Saullo Diniz, Pragmatismo Político
“Não existe racismo no Brasil”, “isso é um vitimismo”, “tenho até amigos negros” dentre outras, são frases extremamente populares nas (poucas) discussões raciais em nosso país. No entanto, esse discurso é extremamente falacioso. Ao mesmo tempo em que somos considerados um país “miscigenado”, somos uma sociedade extremamente dividida como salientou a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Oxford (ING) em entrevista ao jornal El País: “Apesar de ter a ideologia da mistura, na verdade sempre foi o pior dos apartheids” (1). Se ela exagerou ou não, não é minha intenção nesse breve artigo, mas discutir alguns números que podem nos dar alguns esclarecimentos.
Muitos autores já fizeram tal trabalho de forma muito mais aprofundada e detalhada tanto na análise histórica quanto nos fatos atuais, no entanto, sabemos que o conhecimento acadêmico dificilmente chega ao conhecimento popular. Esse é o motivo desse pequeno texto. Prezando pela honestidade intelectual, mais uma vez fiz questão de disponibilizar todas as fontes no final do texto.
No censo 2010, ficou registrado que o número de negros e brancos no país continua bem próximo sendo 47,3% da população branca e 53,7% negra ou parda (2). Tendo em vista esses números, o mais sensato a se esperar ao analisar índices criminais ou educacionais é que se mantenha uma parcela bem parecida, ou seja, que a proporção de negros e brancos se mantenha ou fiquem, de certa forma, bem próximos, mas não é o que acontece.
Ao analisarmos a população carcerária, já nos deparamos com a primeira irregularidade. Os últimos dados apontam que 60% dos presos são negros ou pardos (3). O próprio G1, periódico da Globo, informou recentemente que o a cada 3 presos, no estado de São Paulo, 2 são negros e que o número de jovens negros mortos pela polícia era três vezes maior que o de brancos (4), lembrando que isso é apenas no território paulista, se formos aumentar a análise para a escala nacional, dados da Anistia Internacional afirmam que em 2012, 77% de todos os assassinatos tiveram como vitimas pessoas negras (5). Recentemente, o Mapa da Violência mostrou que em cerca de 98% das cidades brasileiras morrem mais negros do que brancos (6). Além disso, alguns autores confirmam o que não é nenhuma novidade: há mais negros do que brancos da Fundação Casa, antiga FEBEM (7).
Quando entramos nos méritos da educação o problema persiste. Um estudo do Instituto da Economia da UFRJ apontou que 71,6% dos analfabetos são negros ou pardos (8). O tempo médio que os negros levam para concluir os Ensinos Fundamental e Médio também é maior que a média dos brancos (9). Quando tratamos da quantidade de negros aprovados nos concursos de vestibular os números também assustam, em 2012 apenas 7,3% dos alunos da USP eram negros ou pardos e na UNICAMP, 8,5% (10). Ainda assim, a porcentagem de formandos negros no Brasil, seja em instituições privadas ou públicas, é de apenas 6,13% sendo menor ainda nos cursos de medicina, cerca de 2,66% (11).
Leia aqui todos os textos de Saullo Diniz
Recentemente, duas polêmicas rondaram a internet: a discussão sobre as políticas de cotas na USP e o negro (Fernando Holiday) que chama de “discurso de vagabundagem” a mesma discussão sobre as cotas. Pra ver como as coisas pouco mudam na história. Gilberto Freyre ainda no Casagrande & Senzala lançado em 1933 já falava que essa era exatamente uma das palavras designadas aos negros: vagabundos; após mais de 80 anos, ainda tem gente que os designe assim?! Como já vimos, o número de negros nas universidades é bem pequeno – principalmente nas públicas -, como podemos mudar isso? Os argumentos que dizem que a solução não é a criação de cotas, mas o investimento em educação para que todos possam ter acesso às universidades está correto – mesmo que bem vago. No entanto, a questão é: e enquanto esses investimentos na educação não são feitos, como ficarão os negros? Assistindo a festa dos brancos? Daqui a 10 anos vamos continuar vendo que apenas 6% dos formandos no Brasil são negros ou vamos dar mais oportunidades de fato a eles? Deve-se esclarecer, obviamente, que não há falta de capacidade por parte da população negra, muito pelo contrário, o que temos são condições totalmente diferentes no acesso a educação. Coloque o Ayrton Senna pilotando um fusca e ele nunca ganharia algum ponto na história da fórmula 1. Até porque, algumas pesquisas já mostraram que em algumas universidades os cotistas têm um desempenho melhor que os não-cotistas (12). Essa discussão não exclui o fato de pessoas brancas pobres também necessitarem de políticas de ação afirmativa – como já existe em muitas universidades -, só não podemos esquecer do peso que a cor delega (as cotas raciais também contam renda e/ou ter estudado em escola pública, ok?).
Por que insistimos em dizer que não há nenhum problema racial no país se os negros são os que mais são presos, mais são assassinados, são a maioria dos analfabetos, demoram mais para concluir o colégio e são minoria no ensino superior? Será que ninguém acha estranho essa desproporção? Os meios de comunicação sempre tentam pegar uma exceção pra tentar provar a regra, tentando impor a meritocracia acima de tudo, esquecendo de analisar o passado dessas relações, negligenciando as centenas de anos de escravidão. Como bem analisou Marcelo Lopes de Souza, professor da UFRJ: “No Brasil, por outro lado, é comum, em meio a um universo cultural um tanto hipócrita, esquecer ou revelar a cor da pele de um negro ou mulato economicamente bem-sucedido; é o chamado branqueamento cultural, o qual, erroneamente, induz muitos a acreditarem que no nosso país não há racismo, e que a única questão relevante a ser enfrentada, em matéria de (in)justiça social é a da pobreza” (13). Se não é racismo, só pode ser cegueira.
Finalizo o breve texto com uma citação de um trecho da música Negro Drama dos Racionais MC‟s:
“Você deve estar pensando: o que você tem a ver com isso? Desde o início por ouro e prata, olha quem morre, então veja você quem mata. Recebe o mérito, a farda que pratica o mal, me ver pobre, preso ou morto já é cultural. História, registros, escritos… não é conto, nem fábula, lenda ou mito. Não foi sempre dito que preto não tem vez? Olha o castelo e não foi você quem fez!”
Fontes:
(1) http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/17/politica/1421520137_687513.html
(3) http://www.revistaforum.com.br/blog/2012/11/pesquisa-revela-em-numeros-realidade-carceraria-do-pais/
(5) http://www.cartacapital.com.br/sociedade/violencia-brasil-mata-82-jovens-por-dia-5716.html
(6) http://mapadaviolencia.org.br/index.php
(7) http://www.revistaforum.com.br/blog/2012/06/de-febem-a-fundacao-casa/
(13) http://www.estadao.com.br/noticias/geral,desempenho-de-cotistas-fica-acima-da-media-imp-,582324
(13) SOUZA, Marcelo Lopes de. ABC do Desenvolvimento Urbano. 7 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013, p. 70.
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook.