Advocacia do diabo: Analisando o Manifesto Anti-governo
Leandro Dias*
Os movimentos sociais que organizaram duas relevantes manifestações oposicionistas durante o último mês de abril, levaram suas demandas aos líderes da oposição em Brasília ainda naquele mês. Pouco depois, facilmente obtiveram uma audiência com líderes da oposição e puderam levar adiante suas reclamações. Num texto longo e curiosamente intitulado “Carta ao Povo Brasileiro” (praticamente o mesmo nome da carta que Lula escreveu em 2002), os vários expuseram suas ideias numa espécie de manifesto disponibilizado na íntegra na internet, em páginas como o blog de um dos articulistas favoritos destes manifestantes, Reinaldo Azevedo, colunista da Veja.
O texto abre com um alerta: “A democracia brasileira está fragilizada. A República está em risco.” E prossegue com uma expressão exaustivamente repetida pelos movimentos sociais de esquerda ou direita: “E o povo brasileiro está farto.” Não deveríamos entrar muito fundo no mérito de discutir que legitimidade estes movimentos têm para falar “em nome do povo”, pois isso não é exclusividade da direita – a esquerda faz isso o tempo todo e, muitas vezes, com similar credibilidade. Mas, diante dos resultados das pesquisas sobre o perfil demográfico dos manifestantes presentes no evento de 12 de abril [link], cabe questionar que parcela do povo de fato representam. Segundo as pesquisas, ainda que essas tenham seus desvios óbvios, mais da metade dos entrevistados tinha renda próxima a R$ 8 mil, ou seja, quase oito vezes a média nacional; e apenas 15% estavam na faixa de 3-5 salários mínimos (próximos da média). Não foram raras as fotos de manifestantes orgulhosamente reafirmando sua posição social, bebendo champagne e contando de suas viagens ao exterior.
Se as características do perfil demográfico dos manifestantes lhes autoriza a falarem em nome de todo um povo é algo aberto para debate, sua posição política está mais ou menos definida: em São Paulo, por exemplo, mais de 80% dos manifestantes declararam ter votado em Aécio Neves nas últimas eleições e o mesmo se repetiu em outras capitais. Portanto, é difícil não identificar uma evidente frustração pela derrota de seu candidato e uma tentativa de terceiro turno, como já apontavam os governistas. Porém, lembremos que próprio governismo e seus simpatizantes já haviam prometido um “terceiro turno” antes mesmo do fim da eleição, caso Aécio ganhasse: “seria uma guerra”, disse Stédile. O que não seria surpreendente, visto que, para além das melhorias sociais e dos ganhos reais do salário mínimo que o petismo trouxe, um importante fator de manutenção do sindicalismo e dos movimentos sociais em relativa calmaria nesta década de “neoliberalismo com vaselina” e tímido neodesenvolvimentismo petista, foi justamente uma política de carguismo que os governos brasileiros fazem sistematicamente com os sindicatos, desde que os mesmos foram economicamente vinculados ao Estado por Vargas. Sem esta relação, os movimentos sociais não teriam motivos para “esperar resultados” como mais ou menos fizeram pacientemente até recentemente. Assunto para outro texto.
Assim, com legitimidade ou não para falar pelo povo em geral, o texto prossegue:
“O povo cansou do desrespeito e da incompetência de alguns políticos e governantes brasileiros e exige mudanças já.” [grifo nosso]
Só “alguns políticos”? Quais? Seria curioso saber especificamente. Pelos índices de confiança e rejeição auferidos em outra pesquisa, parece que todos eles deveriam ser os alvos de tal manifesto, mas este parece focar apenas nos políticos do governo federal, petistas em particular. Assim, ao observar foto de importantes membros deste “movimento anti-corrupção” com figuras como Ronaldo Caiado (de suspeitíssimas relações com Carlinhos Cachoeira), Eduardo Cunha (alvo de extensas denúncias e duvidosas relações políticas) e outros de duvidosa história, não podemos esquecer da piada: “Todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”.
O texto, no entanto, segue com uma descrição do cenário atual:
“Vivemos um quadro assustador de corrupção no seio dos poderes constituídos. A corrupção é histórica, sim, e nem por isso admissível. Há 12 anos, porém, ela se tornou sistêmica e se institucionalizou na máquina pública em níveis sem precedência, como nunca antes visto. Um câncer a comer as entranhas já podres do país. Os sucessivos escândalos nos órgãos e empresas públicas vêm à tona e envergonham a nação. Agravado pela impunidade reinante, nós, cidadãos brasileiros, vivemos uma sensação de desesperança. A justiça não consegue cumprir seu papel de forma neutra e sem interferências de outros Poderes. O Executivo, tentando proteger suas bases de apoio político, interfere no livre andamento das investigações que deveriam ser conduzidas imparcialmente pelo Judiciário. Quando passamos a acreditar que malfeitores pudessem ser penalizados, assistimos, incrédulos, ao tratamento privilegiado a políticos criminosos, que não mais se encontram onde deveriam estar: junto aos outros contraventores, presos. [grifo nosso]
Seria interessante perguntar se o cenário “nunca antes visto” seria porque realmente acreditam que não existisse corrupção institucionalizada antes ou simplesmente porque não se investigava e noticiava com igual ênfase?
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Apenas, voltando um pouco na história recente, podemos ter uma série de exemplos.
No início dos anos 90, o emblemático caso dos Anões do Orçamento envolvia dezenas de políticos e vários partidos, mas apenas os supostos articuladores foram presos. Nenhum cacique, nenhum líder de partido teve grandes problemas. Ainda nos anos 90, o esquema PC Farias, que resultou no impeachment do [atualmente] governista-de-ocasião Fernando Collor, o único condenado pela justiça além de PC, foi o legista que denunciou a fraude nos laudos oficiais – isso em um governo (ou caso) que tinha o PFL (hoje Democratas) como uma das principais legendas, além do caso envolver figuras como Renan Calheiros, que dispensa apresentações. Parece que a impunidade já reinava no início dos anos 90.
Mais adiante, no fim dos anos 90, o caso do Banestado demonstrou evasão de R$150 bilhões de reais por empresas privadas, feitas através de influência política e corrupção deliberada, com acusações que poderiam chegar ao próprio presidente do Banco Central! Mas que ao final o dinheiro ficou “sem donos ou culpados”; Ainda nos anos 90, tivemos a privataria dos idos de FHC, que através da venda subfaturada de empresas estatais distribuiu recursos baratos a empresas amigas (e curiosamente, patrocinadoras de campanha), como o BNDES tem sido acusado de fazer. Além, disso poderíamos falar dos pouco investigados crimes financeiros e venda de informações privilegiadas para bancos privados durante a desvalorização do Real em 1998, caso que se quer foi além de pegar o pequeno banco Marka, sem grandes consequências para os corruptos, só para os corruptores.
Mesmo ao falar da impunidade no caso do Mensalão, não temos de nos atentar ao perdão do José Genoíno, ou as condições supostamente boas das celas dos condenados, mas principalmente com o fato de que TODOS os políticos que venderam sua participação parlamentar em troca de mesadas estão ainda livres para fazer o mesmo com qualquer governo que apareça, petista ou não. Se quer sabemos os seus nomes pois isso não interessava às investigações.
No fundo, todos, todos estes são exemplos de como é o modus operandi de uma democracia oligárquica e clientelista como a nossa: os políticos utilizam sua influencia para manipular contratos, vender influência em concessões públicas, mascarar orçamentos em favor de empresários amigos, cooptar atravessadores e agradar simpatizantes. Essa relação espúria dos agentes públicos e empresas privadas ligadas a eles está no cerne de grande parte dos casos de corrupção na nossa história recente, como Lavajato, Trensalão, Zelotes.
Então, é no mínimo imprudente dizer que apenas nos 12 últimos anos, coincidentemente o tempo do petismo no governo federal, que a “corrupção está institucionalizada” desta forma. Não é uma coincidência que muitos dos brasileiros com contas secretas no HSBC, reveladas no caso Swiss Leaks, sejam réus em casos de corrupção descobertos e (precariamente) investigados no final dos anos 1990 e início de 2000: casos Alstom e Econômico, Máfia da Previdência, Operação Roupa Suja, Operação Vampiro, entre outras?!. Também não é coincidência que boa parte deles nunca tenha sido condenada ou presa, com processos se arrastando há anos ou engavetados por algum juiz ou desembargador mais camarada? (como a Zelotes mostrou, se proliferam).
Na tentativa de condenar absolutamente o governo atual, limpa-se retroativamente o passado, como se antes do petismo vivêssemos com a transparência e a lisura escandinava. O fato de a Polícia Federal,
mesmo considerando a criatividade estatística que o governo faz, ter realizado quase 35 vezes mais operações entre 2003-2014 do que fez entre 1990-2002, não seria um real indicativo de que agora há realmente uma política de combate a corrupção e mais liberdade para investigação? Não estaria o combate à corrupção de fato mais ativo do que nunca? Pela primeira vez que se tem notícia há realmente políticos e empresários presos por corrupção, mesmo que em processos e com penas ainda questionáveis. Como disse o psdebista sério e empresário Ricardo Semler, não estaríamos num tempo em que “nunca se roubou tão pouco”?
Não seria a quantidade de investigações algo realmente “nunca antes visto”? É educativo lembrar a pegadinha que Lisa Simpson prega em seu pai Homer no famoso desenho: “Eu tenho uma pedra mágica que espanta tigres”. Homer questiona: “Como vou saber se funciona?”. Lisa responde: “Você está vendo algum tigre por aqui?”. Obviamente não havia tigre algum, não por causa da “pedra mágica”, mas pelo fato de estarem no meio dos Estados Unidos, onde não existem tigres andando soltos por aí. A ausência de tigres foi o suficiente para impressionar Homer, como a suposta ausência de escândalos no período anterior parece impressionar os manifestantes. A pedra mágica anticorrupção funcionava antes.
E é importante reconhecer, como a passagem citada faz, nossa deficiente separação de poderes, mas é uma grande ingenuidade acreditar que seja possível uma relação imparcial entre eles, especialmente sem problematizar o que tem ocorrido com preocupante frequência no Brasil: a judicialização da política. Como apontou o desembargador mineiro Rogério Medeiros Lima em reportagem no Estadão:
O fenômeno […] consiste na decisão pelo Judiciário de questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral. “Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder das instâncias tradicionais, que são o Executivo e o Legislativo, para juízes e tribunais”
[…]
Utilizam amplamente meios de comunicação no intuito de propagar unilateralmente seu discurso “ético” e arregimentar hostes de desinformados insatisfeitos. Ajuízam uma miríade de ações coletivas em defesa da decantada “moralidade administrativa”. Parte da imprensa e cidadãos passam a interpelar magistrados, em busca de opiniões sobre a política “judicializada”. Um aberrante desconforto, não verificado me nações desenvolvidas, como os Estados Unidos e potências europeias. [Estado de São Paulo, 3 de Outubro, 2012]
Isso significa que o Judiciário vem atuando fortemente como poder investigativo (papel principal da polícia) e como elaborador final de leis (papel do legislativo). Determina o que é lei, como aplicá-la, quem investigar, numa espécie de Juiz Dread brasileiro. E curiosamente isso é algo que os manifestantes (e a grande mídia que lhes dá voz e legitimidade) parecem louvar, transformando em heróis magistrados e ministros do STF, os quais, ressalte-se, não são eleitos pelo povo, mas indicados pelo Executivo e aprovados pelo Senado, portanto, sujeitos a todo tipo de tráfico de influência.
Portanto, há um certo perigo na exacerbação do Poder Judiciário, pois pode aprofundar ainda mais a “politicagem”, a “arbitrariedade” e o autoritarismo com o que as manifestantes parecem tanto se
preocupar. Por que a ruptura das fronteiras institucionais pelo Judiciário não afronta e preocupa os manifestantes? Deveria, inclusive, ser alvo de certa indignação a forma como as prisões preventivas e o estatuto da delação premiada vem sendo usadas no caso Lava Jato. É preciso ter cautela quando tanto a Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB como até mesmo juristas anti-petistas como Miguel Reale Jr concordam:
“Transformar a prisão, sem culpa reconhecida na sentença, em instrumento de constrangimento para forçar a delação é uma proposta que repugna ao Estado de Direito: ou o acusado confessa e entrega seus cúmplices, ou permanece preso à espera do julgamento, com a possibilidade de condenação, mas passível de uma grande redução da pena se colaborar com as investigações.” [REALE JR, Miguel – Folha de São Paulo, 8/12/2014]
Diante da revolta seletiva dos manifestantes, fica a sensação de que só é arbitrário e revoltante o que os adversários fazem.
O manifesto, então, prossegue a enfatizar a impunidade como causa e consequência da corrupção e ambas como causas principais da nossa condição de subdesenvolvimento. “A associação da corrupção com a impunidade impede o Brasil de se tornar um país desenvolvido.” Porém, mais adiante, o texto atira para outro lado, atribuindo à “ineficiência da gestão pública” e ao “inchamento” da máquina pública a culpa pela nossa pobreza e atraso.
Aqui temos que realmente abordar um dos principais problemas dos discursos sobre “subdesenvolvimento” e corrupção. O clássico argumento anticorrupção brasileiro monta-se sobre a equação: ineficiência da gestão pública + corrupção = desigualdade, estagnação e subdesenvolvimento. Porém, é preciso fazer uma pergunta absolutamente ingênua: “se solucionado o problema da corrupção, seríamos desenvolvidos”? E, por extensão, “se solucionado o problema da má gestão pública, seríamos desenvolvidos”? De antemão, nossa resposta às duas questões é “não, não necessariamente”.
Primeiro seria interessante saber o que se entende por corrupção. A julgar por algumas declarações e cartazes expostos nas manifestações recentes, esta definição não está muito clara. A sonegação de impostos, por exemplo, não parece ser uma forma de corrupção, no imaginário de pelo menos uma parte da população. Aparentemente, o crime que levou Al Capone e PC Farias (ele mesmo) à cadeia e que nos faz perder R$ 400 bilhões por ano não é exatamente tão ruim quanto desviar recursos públicos via superfaturamento de contratos ou atuar como lobista mediando negócios entre o Estado e empresários.
Há de se perguntar, inclusive, se esse lobby empresarial é realmente uma forma de corrupção ou apenas o é quando feito pelo ou junto ao governo petista atual. Em diversos países essa prática é legalizada, a ponto de haver cadastro de lobistas e outros mecanismos que dão transparência ao grupo de empresas que influencia cada congressista. Portanto, resta
saber se os autores do manifesto acreditam que influenciar congressistas para trazer benefícios econômicos para uma empresa privada ou sonegar impostos – dois dos pilares das operações Lava-Jato e Zelotes – são considerados formas de corrupção numa democracia representativa. Algo que pode gerar um debate muito interessante.
Ainda assim, se ignorarmos o lobby e a sonegação como formas de corrupção – o que seria controverso – , a equação corrupção-subdesenvolvimento não parece fechar. Por que?
Segundo os dados mais radicais sobre os prejuízos causados pela corrupção (vejam a conta apresentada por Reinaldo Azevedo), o Brasil perderia algo perto de R$ 100 bilhões por ano, um número que, embora assustador e inegavelmente ultrajante, representa menos de 2% do nosso PIB e um quarto da estimativa de perdas só com sonegação de impostos. E ainda que todo este dinheiro da corrupção fosse distribuído para cada brasileiro, teríamos um acréscimo de renda de R$ 41 reais por mês, um aumento de 3% na renda média brasileira. Se usamos 98% de nossos recursos de “maneira honesta”, não deveríamos ser algo perto de 98% desenvolvidos? Então, a relação entre corrupção e subdesenvolvimento não é exatamente verdadeira. A China é um país altamente corrupto e, no entanto, tem se desenvolvido a olhos vistos. [Aqui caberia também uma discussão sobre o que é desenvolvimento e subdesenvolvimento, mas esse debate vai ficar para outro texto.]
O outro termo da equação que resultaria no nosso subdesenvolvimento, segundo o discurso dos manifestantes, é gestão pública ineficiente. Trata-se, talvez, de sua parte mais complexa, que começa com o questionamento, também ingênuo: a gestão pública deve ser eficiente para quem?
O que é eficiente para o agronegócio não é necessariamente o melhor para a população, especialmente, se observarmos os últimos dados sobre a quantidade de agrotóxico em nossa comida e sobre trabalho escravo no Brasil. O governo tem feito vista grossa em nome da eficiência do agronegócio e sua importância em nossa balança comercial. Por sua vez, a política de terceirizações pode ser eficiente para as empresas e até economizar dinheiro para o Estado. Porém, não é necessariamente o melhor para o trabalhador. Em nome da eficiência de gestão houve a privatização do saneamento em São Paulo que hoje, apesar dos lucros da Sabesp, vive o racionamento. No Rio de Janeiro, privatizaram-se os trens em nome da “gestão eficiente” e, pouco depois, a SuperVia (empresa concessionária com 60% do capital pertencente à Oderbrecht) foi classificada pelo MPF-RJ de “ineficiente e inadequada”. Os exemplos são inúmeros.
Questionar o sentido da eficiência da gestão pública não significa negar a evidente necessidade de melhorias em vários dos serviços públicos e estruturas estatais; é mais do que óbvio que áreas como Educação e Saúde, por exemplo, precisam melhorar em vários aspectos. Mas é interessante notar que se uma “gestão pública eficiente” estaria relacionada não apenas ao gasto com servidor, mas também com o Número de servidores vs. População, o Brasil está muito longe de ser um país de estado inchado como se pinta: enquanto apenas 11% da população economicamente ativa aqui é de funcionários públicos, nos países da OECD, é 22%. Isto é, na média temos metade do número de funcionários públicos de um país desenvolvido, como apontou a BBC. Porém, os mesmos dados mostram que poderíamos ser mais eficientes na distribuição destes recursos: enquanto há juízes que ganham muito acima do teto, há professores e enfermeiros que deveriam ter aumentos substanciais.
Assim, ainda neste quesito, o manifesto prossegue com vários pontos interessantes, fazendo criticas importantes ao setor público mas parece pecar ao insistir em apontar o governo federal como único e exclusivo problema, o que lhe diminuí muito a credibilidade. Parece que nossa federação possui estados exemplares e municípios ainda melhores. Explica:
“O excesso de servidores comissionados agride os cofres públicos e a mínima decência. Programas sociais são descontinuados. Os que continuam têm um claro e explícito ar eleitoreiro. Os programas sociais condenam os mais carentes à escravidão em lugar de promover-lhes o crescimento. A lógica é da universalização dos benefícios e não das oportunidades. A saúde vive eternamente na UTI. Brasileiros morrem diariamente nas filas do SUS.”
A farra dos comissionados é realmente preocupante, mas o problema maior está em nos Estados e Municípios, pois é onde as oligarquias locais fazem as trocas de favores e equilíbrios de poder local. Dos 500 mil cargos comissionados no país, 22 mil são federais. E o pior, se serve ao menos de desculpa esfarrapada à omissão dos governistas na questão, destes 22 mil cargos comissionados federais, 18 mil já existiam desde 1997 (quando se começou a medir) e Dilma, alvo principal dos ataques do texto, criou menos cargos comissionados que qualquer presidente anterior. E aqui, a falta de informação ou até mesmo desonestidade do manifesto está em novamente apontar apenas o governo federal nesta questão: somente o Estado de São Paulo, governado por Geraldo Alckmin, o menos rejeitado dos manifestantes, possui o mesmo número de comissionados que todo o governo federal, 22 mil. No entanto, isso não parece ultrajar estes manifestantes, o que pode tirar a seriedade do seu manifesto.
A crítica aos programas sociais, especialmente ao Bolsa Família, partem do clássico argumento conservador contra o assistencialismo: financiam preguiçosos e incentivam pobres a terem filhos. Argumento este corroborado pelos manifestantes na pesquisa da USP. No entanto, a realidade, exposta em pesquisas e o bom senso tem demonstrado o contrário: as famílias tem tido menos filhos, feito mais pré-natal e ainda, há grande número de beneficiários deixando o programa.
Por mais que o Bolsa Família na prática seja um programa apenas de contingência social emergencial, para remediar principalmente a fome e a miséria absoluta que assolava o país, sem qualquer perspectiva duradoura de distribuição de renda, é inegável os seus benefícios já no curto prazo. Portanto, a critíca genérica a “programas sociais”, especialmente o trecho que é melhor dar “oportunidades que benefícios”, repousa novamente na base liberal clássica do “todos são iguais perante a lei” e portanto, é injusto dar benefícios (como o Bolsa Família) a alguns as custas de outros. No entanto, novamente é preciso lembrar de Anatole de France: “A Lei, em sua majestosa igualdade, proíbe que tanto ricos quanto pobres durmam embaixo da ponte e roubem pedaços de pão”.
Por fim, a critica ao SUS também sofre do mesmo problema de centralizar a responsabilidade apenas no governo federal: o SUS, apesar de ser uma política federal, sua aplicação é por órgãos estaduais e municipais, responsáveis pela administração. Há falta de dinheiro evidentemente, mas não é necessariamente por problemas exclusivos do poder executivo federal como aponta o texto, afinal o Orçamento da União é votado por todos os partidos, no Senado. O interessante é um texto repleto da retórica liberal, aparecer defendendo o sistema estatal de saúde. Ponto para o SUS, que já entrou no ideário de seus próprios críticos.
“Pagamos impostos a fundo perdido. Impostos que não voltam à sociedade na forma de serviços básicos de qualidade. Tributos, que deveriam servir aos interesses e necessidades do povo, principalmente dos mais carentes e necessitados, são desviados, via corrupção, para enriquecimento próprio, para o populismo, para a conquista e manutenção de poder.”
Este trecho é importante notar que se considerarmos sonegação como grave crime, afinal nos rouba 18 Copas do Mundo por ano, este trecho fica uma absoluta verdade e é praticamente uma definição enciclopédica de “sonegação”: “tributos que deveriam servir aos interesses e necessidades do povo […] são desviados […] para enriquecimento próprio”. Infelizmente o texto refere-se apenas a corrupção de membros do Estado, particularmente da esfera federal. Ignora o papel do cidadão contribuinte na formação do montante de tributos que o Estado terá para prestar serviços à população. Na prática, evidencia-se uma relação hipócrita, alienada e retro-alimentada: “sonego porque não vejo retorno”, enquanto poderíamos inferir que “não há retorno porque há muita sonegação”. Vale lembrar que os 400 bilhões sonegados anualmente no Brasil correspondem a 13% do orçamento da União, o equivalente a 2 anos inteiros do orçamento da Saúde e da Educação somados!
Portanto, falar de “impostos que não voltam a sociedade” sem falar em sonegação demonstra uma miopia perigosa. É como se a relação do cidadão com o Estado não fosse reconhecida como uma de direitos e deveres, entre cidadão e “cidade”. Um lugar onde a res-publica não existe pois o Estado parece ter sido imposto a uma população vitimizada, alheia ao poder que constituí e elege. Talvez por isso tenhamos o fenômeno da “corrupção sem corruptores”, apenas é corrupto o Estado, o cidadão é virtuoso e vítima. “O brasileiro não se enxerga como parte do poder constituinte, não se vê como fiador das autoridades, dos políticos e dos representantes. Não se enxerga como parte da “cidade”. Ele é pois, um não-político, um anti-burgo, alienado de sua principal característica da modernidade liberal: ele é um súdito e não um cidadão. [escrito aqui mesmo, ainda em 2013]
Por fim, o manifesto acerta mais adiante, ao acusar Dilma de estelionato eleitoral:
“Exemplo maior ocorreu nas eleições de 2014, quando a presidente Dilma Rousseff deflagrou o mais escancarado estelionato eleitoral da história do Brasil. O partido do governo, além de ser conivente com estas práticas, trata seus membros criminosos como ídolos e continua a lhes atribuir poder. O Partido dos Trabalhadores teve 13 anos de poder para mudar o Brasil, conforme prometeu em sua carta ao povo brasileiro em 2002”
O irônico é que o estelionato eleitoral de Dilma, imagina-se, está em fazer exatamente o que Aécio, o seu rival e escolhido por 4/5 dos manifestantes paulistas, teria feito. Isto é, seguidamente Dilma fez algo que prometeu que jamais faria pois seria aquilo que seu rival teria feito se eleito. Então, vê-se expressada no texto a paradoxal situação: rejeita-se o governo por estar fazendo aquilo que o escolhido dos manifestantes estaria fazendo. E para confundir mais ainda a cabeça de qualquer analista político: a situação governista vai às ruas pelos direitos trabalhistas atacados pelo governo que ela mesmo defende! No fundo, quem perde é o bom senso.
O texto ainda revela um certo desapontamento quanto ao projeto do petismo de 2002. Revela uma ingenuidade excessiva, pois acredita realmente que seria possível mudar estruturas de poder, sistemas de troca de favores, relações promíscuas entre Estado e empresariado – fatos conhecidos e há décadas enraizados na cultura política e de governo brasileira -, em apenas 12 anos de governo! Mesmo que esta fosse a proposta do petismo, nem nos sonhos mais idealistas de seus defensores isso seria possível! Como se 200 anos de cartorialismo, clientelismo, oligarquias parasitas e seu aparelhamento do estado, monopólios econômicos, concentração de renda, desigualdade e patrimonialismo, fossem corrigíveis em apenas uma década! Isto ainda sem recorrer a um impiedoso e violento processo político, como foi feito nas clássicas revoluções burguesas na Europa e EUA.
Por fim, apesar de bons pontos levantados, o excessivo anti-petismo do texto, reduzindo absolutamente todos os conhecidos problemas históricos brasileiros especificamente aos “últimos 12 anos”, retira credibilidade e seriedade do texto, antecipando o futuro desapontamento caso percebam o quão pequena e incompleta é esta perspectiva. Além disso, os devaneios conspiratórios sobre o Foro de São Paulo não são dignos de nota, e a repudia à “doutrinação ideológica” das escolas, possibilitando que alunos não aceitem ler Darwin, Marx, mas também Friedman qualquer autor que possa ir contra as crenças de alguém, parecem mais uma exaltação da ignorância em nome do combate ideológico do que qualquer outra coisa. Na prática criaria as bases legais para o fundamentalismo ideológico nas escolas que estes ativistas pretendem combater.
A ingenuidade de algumas considerações importantes e a seletividade da argumentação, focando apenas nos petistas (não há uma palavra se quer contra o PMDB ou PP!), retira a seriedade e profundidade necessária para a altura do debate que propõe. O misto de seletividade, reducionismo e desinformação de alguns argumentos implica em perguntar se os manifestantes realmente se interessariam pelo que o governo possa vir a fazer para atende-los. Pois parece que nada do que já está sendo feito exatamente nos pontos que o manifesto deseja, mesmo que sem precedentes ou paralelos, parece ter sido digno de nota. O excessivo caráter tendencioso do texto, acaba transformando este importante exercício democrático – levar propostas oposicionistas ao governo – numa esquizofrênica demonstração de repúdio total e irresoluto de qualquer ação que venha do governo petista, como se o espirito anti-esquerdista da Guerra Fria tivesse renascido e ido pras ruas para combater uma fantasiosa fênix comunista renascida no petismo. Não há bom senso que sobreviva.
*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico.