece se unir com louvor ao redor do medo desde a sua independência e crendo na necessidade do panóptico tropical-escravista para manter a “frágil” ordem que se constituiu, tem-se como resultado essa total regressão da questão penal, que, em realidade, só tem um resultado – desastroso – pela frente: o aumento do conflito e das solidariedades “do bem” e “do crime”. Essas duas partes beligerantes da sociedade, ao que tudo indica, apenas crescem no ódio recíproco e no recrudescimento do sentimento de necessidade do extermínio do adversário. E o mais preocupante é que o que uma parcela significativa da população diz e acredita ser a solução para isso – a prisão – é, na realidade, o seu motor. Levantar altos muros, por um lado, gera o bem-estar por sentir-se aninhado e amparado pelo agrupamento a que se associou. Contudo, altos muros, ao contrário de proteger, são o acirramento dos conflitos que prometem resolver.
*Rafael Mantovani é doutorando em sociologia pela USP, mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP e colaborou para Pragmatismo Político